O dia 20 de janeiro de 2012 foi dia de festa. Os moradores do Pinheirinho estampavam no rosto a alegria de quem estava garantindo o seu direito à moradia. Uma trégua de 15 dias para a desocupação e o interesse da União no terreno aumentavam a possibilidade de se chegar a um acordo para a regularização da área. A trégua fora assinada pela própria Selecta, massa falida que se diz proprietária do terreno.
O ato foi bonito. Estavam presentes parlamentares, partidos políticos, sindicalistas e ativistas, todos apoiando e parabenizando os moradores pela vitória. Dona Teresa, uma das fundadoras do bairro, distribuía uma lembrancinha: um vasinho com um pinheirinho e os dizeres “Vitória da Ocupação Pinheirinho – 20/01/2012”.

À noite, os moradores fizeram festas em suas casas. Estavam muito felizes. No dia seguinte, teria churrasco. A cantora de rap Lurdez da Luz faria um show na Praça Quilombo dos Palmares. Mas o show foi cancelado por um ataque ilegal, cruel e covarde. Poucas horas depois, o Pinheirinho se transformaria num campo de guerra, confirmando tragicamente o ditado popular “alegria de pobre dura pouco”…

Domingo cruel
O cenário no entorno do Pinheirinho era desolador. Deixamos o carro numa rua distante e saímos a pé para tentarmos nos aproximar. O policiamento era desproporcional. Uma senhora chegava à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Campo dos Alemães, bairro vizinho ao Pinheirinho, passando muito mal. A sua filha chorava desesperada: “essa polícia de merda, tão matando a gente”.

Andamos mais um pouco e, num ponto de ônibus, muitas pessoas se amontoavam olhando para o Pinheirinho sem saber o que fazer. Um garoto de 14 anos exibiu a perna ferida por uma bala de borracha. Ele disse que viu uma mulher levando um tiro na boca dentro do Pinheirinho.

Seu Ataíde, que construiu a primeira casa de alvenaria do bairro, saiu para comprar pão e foi proibido de entrar novamente. “A gente é tudo trabalhador, isso aí é covardia, crianças sendo feridas”. Ele contou que a filha de uma amiga passou mal e foi atendida na UPA. Ao receber alta, também não pode voltar para sua casa.

Os moradores foram pegos completamente de surpresa por volta das 5h de domingo, 22 de janeiro, com o barulho de helicópteros. Por terra, a tropa de choque da Polícia Militar chegou derrubando o portão da entrada principal. O ataque foi protagonizado por um efetivo de 2 mil soldados da PM de São Paulo, da tropa de choque – inclusive a tropa de elite – e da ROTA. Havia mais policiais na desocupação do Pinheirinho do que na invasão à Rocinha. Em dois helicópteros, viaturas, blindados e cavalos, eles estavam armados até os dentes com tiros de borracha, bombas de gás, spray de pimenta, cassetetes e armas de fogo que seriam disparadas muitas vezes, como contaram todos os moradores com quem conversamos.

As pessoas saíram das casas assustadas para ver o que estava acontecendo. A polícia foi passando pelas ruas mandando, de forma violenta, que voltassem para dentro. Em seguida, mandou que saíssem rápido, apenas com o que fosse necessário. Na confusão, muitos não conseguiram pegar nem os documentos. “Eles barbarizaram, prenderam a gente dentro de casa, apontaram arma”, contou Miriam, que vive com o esposo Francisco e um filho de três anos. “Já matei gente, você não passa nem na porta”, teria dito o policial para ela.

Crimelta não teve nem dez minutos para pegar seus pertences. “Tiraram a gente da cama, ninguém escovou nem os dentes”, conta. Depois que ela saiu, não pode voltar para pegar os filhos: a vizinha que teve de buscar. No momento do ataque, a moradora Sandra conseguiu postar no Facebook: “Tropa de choque no Pinheirinho!!! Soltando bomba de gás. Quanto medo nossas crianças estão passando!!! Jesus Misericórdia!!!”
Os relatos dos moradores são fortes. Todos reafirmam a violência e a crueldade da ação. “A gente está aqui é para ver o bagulho ficar louco”, disse um PM a uma mulher que passava mal. Segundo os moradores, a polícia atirou muito, inclusive com arma letal. Toninho Ferreira, advogado do Pinheirinho, levou tiros de bala de borracha. O trabalhador David Washington Castor Furtado foi baleado nas costas com o filho no colo. Ele sobreviveu, mas não movimenta os membros inferiores.

Um grupo que tentou se refugiar na igreja foi retirado de lá. A igreja e o barracão, locais que protegeriam mulheres, crianças e idosos em caso de invasão policial, foram os primeiros a serrem derrubados, ainda no domingo. Muitas bombas de gás foram jogadas, e spray de pimenta foi borrifado pelos helicópteros. Muitos passaram mal.
Mas isso seria só o começo.

No campo de concentração
Os moradores eram encaminhados ao Centro de Triagem, numa área em frente ao bairro do Pinheirinho. Lá foram construídas tendas para recebê-los. O que a prefeitura chamou de atendimento social era, na verdade, um campo de concentração. Aqueles que um dia antes tinham casa, comida decente, móveis, eletrodomésticos estavam agora jogados na lama literalmente sem saber pelo que aguardavam.
O que assistimos lá é indescritível. Pessoas vagavam e eram agredidas. Numa tenda, assistentes sociais faziam um cadastro e marcavam as pessoas com uma pulseira azul que, junto com o adesivo numerado que receberam ao deixar suas casas, compunha a versão moderna da tatuagem nazista.

Pessoas como Miriam, Francisco e o filho, que tinham programado fazer um churrasco no almoço, recebiam, agora, uma ração de arroz, farofa e feijão sem caldo. Encontramos muitos pratos atirados.

“A gente não precisa desta comida, nós não somos bichos”, chorava uma mulher indignada. A Guarda Civil Municipal fazia o policiamento do local e, ao menor movimento de insatisfação dos moradores, partia para a agressão. Assistimos, de longe, quando a guarda começou a disparar na multidão. Do lado de fora, a tropa de choque ajudava jogando bombas. Vimos policiais atirando e rindo. Keiti nos contou que a guarda não queria deixar as pessoas saírem: “aqui está igual a uma prisão”, fala. Alguns começaram a reclamar embaixo da tenda lotada, e foi a deixa para que a guarda jogasse bombas.

Mulheres e crianças se apavoraram e correram para a área de atendimento. A guarda foi atrás e disparou. Testemunhas relatam que foram usadas armas de fogo. Quando conseguimos entrar, pudemos ver os guardas empunhando revólveres. Uma criança de cerca de quatro anos foi atingida. Gravemente ferida e sangrando muito, ela foi levada numa ambulância e não soubemos mais seu paradeiro.

Os moradores tinham como alternativa ir para a casa de parentes ou para abrigos da prefeitura. Mas a pressão maior era para que deixassem a cidade. Havia uma tenda em que as pessoas recebiam passagens para deixarem a cidade e retornarem a seus locais de origem, numa clara política higienista.

Encontramos seu Jaime que, dias antes, tinha nos recebido em sua casa, mostrando, orgulhoso, a sua horta e as coisas que adquirira com tanto esforço. Com os olhos vermelhos, revoltou-se com a covardia: “um monte de carne e osso não faz nada com quem está armado”.

As condições do local ficavam mais insuportáveis conforme se aproximava a noite. Uns poucos banheiros químicos atendiam milhares de pessoas. Com a chuva, a lama foi se misturando ao esgoto. No meio da lama, algumas sandálias perdidas na hora da confusão afundavam.

Foi Toninho Ferreira que organizou o pessoal para se transferir para a igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, próxima dali. Com as poucas coisas que conseguiram pegar, as pessoas seguiram numa passeata silenciosa. Na igreja, as condições são precárias, mas nada se compara ao Centro de Triagem.

‘Mamãe vamos pra casa’
As pessoas dormiram amontoadas. Não há banheiros suficientes, e o banho vinha de uma mangueira ou da solidariedade dos moradores das redondezas. Faltavam fraldas e alimentos adequados para as crianças. Apesar de tudo isso, esse abrigo, organizado pelo movimento, era o melhor dos três existentes.

Miriam e Francisco também optaram pelo abrigo. Ela disse que não sabe o que vai ser da sua vida e expressou a tristeza de estar naquela situação: “só de você estar com o seu filho pedindo ‘mamãe, vamos pra casa’… ele passou a noite no chão frio”. Perguntamos a Miriam por que ela resolveu não ir para o abrigo da prefeitura. Ela disse que estavam separando os filhos das mães, alegando que elas não tinham condições financeiras e psicológicas para criá-los.

Num abrigo da prefeitura que visitamos, a situação era desumana. Logo na entrada, nos deparamos com uma cena chocante. Uma senhora deficiente, vítima de AVC, estava alojada no banco de trás do carro da família. As pessoas receberam colchões e estavam alojadas num ginásio em que caíam fezes de pombos do telhado. Quando estivemos lá, havia faltado água durante quase todo o dia.

Nesse mesmo dia, o governador Geraldo Alckmin foi à TV para dizer que os despejados do Pinheirinho estão recebendo assistência de primeira. Os abrigados nesses locais têm toque de recolher. Moradores que andam identificados pelas pulseiras reclamam que estão sendo agredidos nas ruas pela PM.

Violação de direitos humanos é muito pouco para classificar o que está acontecendo em São José dos Campos. O governo Alckmin está mergulhado no sangue do povo do Pinheirinho.

Vidas saqueadas
Dois dias após o início do massacre, as pessoas começaram a ser chamadas para retirar seus pertences. A todo o momento, elas retornam do bairro em prantos. Muitos estão se deparando com as casas já demolidas. Em outras, os bens desapareceram.
Maria Conceição disse que a porta estava arrombada. Do lado de fora, estavam jogadas apenas a cama e uma estante. Todo o restante – eletrodomésticos, móveis, roupas, objetos pessoais – tinham desaparecido. “Minhas compras, estava tudo jogado, até ovo jogado na casa tinha”, conta.

Muitas pessoas estão só com a roupa do corpo, e algumas não têm sequer documentos, pois a polícia não deu tempo suficiente para retirá-los. Uma senhora disse estar com medo de sair, ser morta pela PM e enterrada como indigente.
O casal Sônia e Dênis teve o lacre da casa estourado e seus bens quebrados. “Parece que tinham feito uma festa”, falou Sônia indignada. Ela contou que, quando um morador reclama, a polícia está agindo com violência, mandando calar a boca.
O Pinheirinho está completamente cercado pela Polícia Militar, com um efetivo gigantesco. A entrada está terminantemente proibida sem a autorização da PM. Se só a polícia teve acesso aos bens, então é ela quem deve dar explicações sobre esses casos. Alguém tem de pagar pelos prejuízos.

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