Marcio Cury, do Rio de Janeiro (RJ)

As calúnias sórdidas e criminosas sobre Trotstky continuam, 100 anos depois

O seriado “Trotsky”, recém-lançado pela Netflix no Brasil, causou certa expectativa e, por que não dizer também, uma certa animação, em ver a megadistribuidora mundial de filmes apresentando um documentário sobre um dos principais líderes revolucionários mundiais e protagonista da Revolução Russa (1917).

Afinal, para quem já havia trazido “O eleito” (originalmente “The chosen”), filme que conta com bastante fidelidade a preparação pelos estalinistas do assassinato de Trotsky no México, a nova produção prometia grandes expectativas.

Seguindo a onda de produções literárias e visuais comemorativas dos 100 anos da Revolução Russa, um seriado sobre Trotsky soava como o ápice das produções que resgatavam os momentos de tomada de poder pelo proletariado, campesinato e soldados russos.

Infelizmente a alegria durou muito pouco.  Na prática, durou apenas alguns tristes segundos de exibição.

Quem fez o seriado?
Produzido em 2017, o seriado dirigido por Alexander Kott e Konstantin Statsky, estreou na emissora de TV Channel One, da Federação Russa, em novembro de 2017.

Channel One é um antigo canal de TV estatal Soviético, que a partir de 1991, com a fragmentação da URSS, foi nacionalizado russo por Boris Yeltsin e em 1994 privatizado, sendo adquirido por órgãos estatais e bancos.  Este mesmo canal recebeu forte aporte financeiro de bancos estatais russos em 1998 e sempre manteve um forte apoio a Putin e seus aliados, promovendo programas críticos à sua oposição.  No marco das denúncias ao papel das emissoras de TV que apoiam Putin, o Channel One tem recebido fortes contestações à sua programação e a outros seriados sobre a história russa.  Sim, Trotsky não foi a primeira produção.  A emissora produziu “Brezhnev” e outros seriados históricos.

Mas isso, por si só, não seria motivo para diminuir as expectativas sobre o seriado.

Por ser bem filmado e bem produzido, causando grande impacto visual, desde a aparição do Trem Blindado que Trotsky utilizou para visitar as frentes de batalha durante a Guerra Civil, até as cenas de soldados no front, o filme apresenta-se bem convincente para um espectador desavisado ou historicamente desinformado.

Na verdade, a superprodução tem exatamente este objetivo: mostrar-se convincente.  Na prática, veremos que se trata de uma grotesca e fantasiosa produção sobre Trotsky, Lenin e a Revolução Russa.

É tão grande a quantidade de modificações, falsificações e fantasias no seriado, que não seria exagero dizer que ele supera as aberrações produzidas contra Trotsky pelo estalinismo e seus epígonos.  Se os estalinistas tentaram apagar Trotsky da história e criaram sobre ele falsas trajetórias, o seriado recria um dos maiores revolucionários da história como um oportunista cruel, disposto a vender-se em troca de seu prestígio pessoal e poder.  Não apenas Trotsky, mas junto com ele, Lenin.

Trotsky aparece como um oportunista, sem escrúpulos, cujo único objetivo é realizar “a revolução”, colocando-se em primeiro lugar sobre todas as demais questões e contornando de forma oportunista todas elas.  Ele é o anti-herói que se aproveita espertamente das situações, fazendo acordos em troca de dinheiro, impondo o terror romano, seduzindo uma “escritora” revolucionária voluptuosa, sensual, lasciva e libertina, para um sexo forte e violento, no balanço de um Trem Blindado…

Você pensa ser um filme de Monty Python, talvez a louca e alucinada continuação de “A vida de Brian”…  Não.  Não é.

Descobriram um novo Trotsky ou recriaram o estalinismo?
Poderíamos pensar que os geniais produtores e diretores russos descobriram um novo Trotsky (e também um novo Lênin), pois a abertura dos documentos secretos dos governos estalinistas, permitida ao final da era Gorbachev, teria trazido uma nova luz sobre a história, a pondo de reescrevê-la novamente.  E nada melhor que fazer isso nos cem anos da Revolução Russa!

Mas, ao contrário, o que vimos nos documentos revelados foi a confirmação do que realmente significou Trotsky.

A abertura e estudo dos documentos, antes secretos por décadas, comprovaram, não apenas as traições políticas, mas também quase todos os crimes cometidos por Stálin e seus ajudantes, dentro e fora da União Soviética.  O acervo histórico liberado após a era Gorbachev atestou de forma documental e histórica todas as traições, calúnias, mentiras, assassinatos, falsificações e crimes cometidos pela contrarrevolução estalinista burocrática.  Os documentos comprovam absolutamente todos os acertos políticos, acusações e caracterizações realizados por Trotsky contra a burocracia contrarrevolucionária bem como toda a veracidade de seus atos durante os primeiros anos da revolução até a sua deportação.

Toda a sorte de calúnias, mentiras e falsificações sobre Trotsky foi revelada.  Trotsky foi reabilitado documentalmente para a eternidade.

Inúmeros pesquisadores americanos, franceses, ingleses e russos trabalharam durante anos, debruçando-se sobre toda a documentação existente e toda a constatação, não apenas não alterou nada do que os revolucionários trotskistas falavam sobre a contrarrevolução estalinista, como ainda pode constatar e acrescentar outas tantas conclusões e provas sobre outros fatos, como fraudes em eleição para o Comitê Central do PCUS, mandatos de fuzilamentos, abusos morais da burocracia sobre a população e muito mais.

Como é sabido, inúmeros trabalhos, cartas trocadas, artigos, livros e outros materiais produzidos por Trotsky e por vários opositores foram “perdidos” pela contrarrevolução e desaparecidos dos arquivos históricos, desde 1925.  Grande parte desse acervo foi encontrado e recuperado nos anos recentes (e ainda continuam a ser).

Nenhum dos relatos e livros produzidos pelos que diretamente ou indiretamente estiveram estudando os documentos secretos revela algo diferente do que a história produzida pelos biógrafos de Trotsky e o mesmo, sempre narravam.

Os estudos e pesquisas de vários historiadores, principalmente, as obras de Dmitri Volkogonov, general do exército soviético, chefe do departamento de guerra psicológica e diretor do Instituto Histórico Militar que, tendo sido estalinista e um dos primeiros a ter acesso aos documentos secretos, escreveu uma das mais bem documentadas biografias sobre Stalin (Stalin: Triunfo e Tragédia), Lênin (Lênin: uma nova biografia) e Trotsky (Trotsky: O Eterno Revolucionário), absolutamente nenhum deles descobriu ou recriou um novo Trotsky baseado em qualquer tipo de informação nova, tendo como fonte quaisquer documentos antes nunca revelados.

Esta questão documental é muito importante porque revela que qualquer argumentação para o seriado ser o que é, baseado em uma alegação de novas revelações inéditas, não procede de forma alguma.  O seriado é uma aberração, uma farsa, uma grande invenção difamatória neo-estalinista.

O seriado não recria Trotsky.  O seriado recria o stalinismo falsificador da história.

Recuperando a verdade: o primeiro episódio
O primeiro episódio da série inicia apresentando um fantástico Trem Blindado e em seu interior um Trotsky dialogando com Larissa Reissner, apresentada como “Revolucionária, poetisa e jornalista”.

Larissa Reissner aparece sedutora e voluptuosa, glamourosamente segurando uma piteira enquanto recita um poema.  Sua imagem lânguida e sensual dá lugar a um gesto de voluntariamente se despir diante de um Trotsky impávido e seduzido.  As cenas de amor se misturam com a trajetória do Trem Blindado, apresentando uma virilidade destemida de Trotsky.

Esta primeira cena já mostra que o seriado não está para brincadeira. Na verdade, a primeira tentativa de difamação está exatamente em apresentar Larissa Reissner como uma estereotipada acompanhante pessoal de Trotsky, presente no vagão para seduzi-lo e dispor-se sexualmente ao grande líder, que não deixa passar a oportunidade.   Ela aparece como coadjuvante no objetivo de mostrar um Trotsky sem princípios morais e um oportunista a qualquer preço, inclusive mantendo uma concubina em seu vagão enquanto o mundo soviético desaba na guerra civil.

Larissa Reissner é polonesa, nascida em 1895.  Viveu com a família em Berlim e posteriormente mudaram-se para São Petersburgo em 1905, estabelecendo moradia e estudos até os anos da Revolução.  Após a Revolução de fevereiro de 1917 ela passa a escrever para o jornal de Gorky e, após outubro, passa a trabalhar diretamente para o novo governo.  Adere ao Partido Bolchevique em 1918 e, devido à guerra civil e exigência de voluntários, torna-se soldado e comissária política.  Atuou na frente oriental, desempenhando várias ações heroicas em Sviazhsk, incluindo a espionagem atrás das linhas inimigas.  Escreveu também livros sobre a Guerra Civil e a Revolução Russa.

Larissa Reissner acompanhou Trotsky em várias frentes e ações junto com muitos outros personagens bolcheviques do recém-criado Exército Vermelho.  Ainda que possa ter havido alguma relação entre ambos, não há nenhum registro biográfico de ninguém sobre esta possibilidade, carecendo de autenticidade o envolvimento de ambos.  E mesmo que ela tivesse todas estas características e quisesse realmente seduzir Trotsky, o faria por direito de ser e realizar.  Mas não é o objetivo do seriado apresentá-la como a mulher e soldado que realmente foi.  Seu real perfil em nada se assemelha à mulher que acompanha Trotsky em seu trem no seriado.

O desrespeito e a difamação à Larissa Reissner é grande.  Sua dedicação à revolução a fez viajar à Alemanha em 1923 e morrer de febre tifoide em 1926 em Moscou.  As referências prestadas a ela no seriado são criminosas.

Mas deixemos que Trotsky nos relate as ações heroicas deste soldado bolchevique:

Larisa Reissner (…) também ocupou uma posição importante no quinto exército, e em toda a revolução em geral. Essa mulher maravilhosa, que era o encantamento de tantos, atravessou o céu da revolução, em plena juventude, como um cometa de fogo. Sua figura de deusa olímpica juntou-se a uma inteligência fina afiada com ironia e a bravura de um guerreiro. Após a captura de Kazan pelas tropas brancas, ela foi vestida como aldeão para espionar as fileiras inimigas. Mas havia algo extraordinário em sua aparência, que a traía. Um oficial espião japonês tomou uma declaração. Aproveitando-se de um descuido, atirou-se à porta, que estava mal vigiada, e desapareceu. Desde então, ele trabalhou na seção de espionagem. Mais tarde, ele embarcou na flotilha do Volga e participou da luta. Dedicado à guerra civil páginas admiráveis, que passarão a literatura com valor eterno. Ele sabia como pintar a indústria dos Urais com a mesma plasticidade que a insurreição operária no Ruhr. Ela queria saber de tudo, em tudo queria intervir. Dentro de alguns anos, ela se tornou uma escritora de primeira linha. E esta Pallas Atena da revolução, que havia passado ilesa pelo fogo e pela água, morreu repentinamente, tifo, nos arredores tranquilos de Moscou, quando ela ainda não tinha trinta anos de idade.” (Minha Vida, Leon Trotsky)

Violência e terror revolucionário
O episódio prossegue em Sviazhsk, quando Trotsky chega nas cercanias da cidade e há um contingente de tropas rebeladas, recuando da frente.  O trem para diante das tropas e um Trotsky totalmente de preto aparece, forma-se um corredor pomposo de soldados trazidos pelo trem ao som de uma trilha sonora que, por pouco, não foi a Marcha Imperial de John Williams para Darth Vader.  A simbologia é evidente.  Mesmo sem o capacete de sobrevivência, Trotsky chegou para por fim ao caos.  Ao fundo, uma Larissa Reissner observa, vestida com um portentoso casaco de pele…

Em que pese um discurso bastante convincente, a ação de Trotsky é dar um relógio a um soldado, afirmando com isso serem iguais.  Esta cena patética, que dispensa qualquer comentário, é seguida de um relampejo onde Trotsky aparece, momentos antes, com Larissa Reissner, abrindo uma gaveta com vários relógios.  Sim, Trotsky se utiliza de ardis psicológicos entre as tropas, revela o seriado!

Eis que ele manda o comandante escolher um a cada dez soldados (incluindo o comandante) para serem fuzilados!  Este formato romano de punição, conhecido como decimatio, era realizado contra uma unidade inteira em casos de deserção ou motim, e consistia em escolher um décimo das tropas para serem surrados e golpeados até a morte.  Trotsky tornou-se um bárbaro, punindo suas tropas com o terror e a violência sem critérios.

É verdade que o terror revolucionário e a violência revolucionária foram amplamente utilizados durante a Guerra Civil.  Inspirados na experiência jacobina, Lênin e Trotsky sabiam que, sem claras ordens, instruções militares e punições às tropas, apenas o discurso, o convencimento e o trabalho político dos comissários, não seria o suficiente para garantir a vitória.  Os métodos de Trotsky no Exército Vermelho visavam acabar com as traições, que reinavam não apenas no comando-maior, como também entre os soldados.

Vejamos as ordens claras de Trotsky:

Advirto que qualquer destacamento de soldados que empreender a retirada por sua própria conta provocará, em primeiro lugar, o fuzilamento do comissário e, em segundo lugar, o do comandante.   Os soldados corajosos e valentes serão colocados nos postos de comando.  Os covardes, os egoístas e traidores, não escaparão das balas do pelotão.  Assim asseguro diante de todo o exército vermelho.” (Ordem Nº 59 do Presidente do Conselho Revolucionário de Guerra da República, Leon Trotsky, citado em Escritos Militares, Vol 2)

A violência foi utilizada também contra os Socialistas Revolucionários, após serem descobertas várias tentativas de assassinato de líderes bolcheviques e a gestação de uma insurreição.   Toda esta violência, justificada pela necessidade de lutar ferozmente pelo estabelecimento da ordem soviética, teve resistências dentro do Partido Bolchevique e na Internacional e foram reacendidas na luta política, pela burocracia estalinista.

O caso que suscitou mais polêmica, e iria acompanhar as calúnias contra Trotsky por toda a vida, foi o julgamento de comandantes e comissários políticos bolcheviques, que, durante a ofensiva de Kapel, capturaram um barco junto com seu regimento, para fugir da linha de frente.  Os desertores se renderam e foram capturados.  Trotsky nomeou um Conselho de Guerra, que condenou o comandante, o comissário e vários membros da tropa ao fuzilamento.  No total, 27 pessoas foram condenadas.

Este episódio servirá para construir a sombria lenda, incansavelmente repetida, de que Trotsky teria alinhado o regimento desertor e o dizimado à maneira romana: cada décimo soldado teria sido fuzilado ao acaso.   Ora, foi um tribunal militar de campanha que tomou a decisão e condenou aqueles que julgou culpados “ (História da Guerra Civil Russa, Jean-Jaques Marie).

Esta lenda, reconstruída pelo seriado, foi contada e recontada pelos soldados e oficiais contrarrevolucionários, aumentando o medo e o terror sobre as tropas inimigas diante da personalidade “cruel” de Trotsky.

Não há qualquer comprovação documental sobre o uso do decimatio por Trotsky, seus comandados ou por tribunais militares dentre a documentação de Volkogonov.  É possível encontrar em alguns escritores americanos o fato, mas sem qualquer fundamentação histórica, documental, artigo ou ordem militar, apenas uma repetição uns dos outros e, com certeza, parte da lenda.

Observemos que o stalinismo não utilizou a lenda do decimatio para caluniar a perseguir Trotsky, mas sim o fato de ele ter “enviado” para o fuzilamento os próprios bolcheviques.

A lenda do decimatio foi reinventada pelo seriado.

A prisão em Odessa e o nome Trotskty
Há muitas histórias sobre a origem do nome Trotsky.  Uma delas, relatadas por um de seus maiores biógrafos, Isaac Deutscher, era a de que Trotsky tirou o seu nome de um de seus carcereiros.  Outra, a de que recebeu o passaporte com um nome preenchido ao fugir de sua primeira deportação em Samara.

O próprio Trotsky não menciona a origem do nome, relatando apenas que preencheu o passaporte por acaso, com qualquer nome que lhe veio à cabeça.  Tampouco faz qualquer referência sobre qualquer tipo de carcereiro.

Entretanto, o seriado fantasia um relacionamento de ensinamento moral de seu carcereiro em Odessa, no ano de 1898, prisão que permaneceu durante um ano e meio.  Na fantasia, o seu carcereiro o convence de que o mesmo sabe que o futuro Trotsky desejava tão somente o poder.  O rosto de Trotsky abstraído, com o pensamento navegante, prova que o carcereiro estava certo.  O futuro Trotsky somente desejaria o poder. Mas era ainda inconsciente disso.  A revelação veio de seu carcereiro, que lhe dá uma grande lição: o povo Russo precisa ser comandado e ele não queria outra coisa senão exatamente isso.

No meio de citações de Dostoievsky, o espectador é levado a crer que Trotsky era apenas um ávido pelo poder.   A personalidade de Trotsky é construída paulatinamente pelo seriado, apresentando ao espectador uma pessoa fria e obcecada.

É Lênin quem chama Trostky para o Iskra; não há encontro casual em Paris
Uma das cenas mais grotescas do seriado, ainda no primeiro episódio, relembrando fatos para justificar a sua personalidade, é mostrar Trotsky em um café parisiense, em 1902.  No café estão Lênin, Parvus, Plekanov e sua futura esposa, Natalia Sedova.  Parece uma charge.

Enquanto Trotsky discursa, Parvus assedia Natalia, deslizando sua mão por cima da dela.  Parvus é o seu “senhorio” no seriado.

Na plateia, um Lênin atento e trocando olhares com Parvus, ouve com concordância o discurso de Trotsky, que mistura uma prévia de “balanços e perspectivas” (1905) com um nacionalismo vulgar.  Trotsky fala que a revolução ocorrerá na Rússia atrasada, e não na Europa moderna e “educada”.

Um Plekanov desdenhoso questiona Trotsky e resume corretamente o pensamento marxista na época: a Rússia não é industrializada, é atrasada, a revolução se dará nos países industrializados.

De fato, a grande elaboração teórica de Trotsky, considerada uma das maiores atualizações marxistas da época, de que, em linhas gerais, sendo o proletariado o principal agente revolucionário na revolução democrática na Rússia, o mesmo iria conquistar o campesinato e consolidar o governo revolucionário do proletariado.

Além disso, ainda que o proletariado fosse minoria, sua aliança com o campesinato transformariam ambos na força determinante e majoritária de uma revolução.  Devido a isso, a revolução na Rússia não iria ser contida na revolução democrática, e sim, “permaneceria” até a instauração de um governo operário e camponês.

E que, pelas contradições da Rússia, seu endividamento com o resto da Europa e sua extrema pobreza, a revolução poderia se dar antes na Rússia que no resto dos demais países Europeus industrializados, mas que dependeria deles para sobreviver, pois a aliança com o campesinato era tática e não sobreviveria.

Esta elaboração, uma grande contribuição para o método marxista na época, antecipou, com uma ou outra variável não prevista, exatamente como se daria a revolução na Rússia e na Europa nos ano seguintes, e é considerada uma das maiores contribuições teóricas marxistas até hoje.  Trotsky praticamente revoluciona todas as concepções na época, rompendo com a visão conservadora sobre o papel do proletariado na revolução democrática, que até então era visto como sujeito social, mas de uma revolução burguesa.

Entretanto, o seriado continua com o discurso de Trotsky, colocando em sua boca um nacionalismo russo oculto em palavras que deslizavam de seu discurso: “potência”, “uma força, como a força das marés”, uma força que “destruirá tudo o que estiver em seu caminho”.  Sim, Trotsky agora é o líder de uma grande pátria mãe chamada Rússia.  Um elogio à Rússia atual, de Putin.

Obviamente, Trotsky jamais faria um discurso que incluísse a segunda parte deste ato.  Seu pensamento marxista já formado e seu internacionalismo proletário, que seria testado e comprovado anos depois, o faria exasperar sua raiva contra os Romanov, os Hohenzollern e a bolsa de valores de Londres.  Seu discurso jamais terminaria com uma Rússia “potência”, mas sim, de uma Rússia pobre, feudal, e que apenas a revolução na Europa poderia acelerar e salvar sua revolução, criada pelo proletariado e o campesinato.

Como se não bastasse, Plekanov se levanta irritado e temos o início da briga entre ambos.  Em um café de Paris, segundo o seriado.

Mas o mais bizarro de tudo isso, que nunca existiu, é quando Lênin paga para Trotsky um dos salgados servidos, se apresenta e fala: “Quero mudar o mundo.  O que o povo tem a ver com isso?  O povo é um instrumento.”  “Nas suas mãos?”, pergunta Trotsky.  “Ou nas suas”, responde Lênin.

E Lênin conclui: “Você aprende rápido.  Volte outro dia”.  “Como amigos”.  “Não somos amigos”, responde friamente Trotsky.

O primeiro encontro entre os dois maiores líderes e teóricos socialistas do século XX foi resumido em um encontro entre um revolucionário ávido pelo poder e outro completamente indiferente ao povo, que trocam ofensas abstratas sem sentido algum!

Esta infame história contada é completamente desprovida de qualquer realidade.  Na verdade este encontra não apenas nunca ocorreu, como os fatos são completamente outros.

Para começar, foi Lênin quem convidou Trotsky para se apresentar em Londres, onde a direção do POSDR (Partido Operário Social Democrata Russo) redigia no estrangeiro o jornal Iskra, órgão do Partido dentro da Rússia.  Lenin já era informado das atividades e escritos de Trotsky e desejava, além de conhece-lo melhor, convidá-lo para fazer parte da direção do Iskra, junto a outros emigrados.  Trotsky passou a fazer parte da equipe que redigia o jornal, e apenas quando Lênin o propõe para fazer parte da direção é que as rivalidades com Plekanov surgem.

Trotsky conhece Natália Sedova, que seria sua futura esposa em Paris, durante uma de suas palestras organizadas por grupos de emigrados.  Natalia Sedova não tinha relação alguma com Parvus e não morava de aluguel em seu apartamento.

Esta versão fantasiosa, conscientemente deturpada, tem o objetivo de prosseguir na construção de uma caracterização de que os principais líderes revolucionários emigrados são um bando de charlatões, frequentadores de cafés em Paris, com dinheiro no bolso, alheios aos interesses do povo pobre da Rússia, sorrateiros, insidiosos e assediosos entre si.  Todo o estereótipo que a burguesia sempre desejou construir de revolucionários profissionais.

Além disso, a despedida entre Lênin e Trotsky, com um “Não somos amigos”, visa reconstruir outra mentira estalinista, de que Lenin e Trotsky tinham diferenças mortais, eram inimigos e não havia confiança entre si.  Mais que reconstruir um Lenin e Trotsky ávidos pelo poder, foi preciso reconstruir também a rivalidade entre ambos, não política, mas pessoal, sem qualquer explicação.

Fato é que as discordâncias de Lênin e Trotsky só viriam a aparecer um ano após sua chegada na Inglaterra.  E que, apesar de Lênin e Trotsky arrastarem suas diferenças sobre a concepção de Partido durante anos, Trotsky nunca se alinhou ao pensamento menchevique e à política de colaboração menchevique.  Ao chegar na Rússia em 1917 ambos falam em uníssono e quase que sozinhos sobre não participarem do novo governo e prepararem a insurreição, inclusive contra toda a direção bolchevique na época, que dirigia o Partido da Rússia.

Após a revolução, Lênin e Trotsky trabalhavam e moravam quase juntos durante meses.  Suas elaborações, consultas e acordos políticos foram fundamentais durante a Revolução, Guerra Civil e no início da luta contra a camarilha burocrática coesionada por Stálin, que começava a mandar e desmandar no aparato do estado dentro e fora da Rússia, e em particular, na Geórgia, onde a direção fora substituída por nomeados por Stálin.  A morte de Lênin enfraqueceu a luta e a camarilha começou a criar estratégias para se consolidar e afastar Trotsky.  Uma delas foi construir a versão que o mesmo era menchevique e que Lênin tinha menores considerações por ele.  Tudo reeditando velhas polêmicas e reescrevendo a história da Revolução.

Os últimos documentos de Lênin, suas cartas ditadas, cartas de Krupskaia para Trotsky e outros documentos recém-liberados, como disse, mostraram um Lênin obstinado por ter Trotsky a seu lado na luta dentro do Partido.

O seriado tem o interesse de não apenas reescrever a Revolução, como fez o stalinismo, mas também afastar Lenin de Trotsky e apresenta-los como inimigos, cujo único enlace entre ambos era apenas a luta pelo poder.

Parvus participou da revolução de 1905 antes de trocar de vida
As fantasias criadas não tem fim.  O seriado prossegue realizando um insólito encontro entre Parvus e Trotsky.  Trotsky o acusa: “Ganha dinheiro com tudo”, “É um oportunista”.  E Parvus começa: “Precisamos de um novo líder”.  “Torná-lo famoso é o meu trabalho”.  “Líder tem que controlar”.  “Parece sexo”.

Trotsky pergunta o que ele ganha com isso. “Dinheiro”, responde Parvus.  “Farei dinheiro usando o seu nome”. E então, Trotsky aceita: “Eu aceito.  Quando começamos?”

Depois dessa fanfarronice total, Parvus o leva para morar em um prédio todo seu, onde hospeda os “líderes socialistas”, dá para Trotsky um quarto e o leva para comprar roupas e vestir-se adequadamente.

Após isso, Parvus se encontra com um misterioso alemão, interessado em promover uma revolução na Rússia e diz que isso custaria um bilhão de marcos…

Alexander Parvus, nascido Israel Lazarevich Gelfand, foi um socialista russo, emigrado para Suíça e depois para a Alemanha, onde ingressou no Partido Social Democrata.  Teve seu desenvolvimento teórico reconhecido com um trabalho sobre a economia Russa, denominado Manifesto Financeiro, recebendo elogios de Lênin e tendo divulgação na Rússia.

Parvus conhece Trotsky em 1903, onde começam a trabalhar juntos em um jornal e a produzir os primeiros ensaios sobre a Teoria da Revolução Permanente, posteriormente desenvolvida e concluída por Trotsky.  Em 1905 retorna à Rússia e participa diretamente das atividades politicas então, tendo sido preso e condenado ao exílio na Sibéria.  Conseguiu escapar e retornar à Alemanha.

A vida de Parvus até este período era dedicada à política, sendo ele considerado um dos maiores nomes teóricos e políticos na Rússia.  Longe de ser o oportunista que prevaleceria alguns anos depois, sua trajetória até então perpassou os anos incólume ou ainda não descoberta.

Aqui surge uma recriação interessante, que é a fantasia de que os Bolcheviques foram financiados pelos alemães.  Esse ardente desejo, surgido durante o governo provisório de Kerensky em 1917, em uma tentativa de deter o crescimento dos bolcheviques, é reconstruído pelo seriado já em 1902, como parte de uma tentativa de confirmar as futuras denúncias!

O fim de Parvus foi, como vários outros socialistas emigrados, trocar a revolução por uma carreira confortável.  Parvus fez dinheiro realmente.  Depois de retornar da Rússia em 1905, fez estranhos negócios com Gorky, negócios na Turquiia com a venda de armas, e outras tantas atividades bizarras que lhe renderam muito dinheiro e muitas histórias.

O seriado reconstrói um Parvus financiando Trotsky (e também tendo financiado Lênin e Plekanov), já em 1902, em busca de sucesso em sua empreitada revolucionária.

Ou seja, a simples antecipação de alguns anos nos fatos, coloca Lênin e Trotsky em colisão completa com o financiamento de Parvus e a sua vida de político profissional.  Ou seja, antecipamos alguns anos e temos realmente os Bolcheviques sendo financiados por Parvus e, de quebra, pelos alemães!

Não é à toa.  Toda a fantasia converge para a reconstrução dos revolucionários bolcheviques em moldes profissionais sediciosos.

Em pleno centenário da Revolução Russa, o Partido e os revolucionários que organizaram, instruíram, teorizaram e realizaram a revolução, não passam de gângsteres para os olhares públicos.

Em breve iremos confrontar com a verdade o segundo episódio…