A revolução na Síria já dura nove meses, com as massas enfrentando uma duríssima repressão por parte da ditadura de Bashar al-Assad. Apesar do número de mortos crescer a cada dia, as massas não abandonam as ruas e a burguesia árabe já dá mostras de não estar aguentando tanta pressão.

A aposta de Assad e da Liga Árabe, de que jogar o Exército nas ruas poderia deter o processo revolucionário, fracassou e teve o efeito contrário. Não só não deteve como provocou profundas fissuras nas Forças Armadas e ampliou a oposição política e o isolamento internacional do regime. A opção foi buscar um plano B para tentar controlar a delicada situação no país, que caminha para uma guerra civil. O mais importante jornal norte-americano, The New York Times, vem dando voz às burguesias árabes que negociam com o governo sírio o máximo que podem, sem romper diretamente com ele, para conseguir que faça mudanças na forma de enfrentar a revolta popular sem precisar recorrer a uma intervenção armada, que, devido à posição geopolítica da Síria, poderia incendiar todo o Oriente Médio. A Síria faz fronteira com o Líbano e o Mar Mediterrâneo a oeste, Israel a sudoeste, Jordânia ao sul, Iraque a leste, e Turquia ao norte. Ou seja, uma região altamente explosiva.

Banho de sangue
A primeira resposta do governo Assad para deter as massas foi o enfrentamento direto, com tiros, gás lacrimogêneo, incluindo gases venenosos, jatos de água, prisões e torturas. Há nove meses a imagem da Síria é a de um massacre diário e cada vez mais violento porque as massas não se ajoelham. O resultado, até hoje, é o de uma verdadeira guerra civil contra a população. Segundo informe das Nações Unidas, pelo menos 3.500 pessoas já foram assassinadas pelo governo Assad, incluindo civis, forças de segurança e soldados que desertaram. De acordo com a oposição, esse número chega a 5 mil, sendo 600 crianças, além de 7 mil pessoas desaparecidas. As prisões estão abarrotadas, com mais de 100 mil detidos.

Uma investigação da Comissão de Direitos Humanos da ONU, liderada pelo brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro, revela detalhes da repressão de Assad contra a população. Segundo ela, crianças foram executadas e há relatos de torturas em hospitais. Funcionários da ONU disseram estar “totalmente escandalizados” com os relatos. “Poucas vezes se viu um sistema de repressão tão completo, com a tortura sendo utilizada politicamente e nos mais diferentes setores. Pelo que parece, uma máquina de tortura foi criada para silenciar todo um país. Ela não ocorre apenas em prisões, mas em hospitais, colégios, centros de atendimento e ministérios” (O Estado de S. Paulo, 26/11/2011).

A violência é tanta que vem ampliando o número de opositores ao regime a cada dia dentro da Síria. Fora do país, antigos aliados, como o governo turco, agora pedem ao ditador Bashar al-Assad que controle seus massacres contra as massas. A França, por intermédio do ministro do Exterior Alain Juppé, propôs a criação de “corredores humanitários” para, segundo eles, transportar medicamentos e outros suprimentos para os civis. A proposta da França veio depois que o banho de sangue já havia se instalado amplamente pelo país e que a política da ditadura de massacrar a rebelião havia conseguido manter Assad mais um tempo no poder, mesmo após a queda de outros ditadores na região, como Mubarak e Kadafi. Mas a população não deve se deixar enganar, porque esse tipo de oferta é uma forma de os países imperialistas começarem a intervir na revolução síria para tentar abortá-la e impedir que derrube Assad e tome o poder.

É o mesmo tipo de política que os países imperialistas tiveram na Líbia, quando a situação saiu do controle pela ação insurrecional dos rebeldes armados e Kadafi passou a ser um aliado incômodo. A França e a Inglaterra, seus aliados, passaram a pressionar para, enfim, abandonar o ditador e tentar interferir via CNT (Conselho Nacional de Transição) sobre os destinos da Líbia. Só que na Síria é muito mais complexo produzir algo semelhante ao que foi a zona de exclusão aérea. Então, tratam de tentar meter-se de outra forma

Tanto é assim que uma fonte diplomática ocidental disse que o plano da França, com ou sem aprovação de Damasco, poderá unir os centros civis dentro da Síria com as fronteiras da Turquia e do Líbano e a costa do Mediterrâneo. Isso permitiria, segundo eles, transportar suprimentos humanitários e remédios para a população. Para que isso seja possível, obviamente os comboios humanitários necessitarão de proteção armada, o que já se configura em uma intervenção militar na Síria. “Há duas alternativas, disse a fonte: que a comunidade internacional, a Liga Árabe e as Nações Unidas consigam fazer com que o regime aceite os corredores humanitários, mas caso contrário nós teremos de encontrar outras soluções. Nesse caso, vamos precisar de proteção armada, mas isso não significa uma intervenção militar na Síria”. Se não é uma intervenção militar direta, é uma intervenção disfarçada. Isso pode significar a presença de tropas francesas ou da ONU que, em nome de proteger a população, passariam a ter a força posicionada para, no caso de Assad ser derrubado, poder obrigar os rebeldes a se desarmar e/ou impor um controle sobre os rebeldes e a população síria. Hoje a população está enfrentando o regime, mas o imperialismo quer evitar que ela se organize em milícias que ameacem tomar o controle do país.

Exército em crise
O maior indício de que o regime sírio está passando por uma grave crise é a situação das Forças Armadas. Principal instituição do regime, o Exército sírio vem se dividindo dia após dia, com desertores rompendo e se somando às forças rebeldes que lutam contra Assad. Até agora, no entanto, a cúpula do Exército se mantém fiel a Assad e disposta a prosseguir com a repressão contra os manifestantes. “Cortaremos qualquer mão maligna que queira derramar o sangue sírio”, diz um comunicado do Exército (O Estado de S. Paulo, 26/11). No entanto, uma série de ataques contra os edifícios do governo vêm sendo protagonizados por jovens oficiais rebeldes, inclusive com o uso de foguetes e granadas. Já houve ataques militares ao regime em Damasco. No dia 16 de novembro, o centro de inteligência do exercito sírio em Harasta, subúrbio de Damasco, foi atacado. No dia seguinte, o ELS (Exército Livre da Síria) informou ter atacado o escritório do Partido Baath no norte do país. No dia 20 foi a vez de ataques ao escritório do Baath em Damasco, informação dada pelo ELS, mas não confirmada pelo CNS (Conselho Nacional Sírio). De qualquer forma, multiplicam-se as informações de que, além de haver cidades e regiões fora do controle do regime cujo ingresso para as autoridades do governo Assad só se dá de forma armada, também já há ataques nos arredores de Damasco.

As deserções no Exército – que vêm ocorrendo desde os primeiros meses da revolução na Síria – já colocaram em perigo a unidade das Forças Armadas do país, uma das maiores preocupações da Liga Árabe e do imperialismo, como ocorreu na Líbia.

A política adotada pelo regime sírio de massacrar a revolta das massas desmente a retórica de Assad. Ele quis jogar com um suposto papel anti-imperialista, mas a verdade é que, nos últimos anos, seu governo vem cumprindo um papel fundamental ao imperialismo para garantir a estabilidade na fronteira de Israel. Por isso, nos primeiros meses da revolução, o imperialismo e Israel apoiavam incondicionalmente o governo sírio e evitavam de todas as formas a sua desestabilização, que significaria, em última instância, deixar desguarnecida a importante e perigosa fronteira com Israel.

No entanto, apesar de sustentarem Assad, o imperialismo e o próprio Estado de Israel acharam mais prudente manter uma distância dele, porque a continuidade das mobilizações dentro da Síria e sobretudo a política adotada pelo regime, de massacre direto, é totalmente incerta quanto aos resultados. Sem contar que traz um desgaste de imagem para os governos imperialistas, que se dizem defensores dos direitos humanos. Com isso, ampliou-se o isolamento internacional do governo sírio e, como ocorreu com Kadafi, o imperialismo passou a aplicar sanções para obrigar que negociasse com a oposição ou se retirasse.

Os Estados Unidos já aplicaram sanções econômicas e estão na posição de espera. Os países europeus suspenderam a compra de petróleo sírio, ampliando a crise na economia já bastante afetada pela onda de mobilizações. A Turquia, principal parceiro comercial da Síria, com US$ 2,5 bilhões por ano de operações comerciais, aumentou o tom. Exige a saída de Bashar, além de abrigar o oposicionista Conselho Nacional Sírio e o recém-formado Exército Livre da Síria, liderado por Ryiad al-Asaad, a partir de centenas de deserções do Exército sírio.

Nos últimos dias, o isolamento do regime deu um salto a partir da decisão da Liga Árabe, capitaneada pela Arábia Saudita e pelo Qatar, de suspender a Síria enquanto país-membro por descumprir as resoluções de fim da repressão e ingresso livre de observadores da Liga Árabe.

No último dia 22, a assembleia geral da ONU votou por 114 a 9 pela condenação do regime sírio por desrespeito aos direitos humanos. O Brasil vinha apoiando o regime, mas também votou a favor, enquanto a Rússia e a China se abstiveram. Somente Irã, Venezuela, Cuba e Nicarágua se posicionaram contra a resolução, numa clara demonstração de que não aprenderam nada com a derrubada de Kadafi e fazem o mesmo tipo de defesa incondicional do assassino Assad em nome de uma suposta luta anti-imperialista. Assim, deixam novamente a bandeira da defesa das liberdades democráticas nas mãos do imperialismo hipócrita e se recusam a defender o povo sírio, massacrado pela ditadura de Assad.

A oposição e a “ajuda” internacional
A oposição síria está atualmente dividida em dois setores. O setor minoritário, formado em Damasco por personalidades sírias, defende a reforma do regime e se opõe à intervenção estrangeira. O outro setor conformou o Conselho Nacional Sírio após reuniões na Turquia e em Bruxelas, com 190 membros, dos quais 60% estão dentro da Síria. Participam a Irmandade Muçulmana, liberais, as diversas facções curdas e aparentemente os Comitês de Coordenação locais. Estes comitês foram os que chamaram as mobilizações e hoje conformam o real motor da revolução. São a expressão síria do mesmo fenômeno de jovens ativistas, nas distintas cidades, utilizando as ferramentas da internet e redes sociais para articular as mobilizações contra o regime assassino.

A posição majoritária do Conselho é pela saída de Assad antes que as coisas fiquem piores, mas flertam com a possibilidade de intervenção estrangeira, seja ela limitada aos países árabes e à Turquia, seja ela limitada pela chamada zona de exclusão aérea e naval. Burhan Ghalioun, presidente do CNS, indagado sobre um eventual pedido de intervenção estrangeira, respondeu que no momento nenhum país quer intervir militarmente na Síria, mas “quando nos encontrarmos diante deste desejo, tomaremos a posição apropriada”.

Essa possibilidade é um grande perigo para a revolução: pode significar um freio ao processo revolucionário, o desarmamento dos Comitês que coordenam as manifestações e também uma repressão ainda maior contra os ativistas e lutadores.

A opção pela intervenção estrangeira não é majoritária dentro do Exército Livre da Síria. Apenas uma parte desse Exército, que é formado pelos oficiais dissidentes e que ainda não aderiu ao CNS, pede a intervenção internacional para criar uma zona de exclusão aérea e marítima, além de uma faixa do território setentrional sírio para que o Exército Livre possa operar militarmente a salvo das tropas de Assad.

Pressão dos Estados Unidos?
Como ocorreu no caso da Líbia, em que correntes chavistas e castristas apoiavam a permanência de Kadafi por considerá-lo um governo democrático e nacionalista que vinha sendo pressionado pelo imperialismo para deixar o poder, agora na Síria a mesma interpretação está de volta. Essas mesmas correntes vêm analisando as revoltas na Síria não como uma revolução democrática e popular, mas como uma provocação por parte dos Estados Unidos para que o governo Assad rompa relações com o Irã e, ao mesmo tempo, deixe de apoiar as forças palestinas que lutam contra Israel. Em artigo publicado no site Rebelión, que expressa essas posições políticas, diz-se que:

“O que preocupa os Estados árabes que apoiam a derrubada do regime sírio não é o confronto entre este e os manifestantes partidários da reforma na Síria. Nas palavras de um alto diplomata do Golfo, investiram-se uma década inteira e milhões de dólares tratando de afastar o presidente Bashar al-Assad de sua aliança com o Irã e para convencer Assad a mudar a política exterior de seu país em duas áreas chaves – Iraque e Líbano –, mas foi em vão. Segundo esse mesmo diplomata, a questão palestina não foi incluída nessas conversas, mas também faz parte da pressão americana contra Assad, para fazer com que os grupos da resistência palestina próximos à Síria se afastem para que se possa colocar em marcha a criação de um Estado palestino, socavando os partidários da resistência armada.”

Na verdade, o que esse artigo ignora é que a Síria vinha negociando e aceitando as imposições dos EUA há tempos. Por isso retirou-se do Líbano há seis anos, mantém a fronteira com Israel e o território que Israel usurpou da Síria nas colinas de Golã em rigorosa trégua.

Voltemos à história da Síria
Esse discurso da “conspiração colonial” vem sendo usado pelo governo sírio e seus apoiadores como forma de mostrar que a revolução das massas contra o regime não passa de uma manobra orquestrada pelo imperialismo para derrubar Assad e se apossar das riquezas do país. É um discurso que pressupõe, antes de mais nada, a distorção da própria história da Síria, de seu papel no mundo árabe e suas relações com o imperialismo. E, depois, a supressão total dos fatos que desencadearam a revolução e seu próprio desenrolar, com as massas ocupando as ruas e praças e a quantidade incalculável de mortos, presos e torturados, incluindo jovens e crianças indefesas, incluindo a perseguição à liberdade de imprensa para que nada disso seja divulgado.

Desde que obteve a independência em relação à França, em 1946, a história da Síria como república parlamentar esteve marcada por uma sequência de golpes militares e tentativas de golpe. Logo depois da independência, o país entrou em guerra com Israel, em 1948, e sofreu uma derrota militar. Em 1963, na esteira das lutas de libertação nacional que sacudiram o Oriente Médio, o Baath tomou o poder em uma revolta militar e viveu um período de enfrentamento com o imperialismo, alinhando-se ao nasserismo egípcio e ao Baath iraquiano. Enfrentou-se com Israel em várias guerras e colocava-se como defensor da causa palestina, intervindo em uma série de confrontos com Israel, como a Guerra dos Seis Dias em 1967, a Guerra do Yom Kippur em 1973 e a defesa do Líbano contra Israel em 1978.

A dominação do Baath vem desde essa época, mas, na medida em que foi perdendo a característica de defesa do nacionalismo pan-árabe, seu caráter reacionário foi ficando mais claro. O atual presidente, Bashar al-Assad, herdou o poder do pai, Hafez al-Assad, que governou de 1970 até sua morte em 2000. Ele se aproveitou de seu posto militar e na cúpula do Baath para chegar ao poder, dando um golpe dentro do próprio partido e exercendo um feroz controle do aparelho de Estado. Foi reeleito sucessivas vezes presidente do país, ao mesmo tempo em que se mantinha como secretário-geral do Partido Baath. No início dos sucessivos mandatos, ainda se apresentava como defensor do nacionalismo árabe e rejeitava as negociações de paz com Israel, e rompeu com Sadat quando este levou o Egito a assinar o tratado de paz com Israel. Mais tarde, seu governo, como o Baath iraquiano de Saddam Hussein e as demais correntes que se reivindicavam nacionalistas árabes, começou a ceder e buscar negociações com o imperialismo. Aceitou intervir no Líbano contra os palestinos e para impor uma estabilização que impedisse a queda do governo, mantivesse o Estado confessional libanês e deixasse as tropas sírias no território como garantia da ordem durante anos, com o beneplácito do imperialismo. Foi parte da santa aliança promovida pelo governo norte-americano de Bush pai em 1990 para invadir o Iraque governado pelo Baath. Traiu a causa árabe e até mesmo seus correligionarios do Baath no vizinho Iraque.

Desde que assumiu o poder, Assad intensificou a política de negociação com o imperialismo e tratou de reaproximar a Síria do governo norte-americano e, na prática, serviu de suporte de Israel no Oriente Médio, como já havia ocorrido antes com o Egito de Mubarak e a Líbia de Kadafi. Tanto é assim que as forças do Hamas que estão em território sírio já vêm sofrendo a perseguição por parte do regime e sendo convidadas a se retirar do país. O passado de atritos com Israel vem agora sendo usado pelos defensores de Assad como álibi para as pressões norte-americanas contra a Síria. Mas não fazem nenhuma avaliação do significado desses últimos anos de entrega e traição a seu povo e aos demais países árabes para mendigar um pouco das migalhas que caem da mesa do imperialismo.

Rever um pouco da história da Síria é fundamental para perceber a trajetória das relações políticas entre as burguesias árabes, que defendiam um projeto nacionalista entre os anos 50 e 70, principalmente após a criação do Estado de Israel, em 1948, e como essas relações foram se transformando com a dominação imperialista no Oriente Médio. É a demonstração da incapacidade das burguesias nacionais e dos movimentos nacionalistas burgueses de encabeçar uma saída de libertação nacional para seus povos. Mais cedo ou mais tarde, acabam capitulando ao imperialismo em função de seus interesses. Totalmente dependentes do mercado mundial para a exportação do petróleo, as burguesias árabes se submeteram e abandonaram qualquer veleidade de uma saída independente e tiveram de engolir a presença do enclave imperialista de Israel como cão de guarda na região. Hoje, essas burguesias, mais do que parceiras do imperialismo, são serviçais de sua política de espoliação das riquezas do Oriente Médio, de condenação das massas à penúria e a governos ditatoriais sangrentos.

É justamente contra esses governos e sua política totalmente pró-imperialista que a “primavera árabe” explodiu. E em seu bojo veio a revolução na Síria, uma revolução cujo pavio foi aceso pelo próprio governo ao reprimir violentamente uma pequena manifestação em Damasco pelas liberdades democráticas. Uma revolução que se incendiou ainda mais com a vitória das revoluções tunisiana e egípcia. O caráter feroz do regime e sua polícia secreta, donos da Síria há quatro décadas, veio à tona, às claras, para quem quisesse ver. Outro pavio que ajudou a incendiar a revolução na Síria foi o total descaso do governo para com as reivindicações do povo. Como disse Elias Khoury, em artigo para o site Rebelión, “o regime sírio substituiu a expressão ‘ratos’, utilizada por Kadafi para descrever os manifestantes líbios, por ‘micróbios’, numa demonstração de arrogância que só podia abrir caminho para a repressão impiedosa como único meio de frear o movimento popular, convertendo assim cada manifestação em um campo fértil para o assassinato e a violência”. (Quem conspira contra a Síria?, Rebelión, 11/11/2011)

Esses são os fatos, e qualquer análise sobre a revolução síria, se não quiser distorcer a realidade, deve partir deles. Só a partir desses fatos é possível entender o caráter da revolução síria em sua condição de revolução popular, iniciada por uma população em defesa de sua dignidade humana, pisoteada pelas botas militares e humilhada por um regime prepotente, que condena o país à fome, ao desemprego e à ameaça de fragmentação pela ação do imperialismo, que só a revolução poderá evitar.

Conflito interreligioso?
Existe outra tentativa por parte dos setores que apoiam o regime de desqualificar a revolução das massas sírias: caracteriza as revoltas como um conflito inter-religioso entre a maioria sunita, influenciada pelos fundamentalistas islâmicos, e as comunidades religiosas minoritárias (cristãos, xiitas, alauítas e drusos), protegidas pelo regime “laico” do Partido Baath.

De fato, as divisões inter-religiosas são grandes na Síria e fazem parte integrante de sua rica história. A maioria da população é de origem semita. Os muçulmanos são cerca de 90% do total, sendo 74% sunitas e 15% outros, incluindo os alauítas, os xiitas e os drusos. Existem cidades, como Khabab, que são inteiramente católicas. Há ainda uma pequena comunidade de judeus sírios (cerca de 4.500 pessoas). Os cristãos, cerca de 10% da população, são em ampla maioria constituídos de ortodoxos e católicos de rito oriental. Um dos mais antigos patriarcados cristãos, o de Antioquia, foi transferido durante a Idade Média para Damasco. Hoje esta cidade é a sede da Igreja Antioquina de confissão ortodoxa. Também há em Damasco um patriarca católico de rito grego.

No entanto, o conjunto de comunidades étnicas e religiosas que constituem o país, tanto muçulmanas como cristãs, assim como o ressurgimento do integralismo islâmico, nunca representaram uma fonte de conflitos, pois em geral conviveram pacificamente. Os conflitos sectários que surgiram em Homs na verdade são iniciados e alimentados pelo próprio regime para criar uma cultura de medo entre os cristãos, alauítas e drusos e com isso evitar sua maciça adesão à revolução. A palavra de ordem cantada nas mobilizações é clara: “Um, um, um, o povo sírio é um só!”.

Uma revolução democrática e popular
O verdadeiro caráter da revolução na Síria tem de ser encontrado, então, nas condições concretas em que vivem as massas. Um regime de 40 anos de ditadura militar foi alquebrando as condições produtivas do país, levando o povo à debacle e a própria burguesia à paralisia econômica. A tal ponto chegou a hostilidade que até mesmo a maioria da burguesia, inclusive a sunita, que apoiava Bashar, vem se opondo a ele e ampliando o isolamento do regime. Mesmo a comunidade alauíta, que apoia majoritariamente o regime, o faz não por laços religiosos ou “tribais”, mas pela presença desproporcional na alta hierarquia do Estado e das Forças Armadas.

Assim, o que vem ocorrendo na Síria é uma revolução popular e democrática por melhores condições de vida e pelo fim da ditadura militar.

Apesar dos cinco mil assassinados pelo regime, dos milhares de presos e exilados no Líbano e na Turquia, a balança está pendendo contra Bashar. O momento é de aprofundar a revolução com um projeto político claramente anti-imperialista e democrático que atraia as bases do Exército, levando ao colapso do regime. Uma vitória na Síria terá um tremendo impacto em toda a região e no mundo, mostrando que a via revolucionária de transformação da sociedade voltou à agenda das lutas operárias, juvenis e populares.

Os últimos acontecimentos na região fortalecem a revolução na Síria. No Egito, a juventude retomou a Praça Tahrir e exige a saída imediata dos militares. No Bahrein, as mobilizações estão voltando. No Iêmen, a renúncia do ditador Saleh foi bem recebida nas ruas, mas sua anistia é amplamente condenada nas mobilizações. A revolução no mundo árabe continua pulsando, ainda que com graves perigos.

O primeiro e mais importante é a ausência de uma direção revolucionária com apoio de massas, que possa conduzir a revolução até a tomada do poder por um governo dos trabalhadores. O segundo é o desarmamento da população. É necessário que a população se organize em milícias armadas urgentemente, antes que seja totalmente dizimada pelo governo. Com as deserções no Exército, inúmeros grupos militares passaram a pertencer ao Exército Livre. A divisão do Exército sírio debilita o regime e é muito importante para a vitória das massas, mas é preciso que esse Exército esteja sob controle de uma direção revolucionária das massas sírias, para que não se converta em instrumento dos interesses da burguesia e do imperialismo. O terceiro perigo é uma intervenção militar exterior, que viria para esmagar a revolução e não para “salvar as massas”, como alardeia o imperialismo.

A única forma de evitar esses perigos é seguir adiante, fortalecer e centralizar os Comitês de Coordenação locais, estendê-los para as Forças Armadas e continuar lutando até a derrota definitiva de Assad.

Fonte: litci.org.br