Você pode não perceber, mas vive num país com um alto índice de desenvolvimento humano. Parece piada, mas é o que diz o Relatório de Desenvolvimento Humano 2007/2008, divulgado dia 27 de novembro pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), grupo multinacional da ONU. A divulgação mundial do ranking ocorreu durante solenidade em Brasília.

O documento foi lançado a poucos dias da divulgação de casos bárbaros que chocaram o país, como a menina presa e estuprada numa cadeia do Pará e o assassinato de um morador de rua em São Paulo, queimado vivo enquanto dormia. Segundo o relatório da ONU, o Brasil ocuparia o 70º lugar entre os países de maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). O ranking é elaborado a partir de indicadores como expectativa de vida, taxa de alfabetização e PIB per capta, ou seja, o valor de todas as riquezas produzidas por um país dividido pelo número de habitantes. Os dados se referem ao ano de 2005.

A posição garantiria ao país o último lugar no grupo de elite do ranking entre as 177 nações avaliadas pelo programa, considerados países de “alto Índice de Desenvolvimento Humano”. Tal grupo agrega os países com o IDH igual ou superior a 0,800, exatamente o índice referente ao Brasil, numa escala de zero a um. Apesar de o governo comemorar o resultado, o país caiu um lugar no ranking em relação ao último relatório, descendo do 69º para o 70º lugar. Na época, 63 países contavam com IDH igual ou superior a 0,800. Com relação ao IDH de 2003, o país despencou nada menos que sete posições.

Ainda em relação ao último relatório, o Brasil só ultrapassou a ilha de Dominica, que perdeu duas posições. À frente do Brasil estão ainda países como Chile, Uruguai, México e Panamá. Além disso, o IDH brasileiro aparece bem atrás da média da América Latina e Caribe. Enquanto o Brasil registra 0,800, a média da região é de 0,803.

Mesmo que o índice não seja confiável para medir o nível de vida de um país, dá para se ter uma idéia analisando alguns indicadores de forma isolada. A expectativa de vida do continente latino-americano e o Caribe atingia 72,8 anos em 2005, enquanto no Brasil era de apenas 71,7. O nível de alfabetização de adultos no país também ficava abaixo da média da região. Enquanto no país 88,6% das pessoas com mais de 15 anos era alfabetizada, na América Latina e Caribe esse índice era de 90,3%.

Como se isso não bastasse, três dias depois, a Organização para Cooperação para o Desenvolvimento e Comércio (OCDE) divulgou uma pesquisa avaliando o nível educacional de 57 países. A avaliação, realizada de três em três anos, focou o ensino de ciências. O resultado sofrível do Brasil garantiu ao país um vergonhoso 52º lugar, ficando atrás do Chile, Uruguai e México. Tanto a alfabetização quanto a própria qualidade de ensino mostram a condição precária da educação no país.

Índice arbitrário
O aumento da expectativa de vida e, principalmente, mudanças metodológicas na avaliação do índice possibilitaram ao Brasil fazer parte do “seleto” grupo de países com alto “desenvolvimento humano”. No entanto, o IDH não é suficiente para medir o nível de desenvolvimento de um país, muito menos nos aspectos considerados “humanos”. O PIB per capta, por exemplo, não considera a enorme desigualdade entre ricos e pobres, brancos e negros ou homens e mulheres. Só para se ter uma idéia, pesquisa recente do IBGE revelou que os trabalhadores negros recebem metade do salário dos trabalhadores brancos exercendo a mesma função. No entanto, tal dado passa ao largo do IDH.

Só mesmo certo grau de escárnio para considerar o Brasil um país socialmente desenvolvido. Além da desigualdade social, o país conta com um enorme abismo regional. Sete estados detêm mais de 75% das riquezas, ainda segundo dados do IBGE. Já a expectativa de vida, índice que possibilitou ao país ascender para o grupo de elite, enquanto a média nacional em 2005 ficou em 71 anos, em Alagoas (SE), por exemplo, ela era de apenas 66 anos. Outro dado vergonhoso do próprio Pnud revela que a rede de saneamento cobre apenas 75% do país.

Segundas intenções
Não deve ser visto como mera coincidência o fato do anúncio mundial do relatório 2007/2008 ter sido realizado em pleno Palácio do Planalto, a convite do governo Lula. O lançamento do relatório foi uma defesa pública do governo, especialmente do Bolsa Família que, segundo o Pnud, teria contribuído de forma decisiva para a redução da pobreza e melhoria da educação.

“Definindo níveis mínimos garantidos para o rendimento e maiores regalias sociais na saúde, educação e alimentação as CCT’s (sigla em inglês para transferências monetárias condicionais) permitem às populações pobres criar uma base legal para os seus direitos sociais”, diz a página 199, sobre o programa do governo Lula.
O Bolsa Família se adequa perfeitamente à chamada ação social focalizada, defendida por organismos multilaterais como FMI e Banco Mundial. Tal medida propõe ações pontuais contra a miséria, em detrimento da melhoria e universalização dos serviços públicos para todos, como saúde, emprego e educação, funcionando como uma espécie de “colchão” a fim de se evitar o aumento das tensões sociais. Esse ponto consta, inclusive, no acordo com o FMI assinado por Lula em 2003.

Etanol
Além de defender as políticas sociais focalizadas, o relatório do Pnud fez um apelo enfático em favor do aumento da produção e exportação do etanol brasileiro. Apelando ao tema principal do relatório desse biênio, “Combater as mudanças climáticas: solidariedade humana num mundo dividido”, a ONU defendeu o fim das barreiras comerciais ao biocombustível do qual Lula se tornou o mais célebre garoto propaganda. Ou seja, utilizando o meio ambiente como justificativa, as Nações Unidas defendem a estratégia do imperialismo de transformar o Brasil num imenso canavial para a exportação de combustível.

O relatório do Pnud elencando o Brasil como o 70º “país mais desenvolvido” esconde as desigualdades sociais, faz apologia à política do FMI e, por fim, faz coro ao discurso em defesa do etanol e dos fazendeiros e usineiros. Não teve lugar mais apropriado ao seu lançamento que o Palácio do Planalto.
Post author
Publication Date