Camilo Mejía é filho do lendário compositor sandinista nicaragüense Carlos Mejía Godoy e passou mais de sete anos no exército estadunidense, e, nos últimos oito meses, combateu no Iraque como sargento do exército. Durante uma licença militar de duas semanas solicitou o status de Objetor de Consciência – proveniente do Direito Internacional, aplicado às situações de conflito armado internacional e regido pelas Convenções de Genebra – sendo declarado Prisioneiro de Consciência pela Anistia Internacional. O exército estadunidense o havia condenado à sentença de um ano na prisão de Fort Sill-EUA, sob veredicto de deserção, por ter se recusado a voltar para o Iraque. Camilo só foi liberado da prisão em fevereiro deste ano. Isto aconteceu no mesmo dia em que Jeremy Sivits foi condenado a um ano de prisão por violentar prisioneiros iraquianos em Abu Ghraib-Iraque, ordem que Camilo recusou-se a obedecer.

“Este texto é uma compilação de testemunhos que escrevi na prisão e de meu requerimento de Objeção de Consciência”
Camilo Mejía

“Fui enviado ao Iraque em abril de 2003 e voltei para casa em outubro. Voltar para casa me deu a oportunidade de pôr meus pensamentos em ordem e escutar o que minha consciência tinha a dizer. As pessoas me perguntavam sobre minhas experiências da guerra e respondê-las me trouxe de volta todos os horrores: os tiroteios, as emboscadas, a vez que vi como arrastavam pelos ombros um jovem iraquiano sobre um poço de seu próprio sangue ou quando nossas metralhadoras decapitaram um inocente. A vez que presenciei o colapso emocional de um soldado porque havia matado uma criança, ou quando vi um velho ajoelhado, chorando e com os braços erguidos aos céus, talvez perguntando a Deus porque havíamos levado o corpo sem vida de seu filho.

Pensei no sofrimento de um povo cujo país estava em ruínas e, ainda por cima, era submetido a novas humilhações pelos ataques, patrulhas e toques de recolher de um exército de ocupação.

E me dei conta de que nenhuma das razões que nos deram para estar no Iraque demonstrou-se verdadeira. Não havia armas de destruição massiva. Não havia vínculo entre Saddam Hussein e Al Qaeda. Não estávamos ajudando o povo iraquiano, e este povo não nos queria lá. Não estávamos prevenindo o terrorismo nem tornando mais segura a vida dos estadunidenses. Não pude encontrar uma só razão para termos estado lá, atirando contra pessoas e sendo alvo de tiros.

Voltar para casa me deu a clareza necessária para enxergar o limiar entre o dever militar e a obrigação moral. Me dei conta de que formava parte de uma guerra que considerava imoral e criminosa, uma guerra de agressão, uma guerra de dominação imperial. Me dei conta de que agir de acordo com meus princípios tornou-se incompatível com meu papel no exército, e concluí que não podia voltar ao Iraque.

Ao depor minhas armas, escolhi reafirmar-me como ser humano. Não desertei o exército nem fui desleal aos homens e mulheres do exército. Não fui desleal a um país. Eu apenas fui leal a meus princípios.

Quando me entreguei, com todos meus medos e dúvidas, não o fiz apenas por mim. O fiz pelo povo do Iraque, inclusive por aqueles que atiraram em mim: eles só estavam do outro lado de um campo de batalha onde a guerra mesma era o único inimigo. O fiz pelas crianças do Iraque, que são vítimas das minas terrestres e do urânio empobrecido. O fiz pelos milhares de civis desconhecidos que foram mortos na guerra. Meu tempo na prisão é um preço pequeno comparado com o que iraquianos e estadunidenses pagaram com suas vidas. Meu preço é pequeno comparado com o que a humanidade pagou pela guerra.

Muitos me chamaram de covarde, outros me chamaram de herói. Acredito que me encontro em algum ponto intermediário. Àqueles que me chamaram de herói, digo-lhes que não acredito em heróis, mas acredito que pessoas comuns podem fazer coisas extraordinárias.

Àqueles que me chamaram de covarde os digo que estão enganados, e que, sem sabê-lo, também têm razão. Enganam-se quando pensam que deixei a guerra por medo de ser morto. Admito que havia medo, mas também existia o medo de matar inocentes, de me colocar na posição de ter que matar para sobreviver, de perder minha alma no processo de salvar meu corpo, de me perder para minha filha, para aqueles que me amam, para o homem que já fui, o homem que queria ser. Tinha medo de acordar uma manhã e me dar conta de que minha humanidade havia me abandonado.

‘Fui covarde por formar parte desta guerra’
Digo sem nenhum orgulho que fiz meu trabalho como soldado. Comandei um batalhão de infantaria em combate e nunca falhamos em cumprir nossa missão. Mas aqueles que me chamaram de covarde, sem sabê-lo, também têm razão. Fui um covarde não por deixar a guerra, mas por ter formado parte dela, em primeiro lugar. Recusar e resistir a esta guerra era meu dever moral, um dever que me chamava a realizar uma ação de princípios. Eu falhei em cumprir meu dever moral como ser humano e ao invés disso escolhi cumprir meu dever como soldado. Tudo isso porque eu estava com medo. Estava aterrorizado, não queria levantar-me contra o governo e o exército, tinha medo do castigo e da humilhação. Fui à guerra porque no momento fui um covarde, e por isso peço perdão a meus soldados, por não ser o tipo de líder que deveria sê-lo.

Também peço perdão ao povo iraquiano. A ele digo que lamento os toques de recolher, os ataques, as matanças. Que encontrem em seus corações a razão para me perdoar.

Uma das razões pelas quais não me opus à guerra, em primeiro lugar, foi porque tinha medo de perder minha liberdade. Hoje, sentado detrás das barras, me dou conta de que existem muitos tipos de liberdade, e que a despeito do meu confinamento eu permaneço livre, de muitas e importantes maneiras. De que serve a liberdade se temos medo de seguir nossa consciência? De que serve a liberdade se não somos capazes de conviver com nossas ações? Estou confinado a uma prisão, mas me sinto – mais do que nunca – conectado com toda a humanidade. Detrás das barras sou um homem livre, porque escutei um poder superior, a voz de minha consciência.

Enquanto estava confinado à prisão solitária, encontrei um poema de um homem que se opôs e resistiu ao governo da Alemanha nazista. Por fazê-lo, foi executado. Seu nome era Alfred Hanshofer, e escreveu este poema enquanto aguardava sua execução.

Culpa

O fardo da minha culpa perante a lei
pesa ligeiro sobre meus ombros; conjurar e
conspirar é meu dever para com o povo;
Teria sido um criminoso, caso assim não o fizesse.

Sou culpado, ainda que não da forma como pensas,
deveria ter cumprido mais cedo com meu dever, estava eu enganado,
deveria ter chamado mais claramente o mal pelo seu verdadeiro nome,
titubeei em condená-lo já por muito tempo.

Agora acuso a mim mesmo com meu coração:
traí minha consciência já por muito tempo
desiludi a mim mesmo e à humanidade.

Soube a trilha que seguiria o mal já desde o início
mas minha advertência não foi o suficiente alta nem clara!
Hoje, eu sei do que fui culpado…

Àqueles que ainda estão em silêncio, àqueles que continuam a trair suas consciências, àqueles que não estão mais chamando com clareza o mal por seu verdadeiro nome, àqueles de nós que ainda não estão fazendo o suficiente para se opor e resistir, digo-lhes ‘dêem um passo à frente’, digo-lhes ‘libertem suas mentes’. Libertemos coletivamente nossas mentes, enterneçamos nossos corações, confortemos os feridos, deponhamos as armas, e reafirmemo-nos como seres humanos, pondo um fim à guerra.”

  • Mais infomações em:

    FreeCamilo.org

    TruthOut.org

    La Jornada, 27/fev./2005

    La Jornada, 16/mai./2005

    Tradução: Roberto Della Santa Barros in: Mejía, Carlos 2005 “Regaining My Humanity”, TruthOut.org . Texto disponível na Internet: . Cotejado com a tradução castelhana de Jorge Anaya, publicada pelo jornal mexicano La Jornada, 21/fev./2005. Texto disponível na Internet: .