População da segunda maior favela do país reage à violência policial na capital paulistaMais uma vez, a polícia entrou numa favela em São Paulo e matou um inocente. Desta vez, a vítima era Ana Cristina de Macedo, 17 anos, baleada quando saía do supletivo na noite de 31 de agosto. A estudante foi morta durante confronto entre Guardas Civis Metropolitanos (GCMs) de São Caetano do Sul e supostos bandidos.

Ana Cristina tentou se proteger entre os carros estacionados na rua Cônego Xavier, mas morreu com uma bala no pescoço, disparada por policiais da Guarda Civil Municipal de São Caetano do Sul. De acordo com informações oficiais, os policiais estavam perseguindo um Ford Ka que teria sido roubado em São Caetano.

Diante do assassinato de uma inocente, a população se rebelou. Rapidamente, ruas foram bloqueadas e veículos ardiam em chamas. A população montou barricadas com pneus e pedaços de madeira para barrar a passagem da polícia e, sob os gritos de “assassinos”, jogou pedras contra os policiais.

O protesto só foi controlado quando a elite das forças repressivas chegou ao local. As entradas de Heliópolis ficaram cheias de soldados e agentes do Grupo de Operações Especiais (GOE) e do Grupo de Repressão a Roubos e Assaltos (Garra). Logo em seguida, bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e tiros de borracha foram despejados para tentar dispersar a multidão. Depois, os telejornais vomitavam informações tratando de convencer a população de que o protesto havia sido organizado pelo tráfico de drogas. Um suposto bilhete chamando a população a se revoltar em troca de cestas básicas foi apresentado como “prova”. Mas nenhum morador disse tê-lo recebido.

Essa desculpa já foi utilizada pela polícia para criminalizar outros protestos contra a violência policial. Foi o que ocorreu em Paraisópolis, Tiquatira, Vila Jacuí e no Jardim Filhos da Terra. Nessa última comunidade, os protestos explodiram uma semana antes da revolta em Heliópolis, devido ao assassinato de um jovem pela polícia.

Antonia Cleide Alves, presidente da União de Núcleos, Associações e Sociedades de Moradores de Heliópolis e São João Clímaco (Unas), nega que o protesto tenha partido do tráfico. “Não foi. Houve pessoas que pegaram carona na revolta legítima pela perda da nossa jovem? Houve. Mas foi a indignação que motivou o protesto”, afirma.

Antonia aponta outros motivos para tentar ligar o protesto ao tráfico de drogas. “Se o mesmo tivesse acontecido em qualquer bairro da cidade seria um escândalo, mas, como é aqui, temos de repetir todo o tempo que nós é que fomos as vítimas”, diz.
E a comunidade de Antonia é uma das regiões mais pobres de São Paulo. Só esse motivo basta para “justificar” a ação repressiva da polícia.

Heliópolis é a maior favela da capital e a segunda do Brasil – perde apenas para a Rocinha, no Rio de Janeiro. Entre seus mais de 125 mil habitantes, mais da metade tem até 25 anos. De cada dez adolescentes de Heliópolis, seis estão desempregados e quatro não frequentam a escola. A maior causa de morte entre jovens de 12 a 20 anos é o homicídio causado por briga do tráfico de drogas. Como Ana Cristina, 91% dos habitantes de Heliópolis nasceram no Nordeste e vieram para São Paulo em busca de “uma vida melhor”. Como se pode ver, Heliópolis não se diferencia de outras favelas espalhadas nas grandes cidades. (Fonte: Unas).

A revolta em Heliópolis, assim como as outras cinco realizadas nos últimos meses, serve como um grito de basta à repressão da polícia e à criminalização da pobreza. Se os abusos da polícia já viraram rotina, as revoltas populares são um fato novo. “Não vamos nos calar enquanto matam e humilham inocentes”, querem dizer os moradores da região.

A repressão policial também evidência que a burguesia paulista não vai tolerar as manifestações. Para isso, adotou a nova política de segurança pública aplicada pelo governo do Rio de Janeiro e pelo governo federal. Também vai continuar criminalizando qualquer tipo de revolta. Afinal, para nossa asquerosa classe dominante, pobre quando resolve protestar é bandido.

Carta do professor da aluna assassinada pela polícia em Heliópolis

Leia abaixo trecho da carta de Alan Livian, professor de Ana Cristina de Macedo, morta em tiroteio na favela de Heliópolis

“É que mataram um estudante que poderia ser filho de qualquer um de vocês”. Com essas palavras se explicou o motivo dos protestos que seguiram à morte por uma bala perdida de Edson Luis, estudante secundarista que almoçava no restaurante Calabouço, em 1968. Edson, que na época sonhava em virar universitário, já não poderia sonhar com mais nada, diziam os manifestantes na época.

É que mataram uma estudante. Ana Cristina. E não foi naquela ditadura. Foi agora. Segunda-feira. Voltava para casa. Tinha dezessete anos e deixou uma filha de um ano e oito meses. Se tinha sonhos? Sim, muitos. E isso eu posso dizer com toda certeza. Pois até o semestre passado fora minha aluna. Sentava na primeira fileira. Também falava de continuar estudando, de voltar pra terra natal, falava de amores. Falava e mostrava fotos de sua filha. Escutava com atenção as explicações na aula e tentava produzir o melhor. Agora não vai poder sonhar mais nada. Uma bala perdida que se alojou em seu pescoço tirou tudo isso. Tentou se esconder atrás de um carro, mas não conseguiu. Mais uma vez entraram na favela atirando.

Agora ouço os helicópteros voando baixo aqui perto. Mais cedo ouvíamos os gritos e barulhos de tiros. Tudo para conter a manifestação de indignação dos moradores do lugar. Aos poucos chegam notícias do gás de pimenta, das bombas. Como moro no Ipiranga, tudo isso é muito perto e ao mesmo tempo muito longe. A distância de um viaduto que nos separa da favela. E tentamos dormir quase em paz.

Antes do recesso, um outro estudante me disse que a polícia está matando demais na favela. Que para dispersar uma festa na rua que atrapalhava o trânsito, junto com balas de borracha usaram balas de verdade, resultando em um morto, outro estudante da mesma escola. E esses estudantes não são mártires de nenhuma luta contra ditadura. São meras estatísticas. Números em nossa tão fulgurante democracia republicana.

Sua luta é muito mais dura, pois é cotidiana. Luta por sobreviver, por existir. A tortura, os assassinatos e a opressão continuam. Mas todos saúdam uma pretensa democracia e relembram (mas não muito, que não se deve mexer em certos esqueletos no armário) uma ditadura que segundo eles juram, acabou. Deixemos isso para os livros de história. E um salve para nossos heróis.

E que Heliópolis e seus mortos permaneçam bem longe, depois do viaduto”.

Alan Livan, professor de artes da rede pública de São Paulo em Heliópolis.
Fonte: Correio da Cidadania

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