Mulheres estão dando o exemplo nas revoluções do Norte da África

“A luta das mulheres na Síria, em todo o Oriente Médio, assim como no Norte da África é inseparável da luta do movimento de massas. Pela primeira vez, a vanguarda feminista desses países está construindo um feminismo que é seu, e não algo importado do exterior. Infelizmente, por muito tempo, tal foi imposto pelos colonizadores, que queriam nos educar sobre como nos relacionarmos com as mulheres.” A afirmação, feita pela ativista síria Sara Al Suri, aponta para a construção de um novo movimento de mulheres na região, à luz das revoluções.

Em três meses de visita ao Brasil durante campanha de solidariedade à revolução síria promovida pela CSP-Conlutas (Central Sindical e Popular), com o apoio do PSTU, essa jovem de 20 e poucos anos foi a face da luta contra o regime sangrento do ditador Bashar Al Assad, em curso há dois anos. Talvez a maior expressão de como o processo vem sendo conduzido no mundo árabe, tendo na vanguarda uma juventude descrente das lideranças tradicionais e mulheres conscientes de que sua emancipação é indissociável de outras transformações sociais, políticas e econômicas. E de que seus direitos e suas escolhas não devem ser ditados por movimentos feministas que defendem interesses burgueses e em nome da “liberdade” impõem interesses coloniais em contraposição ao direito de autodeterminação das mulheres.

As lutas das mulheres trabalhadoras em todo o mundo capitalista envolvem, independentemente do país, os mesmos desafios: a luta contra a opressão, o machismo, contra o sexismo e a exploração. Nas revoluções do Norte da África e Oriente Médio, elas estão dando exemplos de luta e desmistificando preconceitos. Participando ativamente das lutas da classe, nas praças, ruas e na guerra civil, exigem mudanças na economia, denunciam o imperialismo, o colonialismo e a subserviência. E, com isso, questionam o capitalismo e o lugar que ele quer reservar às mulheres.

Na Tunísia, em que teve início a onda de revoluções no mundo árabe, ao final de 2010 – levando, no começo do ano seguinte, à queda do ditador Ben Ali –, as mulheres não abandonaram seus postos. Pelo contrário, sua presença foi marcante no ascenso resultante da insatisfação generalizada, inflamado com o assassinato em 6 de fevereiro último do líder de oposição Chocri Belain.

Ao se manifestar para que se façam cumprir as tarefas da revolução, elas estão lutando por seus direitos também. No Dia Nacional da Mulher na Tunísia, em agosto de 2011, suas vozes protestavam contra a possibilidade de perda de conquistas históricas, já que no projeto constitucional o objetivo seria instituir a complementaridade dos sexos, não a igualdade entre os gêneros. “As mulheres tunisianas são uma parte inteira, iguais aos homens, são independentes e trabalhadoras. Nunca aceitaremos ser consideradas complementares a eles”, teria afirmado uma jovem engenheira presente ao ato, segundo divulgado na imprensa internacional.

O projeto seria a evidência de tentativa de captura do processo revolucionário por uma liderança burguesa, num país em que as mulheres conquistaram uma legislação bastante avançada. Para se ter uma ideia, o aborto ali é legal e a igualdade de direitos é garantida em estatuto desde 1956.

No Egito, desde o início do processo em 25 de janeiro de 2011 – que levou à queda do ditador Hosny Mubarak em 11 de fevereiro do mesmo ano –, as mulheres estão na linha de frente, enfrentando uma arma poderosa, típica dos tiranos em relação ao gênero feminino: a violência sexual. Porém, como afirmou em entrevista à imprensa a ativista feminista egípcia Nawal Saadawi, as mulheres têm tido ganhos. “Nós escutamos sobre aquelas que venceram nos tribunais contra a realização pelos militares dos testes de virgindade” (aos quais presas pelo regime eram submetidas).

Além disso, ela afirma que durante a ditadura houve uma fragmentação das mulheres e do movimento feminista, que tinha por objetivo dominar. A responsável por levar a cabo essa divisão foi a primeira-dama Suzanne Mubarak, que queria liderar a organização de mulheres, “como todas as rainhas e esposas de presidentes no resto dos países árabes”. Sob seu comando, lamenta Saadawi, foram fundadas várias ONGs, ou pelo governo ou com dinheiro estrangeiro. Uma divisão baseada em interesses de classes.

Derrubando estereótipos
Contra esse quadro, fortalece-se na região o feminismo anticolonial, citado pela jovem síria Sara Al Suri. Os movimentos que se baseiam na contradição inventada Oriente-Ocidente para ditar regras de comportamentos às árabes e muçulmanas e, portanto, em ideias que mantêm o colonialismo e o imperialismo não servem às mulheres trabalhadoras. Entre essas, as de que as ditas “ocidentais” seriam a civilização a ser levada àqueles povos atrasados. Mostra disso são feministas que veem na vestimenta a opressão, quando pode ser uma característica cultural. Caso específico do véu islâmico, que, em si, não significa submissão. Tanto é que mulheres na Turquia e na França, por exemplo, protestaram quando tentaram lhes impedir o direito de cobrir os cabelos. O problema não é o uso, mas a imposição. Contra essa, sim, deve-se lutar contra. De novo é Nawal Saadawi quem ensina, desta vez em seu único livro traduzido para o português, intitulado “A face oculta de Eva – as mulheres do mundo árabe”: a religião tem sido usada como meio de dominação, mediante distintas interpretações, de modo a favorecer o grupo hegemônico e manter a opressão de classe. O que, vale dizer, não é exclusividade no Islã, o qual chega a ser mais suave no que se refere às diferenças de gênero.

Tal representação está a serviço desses interesses tanto quanto a invisibilidade da luta histórica das mulheres. Não há nenhuma novidade na participação feminina nesses processos revolucionários. Seu protagonismo nas batalhas anticoloniais e anti-imperialistas é histórico em toda a região. No Egito, por exemplo, como conta Saadawi, as mulheres foram as primeiras a deflagrar greves, ocupar fábricas e marchar por direitos, ainda no início do século XX. Na Palestina, foram pioneiras em protestar contra a instalação dos primeiros assentamentos sionistas no final do século XIX, com fins coloniais – e têm se colocado há mais de 60 anos na linha de frente contra a ocupação israelense.

Ela salienta: “As árabes mostraram resistência ao sistema patriarcal centenas de anos antes que as americanas e europeias se lançassem a essas mesmas lutas.” Sistema esse que passou a predominar a partir do surgimento da noção de propriedade privada e divisão de classes, como ensina em sua obra.

Em tempos ancestrais em que predominava o nomadismo e a agricultura de subsistência, as mulheres detinham a igualdade em questões sociais, econômicas e nas esferas públicas. Diante disso, Saadawi é categórica: “Enquanto os assuntos do Estado ou do poder administrativo forem delegados à mulher dentro de uma estrutura social de classes, baseada no capitalismo e no sistema familiar patriarcal, homens e mulheres hão de permanecer vítimas da exploração.” Mudar esse estado de coisas, na qual a luta anticolonial é fundamental, mantém-se na ordem do dia das revoluções em curso no mundo árabe.