Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Ele nasceu Renato Manfredini Júnior, em 27 de março de 1960, mas se tornou famoso com um sobrenome inspirado no poeta e filósofo iluminista Jean-Jacques Rousseau, no filósofo racionalista inglês Bertrand Russell e no pintor pós-impressionista francês Henri Rousseau.

Assim era Renato Russo: uma salada de referências e homenagens bastante exemplar do ecletismo que marcou a vida e a obra de um sujeito que não via barreiras entre poesia e filosofia, entre arte e a própria vida.

Autor de letras complexas, muitas vezes “quilométricas”, mas inesquecíveis, e dotado de posturas irreverentes, tanto no palco quanto na vida, Renato Russo incorporou como poucos o papel de “menestrel” de um mundo onde desilusões e esperanças colidem verso após verso. Um mundo onde o desejo de liberdade e a certeza da impossibilidade de sua satisfação no sistema em que vivemos convivem em luta permanente. Uma luta que, nos versos e na voz de Renato, às vezes brotou como grito de guerra, noutras como denúncia afiada e, em outras tantas, como doloroso lamento.

O trovador solitário
Quando estourou na mídia, juntamente com a Legião Urbana, em meados dos anos 80, Renato era uma expressão meio tresloucada das contradições que rondavam o país e o mundo naquele momento. Mas sua história tinha começado a ser escrita anos antes. Proveniente de uma família de classe média, o músico já tinha passado por uma série de experiências pessoais e artísticas que moldaram sua personalidade e criatividade: entre 7 e 10 anos, viveu em Nova York; aos 13, mudou-se para Brasília; dos 15 aos 17, conviveu com uma doença óssea que o manteve preso à cama e, conseqüentemente, aos livros e à música.

Nesse período, apresentando-se como “Trovador Solitário”, Renato compôs futuros sucessos como “Faroeste Caboclo” e montou a banda Aborto Elétrico (1978-1982), de onde surgiram bandas como Capital Inicial e a Legião.

Os quatro primeiros discos da Legião não só são marcas registradas daquele período, como também explicam o fenômeno.

Poucos artistas conseguiram, de forma tão ampla e complexa, levar para a arte os sentimentos controversos que abalaram o Brasil durante aqueles anos. Afinal, havíamos acabado de derrubar uma ditadura, mas suas marcas e mazelas continuavam por todos os cantos da sociedade; vivíamos a esperança da construção de um novo país, confrontados diariamente com as mais nefastas negociatas; desejávamos abraçar a liberdade sexual e, repentinamente, nos víamos cercados pelo medo da Aids.

Mudaram as estações e nada mudou
Quando o álbum “Legião Urbana” foi lançado, em 1985, muito daquilo que os jovens (e, inclusive, não tão jovens, que haviam militado no decorrer dos anos 70 e 80) da época tinham engasgado em suas gargantas ou sufocado em seus peitos ganhou voz e vida nos versos de músicas como “Geração Coca Cola”, “Será”, “Ainda é cedo”, “Por enquanto” ou “Baader-Meinhof Blues”.

Algo semelhante aconteceu em “Dois”, lançado em 1986. Para os mais politizados, não deixava de ser emocionante ouvir, logo na primeira faixa do vinil, um trecho de “Serᔠ(Será só imaginação? Será que nada vai acontecer? Será que é tudo isso em vão? Será que vamos conseguir vencer?) mesclado com os ruídos de um rádio tocando “A Internacional”.

Também causaram comoção a primeira menção feita por Renato à homossexualidade (em “Daniel na Cova dos Leões”), a tresloucada história de amor de “Eduardo e Mônica” e a quase desesperada “Tempo Perdido”.

Do mesmo período, vale lembrar da coletânea “Que País É Este”. Lançado em 1987, o LP reunia músicas desde 1978 (sete delas do antigo Aborto Elétrico), duas que entraram definitivamente para a história da música brasileira: “Faroeste caboclo” e a mirabolante e quilométrica história de João de Santo Cristo, contada num estilo que o próprio Renato definia como uma mescla de Raul Seixas e cordel; e “Que país é este”, transformada, desde sempre, em hino contra as muitas maracutaias feitas pelos mandatários do poder desde então.

Em 1989, o lançamento de “As Quatro Estações” foi marcado, além dos mega-sucessos, pelo fato de Renato levar multidões a cantar, juntamente com ele, que gostava de “Meninos e Meninas”, música que o cantor usou para assumir sua própria homossexualidade. Sobre isso ele declarou: “Eu estava precisando me assumir há muito tempo (…) mas fica aquela coisa, filho de católico, ‘você é doente’, etc.
No meio do caminho, eu já estava pensando: pô, eu sou um cara tão legal, eu não posso ser doente. (…) Eu sempre gostei de meninos – eu gosto de meninas também -, mas eu gosto de meninos. Como é que não é natural? Se eu sou assim desde os quatro anos, então sou doente, pervertido… ah, não!”.

Vitimado pelas contradições de seu tempo, pouco depois, em 1990, Renato Russo declarou ser portador do vírus HIV e, como muita gente naquela época, atravessou um verdadeiro martírio público, motivado pelo preconceito, pela falta de medicamentos e pelo isolamento, até sua morte, em 11 de outubro de 1996.

Ainda com a Legião, Renato lançou “V”, em 1991. Nele destaca-se “Metal contra as nuvens”, belíssi-ma música de 11 minutos e meio que é um desabafo frente aos descalabros trazidos por Fernando Collor.

Outros álbuns são “Música para acampamentos” (1992, coletânea ao vivo), “O descobrimento do Brasil” (1993) e “A tempestade ou o livro dos dias” (1996). Nesse período a relação da banda não foi exatamente das mais calmas, muito por conta, inclusive, da difícil personalidade do próprio Renato e de suas incursões em polêmicos discos solo, como “Equilíbrio Distante” (1995) e, particularmente, “The Stonewall Celebration Con-cert” (1994). Este é uma coletânea de músicas feitas ou celebradas por gays, cujo título faz referência à rebelião no bar Stonewall, que deu origem ao movimento GLBT em 1969.

Será que foi tudo isso em vão?
Dez anos depois de sua morte, Renato continua também emblemático de uma das facetas mais revoltantes do “contraditório” mundo sobre o qual ele desejou cantar e falar: a apropriação mercadológica de tudo e qualquer coisa.

Em nome da satisfação permanente de uma legião de fãs, desde 1996 as produtoras têm se desdobrado para retroalimentar o mito e o mercado. Não faltou nada: coletâneas especiais, versões acústicas, registros inéditos de shows, letras perdidas, regravações do Aborto Elétrico e tudo mais que se possa imaginar, não faltando o apelo sensacionalista e a mediocrização da obra de Renato Russo, através de intérpretes para lá de questionáveis.

Que o mercado atue dessa forma, contudo, não é o mais importante. Afinal, este é o seu papel e é contra isso que, também, lutamos.

Dez anos depois, o que realmente importa ao lembrarmos de Renato Russo é o fato de ele ter conseguido embalar diferentes gerações de jovens que, com suas letras, conseguiram dar voz a suas próprias angústias, cantar seus medos, gritar por seus desejos, verbalizar suas verdades, versar sobre sua vontade de mudar o mundo, chorar por seus amores e rir com a certeza de que nada foi em vão.

Em breve, nas telas
Há vários projetos cinematográficos sobre Renato e sua vida.
O primeiro deles deve ser lançado em 2007. Dirigido por Antonio Carlos da
Fontoura, o filme chamava-se “Religião Urbana” e centra-se na vida do
compositor, em Brasília, entre os 18 e 23 anos. Já o estreante René
Sampaio tem um projeto tanto tentador quanto difícil, transformar em filme os 159 versos (e nove minutos) de “Faroeste Caboclo”. Outro projeto, este de Denise Bandeira, também envolve uma música do cantor, que, certamente, daria uma bela história: Eduardo e Mônica.

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