Foto: Pedro Guerreiro / Ag. Pará
Dr. Ary Blinder, médico do SUS em São Paulo (SP)

O dia 7 de abril, Dia Mundial da Saúde, provoca necessariamente algumas reflexões sobre a Covid e o colapso sanitário brasileiro. O cenário da pandemia no Brasil lembra muito aqueles filmes que mostram catástrofes ambientais ou epidemias terríveis. Neste 6 de abril, o estado de São Paulo bateu novo recorde de mortes (1389),o Brasil teve 4195 óbitos, as UTIs seguem lotadas e a fila de pacientes esperando vagas de UTI permanece sem resolução.

O fantasma da falta de insumos para intubação persiste, assim como a falta de oxigênio hospitalar. A dificuldade das funerárias e cemitérios em lidar com a alta expressiva de enterros, mesmo com a ampliação do horário permitido para enterros à noite, se soma a cenas de corpos mal acondicionados em hospitais esperando a retirada (aumentando a chance de transmissão do vírus).

A vacinação segue aos trancos e barrancos, basicamente pela carência de vacinas, mais uma obra inesquecível do governo Bolsonaro. Chegamos a 9,4% da população vacinada na primeira dose e apenas 2,64% na segunda dose, números que ainda não tem poder de impactar a fundo na transmissibilidade do coronavírus. Poderíamos estar com taxas de vacinação 4 ou 5 vezes maiores, pois o SUS tem grande capilaridade e treinamento na questão vacinal.

Há muito que uma doença não provoca tantas discussões e polêmicas políticas. A AIDS também causou polêmica e luta política no mundo todo, com uma polarização entre setores conservadores (que jogavam a culpa da doença nos grupos de maior vulnerabilidade como homossexuais masculinos) e setores que procuraram uma saída para a epidemia, sem a preocupação de culpabilizar e sim de prevenir e tratar. No caso da AIDS houve uma vitória política clara desse setor que de fato queria tratar e prevenir, inclusive com quebra de patentes dos medicamentos antiretrovirais e a aparição pública do movimento LBGTQI.

Mas a Covid, ainda que também tenha grupos mais vulneráveis como os mais idosos, trouxe uma inversão curiosa de posições. Os conservadores, que antes criticavam os portadores de HIV por serem “pecadores” ou “promíscuos” e incapazes de controlar seus instintos, agora se mostram negacionistas e se recusam a aceitar a necessidade de distanciamento social, lockdown e uso de vacinas. A cada momento inventam uma “novidade” para evitar o lockdown, sendo a mais conhecida o “kit covid”, por mais que até os próprios fabricantes destas medicações informem que elas não são úteis para prevenir ou tratar a Covid e trazem sequelas. A última sequela do uso do kit que está sendo investigada é o aumento de problemas renais nos sobreviventes de Covid moderada ou grave que tomaram cloroquina e azitromicina.

Na categoria médica ainda há uma porcentagem de profissionais que defendem esse tratamento fake e acreditam nele. O verbo acreditar foi usado aí propositadamente, pois se trata mais de fé e ideologia, não de ciência. Mas é importante assinalar que este contingente parece estar diminuindo e várias entidades da categoria passaram a se posicionar de forma mais correta em relação ao tema Covid. Infelizmente, o progresso é lento e deixa uma interrogação em relação ao futuro da categoria. Por exemplo, a direção do Conselho Federal de Medicina segue com posições retrógradas e confusionistas, objetivamente ajudando os negacionistas. Essa direção será varrida na próxima eleição?

Num cenário como esse, a politização da pandemia é inevitável e foi claramente provocada pelos conservadores, capitaneados pelo presidente Bolsonaro. Seu governo fez e faz de tudo para estimular o negacionismo e, como consequência, somos o epicentro da Covid no mundo hoje. Chegamos a 13,1 milhões de casos e 336947 mortos e a verdade é que ninguém tem certeza até onde podem ir esses números terríveis. No último dia 5, por exemplo, a Universidade de Washington publicou um estudo prevendo que chegaremos a 563 mil mortos em primeiro de julho. Essa é uma hipótese perfeitamente plausível, pois estamos com média móvel de mortos acima de 2 mil por dia há vinte dias, mas também sabemos que a epidemia trabalha com ciclos. Por exemplo, o estado do Amazonas que em janeiro viveu um pico descontrolado agora está em fase de baixa. A Índia que havia conseguido baixar muito a média de novos casos recentemente voltou à marca de 100 mil novos casos por dia. Com dados às vezes tão contraditórios na aparência, os negacionistas se aproveitam para instalar a confusão e dizer que a situação não é tão grave e que pode ser lidada com um novo medicamento milagroso. Não esqueçamos do ozônio por via retal.

Os campos políticos do debate de como enfrentar a situação nem sempre são tão claros. Vários governos estaduais e prefeitos, começando por Dória do PSDB, se colocam no campo de defender a ciência, mas tem comportamentos que vão claramente contra ela. Já citamos muitas vezes as medidas de distanciamento social insuficientes tomadas por estes governos estaduais e municipais. Para piorar, agora estão em franca e descarada campanha para voltar o funcionamento das escolas, com o argumento de que educação é um setor essencial e que as escolas fechadas provocam rebaixamento cognitivo nas crianças. Além disso argumentam que a possibilidade de contágio e quadros graves é pequeno nas crianças.

São argumentos todos pertinentes, mas o buraco fica bem mais embaixo. O primeiro problema é que a volta às aulas provoca um aumento significativo no trânsito das pessoas, principalmente nas cidades grandes e médias, causando possibilidade de aglomerações no transporte público. Para piorar as crianças são transmissores do vírus para os professores, funcionários de escolas e para seus parentes. Tão grave quanto isso, as novas variantes do coronavírus estão atingindo pessoas mais jovens do que antes, que desenvolvem quadros graves e superlotam as UTIs pois, por serem mais jovens, tem internações mais longas por resistirem mais às múltiplas consequências que este vírus provoca em infectados moderados e graves.

Não podemos deixar de citar também que já há vários casos graves e mortes em crianças, uma perda que traz sequelas sociais e psicológicas nos pais de imensa gravidade. Por fim, mas não menos importante, fica a pergunta que não quer calar: se a saúde e a educação são setores essenciais, por que o funcionalismo público está sendo tão maltratado e desvalorizado (aí entra uma curiosa unidade em que participam governos das mais variadas ideologias)?

A polarização política se dá através de medidas governamentais como divulgação do kit covid como política de governo, aparição pública simbólica (sem uso de máscara e provocando propositadamente aglomerações), luta judicial sem tréguas contra qualquer medida no sentido do distanciamento social e boicote puro e simples contra a vacinação. Esta semana tivemos, por exemplo, o lamentável episódio de um juiz do Supremo Tribunal Federal liberar os cultos presenciais a pedido de uma associação de juristas evangélicos.  Dito em outras palavras, o juiz Kassio Nunes, indicado por Bolsonaro ao STF, simplesmente liberou a contaminação e morte de um número incontável de fiéis, apenas para manter os bolsos dos pastores cheios. Esta decisão provavelmente vai ser derrubada pelo pleno do STF, mas o estrago já foi feito, tanto na vida real como na consciência destas pessoas com crenças religiosas.

Há que se destacar que principalmente no caso dos evangélicos, alguns pastores famosos fazem propaganda anti-vacina mas foram se vacinar nos EUA. Nesta semana também a mídia revelou uma articulação de policiais militares de baixa patente para criar um movimento pela não vacinação dos policiais. A base “científica” que move estes policiais é a propaganda Bolsonarista contra a Coronavac, por ser uma vacina chinesa. Mas nem todos os negacionistas são realmente negacionistas. Além dos pastores que se vacinam nos EUA, em Minas Gerais tivemos o curioso caso dos empresários do transporte que pagaram para serem vacinados furando a fila. No final desta história, a polícia descobriu que a cuidadora de idosos e falsa enfermeira que foi vaciná-los na calada da noite dentro de uma garagem de ônibus passou a perna neles e usou água destilada, pois não tinha as vacinas.

Uma parte dos empresários em conluio com deputados e senadores quer a todo custo liberar a compra de vacinas por empresas privadas. O objetivo seria o de imunizar a “seus trabalhadores” para que possam continuar trabalhando e ignorar as medidas de distanciamento social. Para tanto se apresentam como colaboradores da campanha nacional de vacinação, que tanto necessita de uma oferta maior de vacinas. Se trata do típico caso de lobo em pele de cordeiro, que na prática atrapalha o programa nacional de vacinação. Atrapalha porque existe uma ordem de prioridades de vacinação baseada em critérios de saúde pública. Atrapalha porque cria desigualdade dentro de uma população, com alguns tendo mais direitos que os outros. Atrapalha porque a imunização não é um ato individual apenas, para ser eficaz é preciso atingir uma alta porcentagem de vacinação da população, então esses trabalhadores com a falsa sensação de imunidade seguem usando transporte público lotado, ficam sem máscaras e viram caldo de cultura para surgimento de novas variantes mais perigosas do coronavírus.

Não existe outra saída possível desta situação trágica que vivemos que não passe pelas medidas baseadas em critérios verdadeiramente científicos. Estamos falando de ampliação rápida da vacinação e testagem associadas com medidas de distanciamento social e de higiene pessoal e coletiva. Para ampliar qualitativamente a vacinação precisamos ter vacinas. Propomos que o Brasil siga o conselho dado pela OMS e passe a defender a quebra ou suspensão imediata das patentes das vacinas e seja feito um plano de reconversão industrial para a fabricação de mais vacinas e também outros insumos como anestésicos para intubação.

A nossa situação é tão grave que até um organismo como a OMS teve de sugerir ao governo brasileiro esta medida antimonopolista básica. Por outro lado, é preciso um verdadeiro lockdown nacional de 20 a 30 dias para baixar significativamente a taxa de contágio do vírus. Não se trata de radicalismo, essa é a melhor forma de proteger a vida das pessoas, que está permanentemente ameaçada, inclusive dos vacinados, pois a taxa de eficácia da vacina é parcial. É muito importante lembrar também que o pico da epidemia no Brasil em 2020 foi em julho, pois nos meses mais frios cresce o número de casos de doenças respiratórias infecciosas. É perfeitamente possível que este fenômeno se repita em 2021, principalmente se não houver uma aceleração qualitativa da vacinação e testagem e medidas eficazes de isolamento social, ou seja, um lockdown nacional. Aí entra a importância absoluta de um verdadeiro auxilio emergencial para a população mais pobre e ajuda para os pequenos empresários poderem manter seus negócios, vinculando com a garantia de emprego para seus funcionários.

No terreno da imprescindível luta política contra o negacionismo, é vital a entrada em cena dos sindicatos e movimentos sociais com este programa e com a preparação de uma greve geral (ou paralisação nacional) sanitária em defesa da vida. A classe trabalhadora brasileira não pode seguir sendo refém destes governos, sejam os negacionistas e genocidas como Bolsonaro, seja aqueles que não tem coragem política de bancar um lockdown de verdade, como Dória e, infelizmente, vários governadores e prefeitos que se dizem de esquerda.