Em reuniões, Lula promete que não “haverá surpresas” em seu governo e José Dirceu garante que tem a Bolívia “sob controle”Clique aqui para ler trechos dos relatórios

Que Lula desempenha o papel de “bombeiro” da América Latina, não é novidade. Desde sua posse, em 2003, vem sendo uma espécie de apaziguador nos principais conflitos da região, apoiado em sua trajetória de esquerda. O fato novo é a comprovação, via documentos dos próprios Estados Unidos, da ajuda que Lula ofereceu ao imperialismo.

O jornal Valor Econômico divulgou documentos (leia no final da matéria) com transcrições de conversas de representantes brasileiros, principalmente o então ministro da Casa Civil, José Dirceu, com George W. Bush, John Snow, Condoleezza Rice e outros figurões norte-americanos. José Dirceu transmitiu, segundo o jornal, a mensagem de Lula aos EUA, até sair do governo por envolvimento no escândalo do “mensalão”.

Dirceu informou a Condoleezza, numa longa reunião no dia 3 de maio de 2005, que Lula já estava “aconselhando” Hugo Chávez a moderar seu discurso. Quanto a Evo Morales, que era ainda pré-candidato à presidência da Bolívia, Dirceu afirmou que “o Brasil tinha a situação sob controle”. A preocupação do imperialismo com a Bolívia está no fato de que o país, rico em recursos naturais, tem uma história de lutas e revoluções, que derrubaram governos.

Lula não mediu esforços para se demonstrar confiável. O relatório de uma reunião com John Snow, em 2004, ressalta que “Lula disse que o Brasil está seguindo a política externa mais agressiva de sua história (citando a decisão de enviar tropas para o Haiti)”.

“Sem surpresas”
As conversas com os Estados Unidos começaram antes mesmo da posse de Lula.
Ainda durante a campanha eleitoral, em 2002, Lula manteve negociações com Donna Hrinak, então embaixadora dos estados Unidos no Brasil. Em busca de confiança do imperialismo e dos investidores estrangeiros, Lula procurou mostrar que iria manter a política conservadora de Fernando Henrique, sem rupturas. Segundo suas próprias palavras, sem ‘nenhuma surpresa’. Essa demonstração de que nada iria mudar ficou explícita na famosa “Carta aos Brasileiros”.

Segundo o Valor, o presidente brasileiro disse à embaixadora que “o Banco Central teria mais autonomia em seu governo do que ele admitia em público, uma das exigências dos organismos internacionais, como o FMI. A confirmação veio com a nomeação do banqueiro Henrique Meireles para a presidência do BC. Ao dar um retorno ao governo norte-americano sobre a conversa, Donna tranqüilizou os EUA, dizendo que “a prova mais difícil para Lula será manter na linha os doutrinários do próprio PT. Ele dá mostras de estar pronto para fazer isso, e sua vitória eleitoral arrasadora pode tornar isso possível politicamente”.

O mesmo relatório mostra que Donna acalmou Bush. “Lula salientou, repetidamente, que queria trabalhar com os Estados Unidos em geral e na Alca”, afirmou. A Alca, graças em boa medida à forte mobilização dos movimentos sociais, não teve forças para ser aplicada até hoje. Lula não deixou, contudo, de entregar o país à exploração estrangeira, através de acordos econômicos, da presença das multinacionais e da produção agrícola para a exportação.

Em dezembro de 2002, Lula foi recebido pessoalmente por Bush na Casa Branca, um privilégio concedido apenas a chefes de Estado em exercício. Não era uma questão menor que os Estados Unidos prestassem muita atenção à eleição de Lula. Era necessário o apoio dos petistas para manter o controle das massas e impedir que convulsões sociais e revoluções se alastrassem.

Acalmar o continente
Apenas um ano antes da eleição de Lula, a Argentina, considerada um modelo das políticas neoliberais, desabara e três presidentes foram derrubados. Infelizmente, por falta de uma alternativa revolucionária e da unidade dos lutadores, os trabalhadores não tomaram o poder em suas mãos e a revolta foi conduzida para as eleições. Com um discurso de esquerda, Nestor Kirchner foi eleito presidente.

Não era apenas na Argentina que as condições de vida impostas pelas políticas neoliberais se tornavam insuportáveis e o antiimperialismo avançou nas massas latino-americanas. Em 2003, na Bolívia, uma crise aberta em função da exploração das riquezas do país – gás e petróleo – levou os mineiros às ruas, trazendo atrás de si todo o povo pobre e os povos indígenas. Os protestos derrubaram o presidente Sánchez de Lozada. Evo Morales apresentou-se como a principal figura dirigente do movimento, o que permitiu sua chegada à presidência, em 2006.

No Equador, em 2005, a população derrubou presidente Lucio Gutierrez. Escorraçado pelas massas equatorianas, Gutierrez recebeu o asilo político no Brasil. Ele foi recebido pessoalmente por Lula. Assumiria a presidência, em seguida, mais um presidente “de esquerda”, Rafael Correa.

Não tendo uma opção nitidamente da classe trabalhadora, o povo começou a levar ao poder governos aparentemente de esquerda, como Kirchner, Evo e Correa, acreditando que esses poderiam mudar suas vidas. Se, por um lado, as revoluções foram contidas, por outro, os governos eleitos não eram os dos sonhos dos EUA. Era urgente manter os trabalhadores desses países sob controle. Para isso, Lula chegou num momento crucial.

“Transição gradual” em Cuba
Quanto a Cuba, na conversa com Condoleezza, em 2005, Dirceu afirmou que “tem laços pessoais muito estreitos com Cuba e Fidel Castro”. Fazendo um prognóstico do que aconteceria com a ilha, Dirceu disse que “as mudanças em Cuba serão promovidas por mais comércio, investimentos, remessas e visitantes de fora. Primeiro, as mudanças serão culturais. Depois, elas irão se espalhar para as esferas social e econômica. Quando o sistema econômico de Cuba finalmente se abrir, então o sistema político acompanhará. Não haverá nenhuma revolução ou levante; vai ser mais uma transição gradual”.

Assegurou, ainda, que “tanto ele quanto o presidente Lula tiveram conversas particulares com Castro e que ministros do governo também estão envolvidos”. Esse é o caminho que Cuba seguiu. Fidel Castro deixou o governo após décadas e assumiu seu irmão, Raúl Castro, um dos principais responsáveis pela restauração do capitalismo na ilha.

Venezuela, um capítulo a parte
A preocupação de Bush não era Fidel e sim Hugo Chávez, um homem de discursos inflamados contra o imperialismo “diabólico” norte-americano, apesar de não romper de fato com o imperialismo e as multinacionais e seguir pagando a dívida externa. Ganhou amplo apoio das massas trabalhadoras da Venezuela ao sofrer uma tentativa de golpe, apoiada pelos EUA, em 2002, e tornou-se uma referência no continente.

Esta seria a principal tarefa de Lula: conter a influência Chávez. Em março de 2005, Condoleezza Rice, em reunião com Dirceu, disse que o Brasil precisava mandar uma mensagem a Chávez, numa exigência explícita de que o governo brasileiro agisse para conter o venezuelano. Segundo o relatório dessa conversa, “Dirceu afirmou que Lula já tinha aconselhado Chávez sobre a necessidade de ser mais cuidadoso em sua retórica (dizendo a Chávez que ele estava ‘brincando com uma arma carregada’) e focar em prioridades econômicas e sociais”.

Diante do sentimento antiimperialista do continente, os discursos de Hugo Chávez tiveram uma aceitação que não era interessante aos EUA. Em novembro de 2005, no encontro de líderes regionais, num estádio lotado em Mar del Plata, na Argentina, Chávez discursou contra Bush, dizendo, entre outras coisas, que ele fedia a enxofre, comparando-o a um demônio.

No dia seguinte, em Brasília, Lula adiantou-se em receber Bush para reafirmar sua simpatia pelo presidente norte-americano e não deixar dúvidas de que os acordos entre os dois governos permaneceriam. Contraditoriamente, os documentos aos quais o Valor teve acesso também revelaram que Chávez, pouco antes do discurso na Argentina, havia manifestado interesse em se reaproximar dos EUA.

Dois discursos, uma política e uma única saída para os trabalhadores
O que se pode extrair desses fatos? A posição e o jeito de governar de Lula estão definidos. Os poucos recados enviados por Lula a Bush – como “cuide de sua crise”, referência aos efeitos da grave crise econômica norte-americana – são apenas para manter as expectativas que existem com seu governo. Seus encontros com presidentes latino-americanos ditos de esquerda também não são prova de mudanças ou de aproximação com posições progressivas. Aliás, estas também são quase inexistentes nesses governos. Parece ser muito mais uma forma de manter sob controle a estabilidade na região e, assim, cumprir sua parte no acordo com o imperialismo norte-americano.

Chávez, de seu lado, tenta agrupar estas lideranças e fortalecer um bloco de amigos e melhor governar para suas burguesias. Quando a Colômbia invadiu o Equador com o pretexto de combate às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), Chávez se juntou a o presidente equatoriano, Rafael Correa. Eles fizeram críticas a Alvaro Uribe, presidente da Colômbia, e a George W. Bush. Chegaram a romper relações diplomáticas e a deslocar tropas para as fronteiras. Ao final, porém, tudo acabou em confraternização.

Chávez e Correa assinaram um acordo confuso que reafirma o “compromisso de combater as ameaças (…) provenientes da ação de grupos ilegais ou de organizações criminais”. Na prática, se comprometeram a combater as Farc. Chávez disse até que já havia combatido as Farc quando recém-formado pela Academia Militar. Dias depois da reunião, o exército do Equador prendeu cinco guerrilheiros das Farc.

Nenhum desses líderes pode ser antiimperialista. Eles reprimem os trabalhadores de seus países e defendem seus ricos. Foi o que fez Chávez quando os operários da Sidor se mobilizaram. No ano passado, o governo mandou a polícia reprimir os petroleiros que estavam mobilizados.

Até quando essa situação vai durar e a máscara de Lula vai cair, ainda é uma questão a ser respondida. No Haiti, os famintos se levantam contra as tropas da ONU comandadas pelo Exército brasileiro, fragilizando, na prática, a cooperação de Lula com os EUA. Na Venezuela, os trabalhadores obrigaram Hugo Chávez a nacionalizar a multinacional Sidor, maior indústria siderúrgica do país.

A crise econômica começa a se espalhar pelo mundo, trazendo a fome, a miséria, o desemprego e o endurecimento do nível de vida dos povos. Ataques aos trabalhadores e a seus direitos e a imposição de ritmos de trabalho cada vez mais cruéis, já são inevitáveis. Lutas sociais começam a explodir na América Latina, na Ásia e na África. É uma questão de tempo para que os trabalhadores, a juventude e o povo pobre se organizem e travem uma batalha pelo controle de suas próprias vidas e das riquezas de seus países.

LEIA, ABAIXO, TRECHOS DOS DOCUMENTOS NORTE-AMERICANOS.

Relato da conversa entre Lula e a ex-embaixadora norte-americana Donna Hrinak em outubro de 2002, três dias após a eleição de Lula

“Lula salientou repetidamente que queria trabalhar com os Estados Unidos em geral e na Alca. (…) Ele disse que estava encantado com o tom positivo de sua conversa telefônica na segunda-feira com o presidente Bush e contente que a ligação tenha vindo tão rapidamente após a eleição. Ele indicou que achava que a ligação havia sido um bom começo para a relação e disse que estava interessado em viajar para Washington.”

“Ela observou especificamente que seria importante evitar surpresas desagradáveis. Lula, imediatamente, respondeu que não haveria ‘nenhuma surpresa’. Ele disse que estava empenhado em assegurar transparência na condução da relação bilateral. Ele salientou que seu governo não seria 1ideológico’.”

“Ele [Lula] salientou que era um defensor da liberdade política e econômica para todos os povos e que não havia liberdade em Cuba hoje.”

Relato de Donna Hrinak a Washington, em novembro de 2002, após a conversa com Lula

“Deixado à vontade, ele [Lula] pode até decidir manter alguns elementos profissionais do GdB [governo do Brasil] que está saindo. A prova mais difícil para Lula será manter na linha os doutrinários do próprio PT. Ele dá mostras de estar pronto para fazer isso, e sua vitória eleitoral arrasadora pode tornar isso possível politicamente. Prescrições insistentes de fora só tornarão esse equilíbrio mais difícil.”

Relato da conversa de Lula com o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, John Snow, em 2004

“Lula disse que o Brasil está seguindo a política externa mais agressiva de sua história (citando a decisão de enviar tropas para o Haiti como prova do seu novo papel de liderança). Ele quer usar seu bom relacionamento com figuras regionais (p. ex., Lucio Gutierrez no Equador, Nicanor Duarte Frutos no Paraguai, Evo Morales na Bolívia) como uma força pela estabilidade e pela democracia na região. (…) Especificamente, ele defendeu a necessidade de ‘tratamento especial’ do FMI para um país como o Equador para encorajar reformistas acossados pela oposição de vários campos.”

Relato da conversa de José Dirceu com a secretária de Estado norte-americana Condoleezza Rice em março de 2005

“Dirceu descreveu sua posição sobre Cuba, notando que ele tem laços pessoais muito estreitos com Cuba e Fidel Castro. Em sua opinião, as mudanças em Cuba serão promovidas por mais comércio investimentos, remessas e visitantes de fora. Primeiro, as mudanças serão culturais. Depois, elas irão se espalhar para as esferas social e econômica. Quando o sistema econômico de cuba finalmente se abrir, então o sistema político acompanhará. Não haverá nenhuma revolução ou levante; vai ser mais uma transição gradual.

“Dirceu afirmou que tanto ele quanto o presidente Lula tiveram conversas particulares com Castro e que ministros do governo também estão envolvidos.”

“A secretária e Dirceu se reuniram, então, privadamente por quinze minutos, quando discutiram a Venezuela e a Bolívia. Em resposta ao comentário da secretária de que o Brasil precisa mandar uma mensagem clara ao presidente venezuelano Chávez, Dirceu afirmou que Lula já tinha aconselhado Chávez sobre a necessidade de ser mais cuidadoso em sua retórica (dizendo a Chávez que ele estava ‘brincando com uma arma carregada’) e focar em prioridades econômicas e sociais. (…) Em relação à Bolívia, Dirceu comentou que o Brasil tem Evo Morales e a situação nesse país ‘sob controle’.”

Publicado no jornal Valor Econômico nos dias 6 e 7 de maio de 2008. A íntegra, em inglês, está disponível no site do jornal, com acesso restrito aos assinantes (www.valoreconomico.com.br)