Há exatamente um ano, na Tunísia, o vendedor ambulante Mohamed Bouazizi suicidou-se ateando fogo ao seu próprio corpo. Foi um gesto desesperado de alguém que estava impossibilitado de continuar trabalhando devido à repressão e à corrupção dos funcionários do regime ditatorial do país. O que ninguém imaginaria, porém, é que o suicídio Bouazizi seria o gatilho para os massivos protestos populares que derrubariam o ditador Ben Ali. Tampouco se imaginaria que a vitória das massas alentaria uma enorme onda revolucionária que se espalhou como um rastilho de pólvora sobre o mundo árabe.

A revolução dos povos árabes tem como base material anos de profunda exploração, miséria e desemprego, agravados pela inflação e pela crise econômica mundial. Além de um profundo ódio das massas contra ditaduras corruptas, sustentadas por décadas pelo imperialismo norte-americano. Só isso pode explicar a permanência e a radicalização destes processos que, mesmo com a repressão assassina, que matou centenas no Egito de Mubarak, milhares na Líbia de Kadafi e na Síria de Assad, continuam enfrentando regimes assassinos e conquistando vitórias.

Desmoronamento da opressão
Em janeiro, o povo egípcio, sobretudo a juventude, ocupou a emblemática Praça Tahir. Dezoito dias após o começo da revolução que sacudiu o país e atraiu a atenção de todo o mundo, o ditador do Egito, Hosni Mubarak, aliado histórico de Israel e dos EUA, finalmente caiu.

Para deter a revolução e manter seus privilégios, a saída encontrada, apoiada pelo imperialismo norte-americano, foi a criação de um governo de “transição” Junta Militar, cujo objetivo era aplacar a lutas das massas. Apesar da queda de Mubarak, ainda existia no país um importante grau de confiança no exército, como instituição. Dez meses depois, porém, a experiência política foi corroendo essa confiança. Neste período, nenhum dos problemas fundamentais do povo egípcio foi resolvido. Tanto o desemprego como suas condições materiais de vida continuaram em estado dramático e insuportável. Todas as ações da Junta Militar se chocaram com as aspirações do povo. Por isso, recentemente, centenas de milhares voltaram a tomar as ruas para “completar a revolução”.

Da Líbia…
Na Líbia a revolta popular irrompeu tendo a cidade Benghazi como epicentro. Logo, as manifestações chegaram a capital. A resposta de Kadafi foi brutal e incluiu bombardeios em várias cidades e até mesmo bairros de Trípoli. A intensidade da repressão rachou o exército líbio e conferiu um caráter de guerra civil ao conflito.
Nas primeiras semanas da guerra, os rebeldes rechaçavam qualquer tipo de intervenção estrangeira, como ficou claro em manifestações em Benghazi. No entanto, com o passar dos dias a superioridade bélica do ditador mudou a correlação de forças na guerra. O imperialismo norte-americano e europeu aproveitaram essa mudança para impor uma intervenção militar. A famigerada autorização concedida pelo Conselho de Segurança da ONU, para a imposição de uma “zona de exclusão aérea”, foi o sinal verde que se traduziu em apoio aéreo e bombardeios contra Kadafi. Mas a intervenção da OTAN tinha um sentido claro: controlar a revolução líbia, estabilizar o país (o que era já impossível com Kadafi no poder), cooptar o Conselho Nacional de Transição (CNT, a direção política dos rebeldes), além de cacifar-se para manter o fornecimento de petróleo ao ocidente.

Durante todo o conflito, organizações ligadas a Chávez e Fidel. E, no Brasil, o PCdoB, se colocaram de forma incondicional ao lado de Kadafi. Desenharam o fantasioso cenário de um governo antiimperialista sendo atacado pelos EUA. Esconderam deliberadamente o caráter pró-imperialista de Kadafi nos últimos vinte anos.

Finalmente, no dia 21 de agosto, os rebeldes ocuparam as ruas da capital Trípoli. Pouco depois Kadafi foi morto pelos rebeldes quando tentava fugir. Agora, o inimigo comum sai de cena e as enormes diferenças entre os que lutaram contra a ditadura estão vindo à tona.

De um lado o Conselho Nacional de Transição (CNT), formado por ex-ministros e altos funcionários do governo Kadafi, que o abandonaram para se passar para o campo da insurreição, para assegurar relações com o imperialismo. O exército foi destruído e o imperialismo trata, por meio do CNT, de restabelecê-lo para voltar a dominar as riquezas do país e desarmar as milícias. Porém, terão que convencer ou enfrentar milhares combatentes que agora, estão nos comitês populares e se mantêm armados.

… ao Iêmen…
No Iêmen, um dos países mais pobres da região, as manifestações populares também evoluíram para uma revolta armada. A principal exigência dos manifestantes era a renuncia do ditador Ali Abdullah Saleh. Apesar de uma sanguinária repressão, a revolução não foi detida. Recentemente, o ditador foi obrigado a aceitar um acordo de transição no qual se compromete em sair do poder em três meses. O acordo foi costurado pelo governo norte-americano e pela Arábia Saudita, um dos principais aliados do imperialismo na região, que assegurou asilo político para Saleh.

…e Síria
Na Síria, a ditadura de Bashar al-Assad continua massacrando a população. Atrocidades, que incluem violações e o assassinato de crianças e mulheres são denunciadas quase que cotidianamente. Mas a reação das massas começou a dividir o exército. Já há deserções de oficiais e a organização de um embrião de exército a partir destas deserções. Nisso se assemelha ao início da guerra civil da Líbia. Eles foram capazes de infligir golpes duros ao regime, como a destruição de um quartel e de uma sede do partido dirigente Baath.

A tática do imperialismo
Em todas essas décadas, as ditaduras árabes só mantiveram no poder graças ao apoio do imperialismo norte-americano. Obama manteve essa orientação à risca. Apesar do hipócrita discurso de “defesa da democracia”, o imperialismo apoia todas as ditaduras no mundo árabe contra as quais as revoluções se enfrentam, como na Arábia Saudita, Bahrein, Jordânia, Iêmen. Portanto, a política atual do imperialismo diante das revoluções árabes pode ser traduzida como uma contra-ofensiva imperialista com intervenção política para respaldar as ditaduras e sustentá-las. Isso ocorreu claramente no Bahrain, onde os protestos foram brutalmente reprimidos pela ditadura do rei Hamad Bin Al Khalifa.

A “Revolução Esquecida”, como ficou conhecida, teve pouco destaque na imprensa e na chamada “comunidade internacional”, especialmente dos EUA, que sequer condenou os massacres promovidos por Al Khalifa. O país é uma pequena ilha do Golfo, com 1,2 milhão de habitantes, a poucos quilômetros de distância da Arábia Saudita. Mas abriga a Quinta Frota da marinha ianque. No auge da repressão, o exército saudita (com o aval de Obama) entrou no país para combater os opositores.

Por outro lado, o imperialismo combina a ação política de apoio às ditaduras com a utilização do discurso democrático para ganhar a simpatia dos revoltosos, em particular da juventude. Assim, só aponta para uma solução de “transição” quando é forçado pela revolução, ou seja, quando já não tem outra saída. No Egito, por exemplo, depois de uma longa hesitação, Obama percebeu que seu aliado Mubarak não poderia mais controlar a situação. Assim, Mubarak foi descartado e a Casa Branca passou a enviar saudações aos jovens revoltosos. Hoje existe um cartaz de Obama no aeroporto do Cairo que reivindica a revolução e a juventude.

Devido aos fracassos nas guerras do Iraque e Afeganistão, o imperialismo tem enormes dificuldades para bancar intervenções militares diretas em apoio às ditaduras. No entanto, ainda que não possa utilizar deste expediente, enviando tropas para combater em terra, o recurso da intervenção militar não foi totalmente descartado. Um exemplo ocorreu com a revolução na Líbia. Após anos de serviços em prol do imperialismo, nos quais entregou todo o petróleo líbio às multinacionais, Kadafi deixou de ser “confiável” aos governos dos EUA e da Europa no momento que não conseguiu impedir a eclosão de uma guerra civil no país. Aos olhos do imperialismo, Kadafi, não poderia mais estabilizar a região e isso comprometeria o fornecimento de petróleo para as multinacionais. Dessa forma, o imperialismo optou em se apropriar diretamente do petróleo e estabelecer uma zona controlada no meio da revolução árabe. Essa foi a principal motivação que levou o imperialismo a intervir militarmente no conflito, por meio dos bombardeios da OTAN e do bloqueio aéreo e naval.

O caso da Síria também é um exemplo de como age o imperialismo diante da revolução árabe. Assim como Kadafi, o ditador Bashar al-Assad teve alguns choques com o imperialismo no passado. No entanto, o governo dos EUA não apóia a luta dos revoltosos sírios, pois quer evitar que o regime caia pela ação das massas, o que pode desestabilizar uma delicada região fronteiriça ao Iraque e Israel. Até agora, para o imperialismo, a ditadura serve para manter o status quo da região. Mas, na medida em que continua a enfrentar mobilizações e a ameaça de perder o controle sobre a situação, o imperialismo poderá mudar de orientação tática, assim como fez na Líbia. E o perigo de uma intervenção militar imperialista não está afastado. Tropas francesas ou da ONU, em nome de proteger a população, podem cumprir esse papel caso Assad seja derrubado pelas massas. É preciso denunciar qualquer tentativa de intervenção militar que apenas visa obrigar os rebeldes a se desarmar e impor um controle sobre a população síria.

Próximos capítulos
As revoluções no mundo árabe estão longe de terminar. A tendência é que o processo se aprofunde e se estenda no próximo período, enfrentando ditaduras e o imperialismo que as sustentam. Contudo, para conquistar liberdade e melhores condições de vida, as massas terão que expulsar o imperialismo e enfrentar seu enclave militar na região, Israel.

Por outro lado, a contra ofensiva imperialista, a repressão violenta por parte das ditaduras e as deficiências de organização, especialmente a crise de direção revolucionária, se configuram como obstáculos a serem superados. Apostamos que a classe operária se reorganize de maneira independente da burguesia para que construa uma direção revolucionária e avance na perspectiva de governos dos trabalhadores e de uma Federação das Repúblicas Socialistas do Norte da África e Oriente Médio.
Post author Bruno Sanches, de São Paulo
Publication Date