Ao observamos uma fila de hospital, a fila de visita na penitenciária ou mesmo as visitas mais frequentes ao cemitério, veremos a mesma imagem: mulheres que estão ali por seus filhos. As mesmas mulheres que são responsabilizadas quando algo de errado acontece com as crianças: seja uma queda, uma nota baixa ou o envolvimento com drogas e qualquer infração.

Esse peso será aumentado sobre os ombros femininos com o projeto de redução da maioridade penal. A PEC 171/93 que tramita no Congresso Nacional e tem todo o empenho de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) para ser aprovada prevê a alteração da redação do artigo 228 da Constituição que trata da imputabilidade penal dos menores de 16 anos, ou seja, apenas os que têm até 16 anos continuam protegidos pela legislação do Estatuto da Criança e Adolescente, em casos de conflito com a lei.

Os dados de violência no Brasil são reais e tem raiz social
Não é novidade para ninguém que o Brasil tem índices altíssimos de violência e criminalidade, ocupando a 7ª posição no ranking de violência entre os países. Contudo a argumentação para aprovar tal projeto, de que os adolescentes são responsáveis pela maioria dos crimes hediondos cometidos por aqui é desmascarada pelas pesquisas.

Segundo a Unicef apenas 0,9 %% dos crimes registrados no país são cometidos por jovens entre 16 e 18 anos. A própria ONU, em texto no qual se posiciona contrário à redução da maioridade penal, aponta que, entre os 21 milhões de adolescentes que vivem no Brasil, apenas 0,013% cometeram atos contra a vida. Entretanto, a maioria das vítimas da violência fatal no país é composta por jovens entre 15 e 19 anos. Segundo o relatório do SIM/DATASUS, do Ministério da Saúde, em 2012 houve 56.337 vítimas de homicídio, dentre essas 52,63% eram jovens na faixa etária citada acima, 77% negros e 93% do sexo masculino.

Por outro lado, ao tomarmos os dados de investimento dos governos em áreas primordiais para garantir um bom desenvolvimento da criança e do adolescente, percebemos que são irrisórios e incapazes de garantir qualquer perspectiva de futuro digno a nossa juventude.

O ajuste fiscal de Dilma realizou um corte de R$ 70 bilhões no Orçamento, o que significou R$ 9,4 bilhões da educação e cerca de R$ 11 bilhões na área da saúde. Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado em 1990 e que aponta a prioridade de assistência aos menores nas políticas de educação, saúde, lazer, cultura, emprego e renda, etc., até hoje não foi implementado de fato. Ao contrário disso, sofrerá modificação em seu conteúdo, a partir da proposta do senador José Serra (PSDB) e com o apoio do PT no Congresso Nacional. A única política pública regular com esses jovens tem contato é com a força policial repressora.

O sistema carcerário também se apresenta falido. A superlotação nos presídios chega a 66%. Isso porque, nos últimos 10 anos, a população carcerária duplicou. Outro dado importante é de que há um índice de 70% de reincidência dentre essa população, enquanto que nas unidades de medida socioeducativa de adolescentes esse índice não chega a 20%.

Qual o verdadeiro crime hediondo?
O juiz brigou muito com a minha mãe, disse que ela não me educava direito. Mas ela nem sabia que eu ia para a rua, saia cedinho pra trabalhar e só voltava à noite.” Esse é o relato de um adolescente de 17 anos que deu entrada na Fundação Casa, em São Paulo. Porém, é uma cena que se repete em todo o país. 37% das famílias brasileiras são chefiadas por mulheres, a maioria delas empregadas no setor informal, em especial no trabalho como domésticas.

Desde muito cedo, essas mulheres sabem que não terão apoio do Estado para garantir a educação de seus filhos. O déficit de creches para crianças entre 0 e 3 anos chega a 1,8 milhões, segundo o relatório do Banco Mundial. À medida que os filhos vão crescendo, a situação se torna mais complexa, pois as escolas só funcionam em período parcial e dado os escassos investimentos na área não se apresentam em condições de envolver esse adolescente na vida acadêmica.

O dilema está lançado. Se as mulheres não trabalham e não conseguem sustentar seus filhos, são irresponsáveis que querem viver à custa do Estado. Se, por outro lado, seguem trabalhando e deixam seus filhos a própria sorte, sendo alvo fácil do tráfico e da propaganda capitalista do consumismo, são negligentes e coniventes com a delinquência juvenil.

Contudo, a questão colocada é: e esses senhores parlamentares que desviam milhões de reais, ano após ano, dos cofres públicos e seguem livres para concorrer novamente as próximas eleições? O próprio deputado Benedito Domingues (PP) que redigiu a PEC 171/93 e que apresenta como um de seus argumentos para a redução o fato de que os jovens de 16 anos já tem discernimento entre o que é certo e errado, foi condenado por duas vezes em menos de 1 ano por desvio de dinheiro, nunca foi preso. Segundo o Ministério Público, ele deveria cumprir de 40 a 50 anos em regime fechado, mas parece que lhe falta discernimento para cumprir a pena.

Ao compararmos a gravidade dos atos, nos parece que aqueles que roubam o dinheiro público, que desviam exatamente os valores que seriam utilizados para garantir as políticas públicas de assistência à juventude e à população de um modo geral, que mantém as práticas de privilégios para uns e miséria e violência para outros, esses sim necessitam de uma punição mais severa, inclusive porque são adultos com plena convicção de seus atos e seus desmandos.

Quais razões movem o interesse pela redução da maioridade penal?
Se até aqui é possível perceber que as argumentações para aprovar esse projeto são totalmente unilaterais e falsas, existem outros interesses colocados na mesa que deixam evidente que a menor das preocupações é resolver o problema de insegurança da população.

A votação que aconteceu no dia 31 de maio na Câmara dos Deputados e aprovou a tramitação do projeto na Casa, teve um placar de 42 votos a favor e 17 contra. Grande parte dos deputados que votou pela redução teve doações de empresas de segurança em suas campanhas. Em entrevista à Pública*, Gabriela Ferraz, advogada do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) levanta a seguinte questão “interessante trazer a guerra às drogas, a redução da maioridade justamente quando se discute as penitenciárias privadas no Brasil. Essas penitenciárias privadas, por contrato, precisam estar cheias, quanto mais presos, maior o lucro…”.

Bruno Covas (PSDB) recebeu R$ 20 mil de doação das empresas Copseg Segurança e Vigilância Ltda. e Grandseg Segurança e Vigilância Ltda.; o pastor João Campos (PSDB/GO) recebeu R$ 400 mil da empresa Gentlman Segurança Ltda. e Gentlman Serviços; Felipe Maia (DEM/RN) recebeu R$ 100 mil da empresa Gocil Empresa de Vigilância e Segurança Ltda.; já o deputado Silas Câmara recebeu R$200 mil de uma empresa chamada Umanizzare Gestão Prisional Ltda., a qual também doou R$ 400 mil para a esposa do deputado, Antonia Lúcia Câmara (PSC/AC) e R$ 150 mil para a filha do casal, Gabriela Ramos Câmara (PTC/AC). Vale ressaltar que neste último caso, a empresa em questão já administra 6 unidades prisionais no Amazonas, estado do deputado Silas. Também não há dúvida de que todos esses deputados defenderam a redução da maioridade penal e apontam como solução para o caos carcerário a privatização do serviço.

Outros deputados são categóricos na associação da redução da maioridade penal com a necessidade de privatizar os presídios. Alceu Moreira (PMDB/RS) argumenta que “não é através do ECA que se trata o adolescente, mas também não é pelo sistema prisional” e explica “se você paga bem, pode ter certeza que não entra facão e telefone lá”, referindo-se à gestão privada. Pastor Eurico (PSB/PE) é o mais enfático ao dizer que “vá até esses delinquentes mirins e ofereça uma boa casa, viver com dignidade, escola e vai encontrar um monte que não quer, que prefere viver na bandidagem” e conclui “o sistema nosso tem que mudar? Tem. É desumano? É. Vive feito bicho? Vive. Numa cela para 10 tem 50? Sim. Mas não fui eu que cometi o crime. Agora todo menino bandido virou boa pessoa”. Deixando evidente que o propósito para a mudança não é a reeducação dos jovens, mas sim o lucro de empresas da área de segurança.

Nem a impunidade e tampouco a responsabilização pelas mazelas sociais
A verdade é que os jovens e suas mães são os maiores responsabilizados pelas mazelas reproduzidas pelo sistema capitalista. De vítimas tornam-se vilões. A Defensora Pública do Núcleo da Criança e da Juventude, Fernanda Balera, aponta o recorte de gênero e a opressão que ocorre nas audiências: “a figura do pai é praticamente inexistente, e mesmo quando existe um pai, quem toma a bronca é a mãe” e complementa dizendo que as mulheres são encaminhadas para laqueadura e para grupos de apoio para aprender a educar seus filhos.

Os adolescentes, conforme determinação do Estatuto da Criança e do Adolescente já cumprem medidas socioeducativas que normalmente os deixam privados de liberdade por, no mínimo, 8 meses. Muitos dos casos de internação são motivados por questões que não levam um adulto à cadeia, como brigas no abrigo, crime de ameaça, briga na escola, etc. Sem contar os casos de violação dos Direitos Humanos que os menores sofrem nas instituições. Várias denúncias já foram feitas acerca de espancamento, estupro, revistas vexatórias, etc. Também são altos os índices de extermínio desses jovens ao ganharem a liberdade.

Todos esses dados não são para defender a impunidade dos menores infratores. Pelo contrário, os números e as pesquisas de profissionais demonstram que a causa da criminalidade é justamente a falta de políticas públicas eficientes para promover o desenvolvimento intelectual, psicológico e social de crianças e adolescentes. Que essas ausências fazem com que eles sejam as maiores vítimas da violência.

Também é importante refletir que a atribuição da responsabilidade pela “rebeldia” juvenil, exclusivamente às famílias ou mesmo às mães, é uma forma de retirar do Estado sua parcela de negligência e falha na garantia de direitos básicos da população. Assim como é a reprodução da lógica machista que coloca sobre os ombros da mulher a responsabilidade exclusiva de cuidado e educação dos filhos, sem considerar também a falta de políticas públicas que assistam essa mulher em suas necessidades.

Por isso, para nós do PSTU, a redução da maioridade penal não é a solução para enfrentar a criminalidade e a violência em nosso país, tampouco vai garantir a reeducação de nossa juventude. Para isso acontecer é preciso inverter a lógica vigente na sociedade e priorizar os investimentos públicos nas áreas sociais, em detrimento dos lucros de empresários e banqueiros.

É necessária a desmilitarização da polícia e o controle de suas ações pela população. É necessário o combate sistemático ao machismo, ao racismo e à LGBTfobia, que servem de sustentação à exploração capitalista. Por fim, para conseguir, de fato, uma transformação social é preciso construir uma sociedade socialista sem oprimidos e sem explorados.

 ASSISTA a entrevista de Zé Maria sobre maioridade penal