Toda a imprensa brasileira e internacional tem dado grande destaque para os acontecimentos dramáticos que vive a região metropolitana do Rio de Janeiro neste momento. Ao noticiar os ataques desencadeados pelo crime organizado contra alvos da cidade e o imenso aparato militar do Estafo mobilizado para enfrentar os criminosos, tratam de difundir acriticamente – como é praxe, aliás, na grande imprensa – a versão do governo. A versão é de que se trata de uma ação necessária para erradicar o crime organizado que ameaça a cidade e inferniza a vida das comunidades carentes do Rio. Nas palavras, que beiram ao cinismo, do governador carioca “o Rio está sendo pacificado”. Esta discussão tem várias dimensões e aspectos, e é muito difícil tratar de todas elas em um só artigo. Mas eu queria discutir rapidamente algumas delas aqui, em particular esta falácia da “pacificação do Rio”.

Em primeiro lugar não se pode deixar de registrar e denunciar o viés racista e discriminatório contra negros e pobres que caracteriza o enfoque com que as autoridades e, em particular a polícia, usam para tratar deste assunto. O tratamento que tem sido dado pelas autoridades e pela polícia às comunidades carentes do Rio é absolutamente inaceitável. Não são apenas os traficantes que eventualmente vivem nestas comunidades que são criminalizados e alvo da repressão da polícia. Todos os moradores, em sua imensa maioria negros e pobres, são tratados como bandidos, desrespeitados sistematicamente em todos os seus direitos, agredidos pela polícia de forma covarde e sistemática. Alguém em plena consciência acredita que seria visto como normal, que a polícia chegasse chutando as portas de todas as casas do bairro dos Jardins, em São Paulo, ou da Barra da Tijuca, Leblon ou São Conrado, no Rio, agredindo seus ocupantes, para “procurar bandidos”? Pois é exatamente isto que está acontecendo nas comunidades carentes do Rio de Janeiro neste momento. São, em sua imensa maioria, pessoas trabalhadoras, honestas, que estão sendo tratadas assim. É claro que a presença e a ação dos traficantes também inferniza, em vários sentidos, a vida das pessoas que vivem nas comunidades carentes. Um deles, talvez o mais cruel, é justamente o envolvimento de crianças e jovens (abandonados pela sociedade, e vitimas fáceis portanto) nas atividades criminosas. Mas nada disso justifica que o Estado faça o que faz com pessoas que não são criminosas.

E, mais grave ainda são as centenas de assassinatos praticados pelas forças de segurança do Estado todos os anos. Quantas pessoas são vitimas de “bala perdida” disparadas pela polícia? Dizer que parte delas é atingida por balas perdidas disparadas pelos bandidos não justifica essa barbárie praticada pelo Estado, como já está dito acima. Quantos jovens são assassinados pela polícia, sem nunca terem cometido nenhum crime, simplesmente por serem negros, pobres e estarem no lugar errado e na hora errada. Numa leitura superficial dos grandes jornais do país poderemos contar às centenas os casos como esses. Centenas de pessoas inocentes, mortas pelas forças de segurança que deveriam protegê-las. Conseqüências? Não há nenhuma. Eram “pobres coitados” mesmo. Aqui se manifesta a face mais cruel da discriminação. Não há conseqüências porque são negros e pobres. Seria essa a mesma situação se estas centenas de mortos fossem brancos, filhos da classe média alta e da burguesia carioca? Alguém pode imaginar a impunidade atual, se estas centenas de jovens mortos fossem brancos, moradores da Barra da Tijuca ou do Leblon, ou dos Jardins, em São Paulo?

Aqui o que se vê é uma das faces da exploração capitalista que os governantes e a mídia tentam esconder usando o preconceito. O terreno fértil que o crime organizado encontra nestas comunidades, para recrutar, inclusive, os seus “soldados”, não existe por um problema relacionado ao caráter das pessoas que vivem aí. Existe porque essas pessoas, milhões de pessoas, são condenadas pelo desemprego, pelos baixos salários, pela ausência de políticas públicas voltadas para garantir moradia digna, saúde, educação, etc, etc, a viver onde vivem e da forma que vivem. São fruto da barbárie que caracteriza a sociedade capitalista que, para garantir os bilhões e bilhões de rentabilidade para os donos do capital, produzem essa legião de deserdados, condenadas a viver em condições cada vez mais indignas. Não são elas que escolhem viver assim. Isso lhes é imposto pela sociedade. Se alguém, portanto, deveria ser criminalizado por esta situação são os banqueiros, grandes empresários e as autoridades governamentais, os verdadeiros responsáveis por tudo isso.

Não há como acabar com este “terreno fértil” onde floresce o crime organizado sem colocar fim à fonte que o alimenta: a exploração capitalista e a discriminação, racial e social.

Até aqui eu imagino o que pensaria sobre o que estou dizendo as pessoas que têm a sua vida cruzada por esta situação que vive o Rio de Janeiro neste momento. Seria preciso primeiro acabar com o capitalismo para que possa haver alguma mudança nessa situação? Para que as pessoas, pelo menos, fiquem livres do assedio e da violência, seja por parte do crime organizado, seja por parte da polícia? Isso não seria razoável, não é mesmo? É por isso que a ampla maioria da população apóia a ação do aparato de repressão que está em curso neste momento no Rio (a imprensa afirma que esse apoio existe, inclusive, entre os moradores das próprias comunidades carentes). Elas acreditam que, como garante o governador do Rio, isso vai acabar com o crime organizado e “pacificar o Rio”. As pessoas acham que ficarão livres, daqui para frente, dessa violência toda que aflige as suas vidas. Mas isso é verdade mesmo?

Não. Não é preciso esperar o fim do capitalismo para mudar alguma coisa nessa situação de violência que aflige a vida das pessoas. Mas tampouco é verdade que a ação desenvolvida pelo governo estadual e federal através de seus aparatos de repressão vai acabar, ou mesmo diminuir, este quadro. Trata-se de uma falácia. Primeiro quero falar disso que chamo de falácia das autoridades, mais à frente falarei do que acredito que deva ser feito.

É sabido por todos que o tráfico de drogas é o carro chefe das finanças do crime organizado. Alguém acredita que a invasão, e mesmo uma eventual prisão de todos os traficantes de drogas que vivem nos morros cariocas, vai simplesmente acabar com o consumo e, portanto, com a demanda por drogas no Rio de Janeiro? Se você não acredita, está com toda a razão. As autoridades também não acreditam, por isso estão mentindo quando falam que esses problemas vão acabar. A procura por drogas, o vício, a dependência de drogas, como se sabe há muito, alem de um problema de liberdade, escolha individual, é um problema de saúde pública. Esta situação envolve centenas de milhares ou mesmo alguns milhões de pessoas só no Rio de Janeiro. E vai seguir levando essas pessoas a buscar a droga, onde quer que seja, ou seja, a demanda vai continuar. E isso aqui é capitalismo, onde há demanda, vai haver oferta. Não nos enganemos, é um mercado que deve render quase 1 bilhão de reais por ano, só no Rio. O que vai acontecer é óbvio: a única mudança será a mudança de “fornecedores”, por assim dizer (a não ser que as autoridades acabem fazendo algum acordo com os atuais mesmo…). A droga no Brasil é ilegal. Então os novos “fornecedores”, como os atuais, comporão algum tipo de crime organizado. Esse novo crime organizado vai recrutar mão de obra onde? Hoje são dezenas de milhares trabalhando para o tráfico no Rio. E assim vamos a uma repetição da história. Dramática e tragicamente. Quem viu em Tropa de Elite 2 como as milícias substituíram o tráfico na ficção (ficção?) tem uma idéia bastante clara do que estou dizendo. O filme, aliás, é bastante ilustrativo quando mostra setores da própria polícia ocupando o espaço e os “negócios” antes ocupados pelos traficantes. Repito: há a demanda e o negócio é literalmente milionário.

Daqui se depreende três medidas fundamentais para começar a superar esta situação, mesmo ainda nos marcos dessa sociedade capitalista. Elas não vão assegurar uma paz verdadeira para todos, pois não pode haver paz onde há fome, exploração e opressão, situações inerentes a essa sociedade em que vivemos. Mas sem dúvida tornariam muito melhor a vida das pessoas que hoje estão sujeitas ao flagelo do crime organizado e da violência policial.

A primeira delas é a legalização das drogas. Como eu disse antes, a procura pela droga, seja por um desejo ou curiosidade individual, seja pelo vício e dependência química vai continuar. O usuário da droga não a compra do traficante porque gosta de financiar o crime organizado, e sim porque este é o único fornecedor da praça, tão simples assim. Se legalizarmos a droga e o próprio Estado assumir o monopólio do seu fornecimento (mediante acompanhamento, apoio e tratamento médico), esta situação mudará completamente. Os que sofrem de dependência química começarão a ser tratados adequadamente, como um cidadão doente que precisa de apoio, ajuda médica para se livrar de sua doença (isso não é papel do Estado?). De quebra, retiraríamos assim a principal fonte de financiamento do crime organizado. Esse dinheiro poderia ser canalizado para financiar as próprias políticas de saúde voltadas para o atendimento do viciado, e de campanhas educativas para proteger os jovens contra o vício. Lamentavelmente, todo o debate feito pela candidata Dilma nas eleições (do seu principal oponente também), e pelo governador do Rio, Sérgio Cabral, foi em sentido oposto. Mais repressão, diziam eles. “Se a droga for legalizada teremos um imenso problema de saúde pública”. Ora, se reprimir, ilegalizar o consumo da droga, servisse para alguma coisa não haveria mais viciados nem venda de drogas no Brasil, pois isso é tudo que tem sido feito sabe-se lá há quantos anos. E, problema colossal de saúde pública já temos, pois os viciados e dependentes químicos de drogas ilegais (para não falar no álcool e no tabaco) se contam às centenas de milhares. E esse número não diminui com a proibição, pelo contrário, o número só tem aumentado.

A segunda questão se refere à polícia, que longe de solução se apresenta como mais uma fonte de terror à população das comunidades carentes. Muitas vezes, inclusive, associada ao crime organizado. É intolerável a forma como a polícia trata a população pobre e negra em nosso país. É, pior ainda, completamente ineficaz para combater o crime. É preciso unificar as polícias, desmilitarizá-las para que seu comando seja escolhido e controlado pelos cidadãos, única forma de fazer com que ela esteja a serviço de proteger e não de aterrorizar a população. Os defensores da situação atual falam que a população não terá discernimento, condições de escolher bem, acabaria elegendo a milícia, e um longo etcetera. Não que as autoridades responsáveis pelas escolhas dos chefes atuais da polícia tenham moral para falar do assunto. Difícil ver uma instituição tão mal administrada, distante de seus objetivos e atravessada de ponta a ponta pela corrupção como é o caso das polícias em nosso país. Mas é revoltante ver como estas autoridades e alguns jornalistas subestimam a inteligência das pessoas. O povo saberá sim escolher os chefes da polícia e também controlá-los, assegurando uma estrutura de segurança que responda às necessidades da população. Também é necessário agregar que os trabalhadores que fazem parte da estrutura de segurança do Estado têm de ser tratados com dignidade. Isso se aplica aos seus direitos democráticos – os policiais têm de ter o direito de se organizar em sindicatos e de participar da vida política do país – como também no que diz respeito ao seu direito a um salário e condições de trabalho dignas.

Em terceiro lugar, é preciso combater duramente as estruturas que dão sustentação ao crime organizado. Isso vai desde o combate à corrupção nas estruturas do Estado que deveriam coibir o crime e se associam a ele, até acabar com a lavagem do dinheiro do crime organizado que é feito nos grandes bancos (alguém aí acredita que os milhões de reais faturados todo mês pelos traficantes ficam escondidos dentro de um colchão num barraco de uma favela?). São grandes empresários, banqueiros e políticos, os sócios do crime organizado e responsáveis por boa parte da “legalização” dos seus recursos. O Estado tem instrumentos para identificar e punir (exoneração a bem do serviço público, cadeia, confisco dos bens, etc.) todos os corruptos e burgueses associados ao trafico de drogas e ao crime organizado.

São algumas medidas, estas que citamos aqui. Há outras. Mas é nesta direção que devemos caminhar se queremos reverter a situação que vivemos hoje nessa área. E devemos fazê-lo ao mesmo tempo que seguimos lutando para superar de vez esta sociedade injusta e desigual em que vivemos e avançarmos para a construção de uma sociedade socialista. São estas medidas que devemos exigir das autoridades do Rio de Janeiro e do país para que se possa dizer, aí sim, que o Rio e o país estariam livres do crime organizado. De quebra, livraríamos a população, também, da violência e do abuso da polícia.

*Zé Maria é metalúrgico e presidente nacional do PSTU

Publicado no site www.fjln.org