Em agosto de 2009, aos 20 anos da “última viagem” de Raul Seixas, publicamos uma matéria (“Por que tem que tocar Raul”, disponível no Portal do PSTU) em que destacávamos alguns aspectos da vida e da obra do nosso eterno “maluco beleza” que fazem dele figura única e sempre presente no cenário da música e da cultura brasileiras.

Agora, o lançamento do ótimo documentário “Raul Seixas: o início, o fim e o meio” nos permite revisitar a vida do cantor através de entrevistas e imagens inéditas que formam um verdadeiro banquete para os apreciadores de Raulzito e também para todo e qualquer um interessado na história da cultura e da música nos últimos 50 anos.

Um mosaico chamado Raul Seixas
Para além da cinematográfica vida que Raul Seixas teve, grande parte da qualidade do filme é resultado da competência e sensibilidade de seus dois diretores.

Walter Carvalho, dono de uma obra extensa, é mais conhecido por filmes como “Central do Brasil”, mas também tem excelentes documentários no seu currículo, como “Notícias de uma guerra particular” (sobre a violência nas comunidades cariocas). Já o co-diretor, Evaldo Mocarzel assinou a direção de uma interessante série filmes com o título “À margem…” (da Imagem, do Lixo e do Concreto).

O domínio dos dois da linguagem do cinema para contar uma boa história fica evidente logo nos primeiros instantes do filme. Primeiro, da tela completamente preta, surge a voz de Raul lendo uma espécie de testamento para suas filhas. Corte rápido, ouvimos alguém declamando os versos iniciais de “Uivo” – “Eu vi os expoentes de minha geração destruídos pela loucura” –, o poema de Allen Ginsberg que, no final dos anos 1950, sintetizou a visão de mundo da geração beatnik.

Mal o verso acaba, a tela é preenchida por imagens que revezam cenas do filme “Easy Rider” (“Sem destino”, um clássico da geração “hippie”) mescladas com as de um “clone” de Raul que vaga de moto pelo sertão. Tudo isto embalado por “Asa Branca” e desconcertantes acordes de guitarra.

Enfim, um mosaico digno da trajetória e obra de um sujeito que fez de sua própria vida uma “metamoforse ambulante”. Baiano, que cresceu escutando Gonzagão no rádio, Raul tornou-se fã alucinado de Elvis Presley, sem nunca deixar de reconhecer as influências que negros como Chuck Berry e Little Richard tiveram nas origens dos acordes e rebolados do “rei do Rock”.

Poeta “louco” que, particularmente nos anos 1970 e início dos 80, soube transformar em música o “grito contido” de toda uma geração marcada pela caretice e repressão da ditadura, Raul também foi um sujeito de grandes e conturbados amores, que resultaram em três filhas (para quem ele deixou todos seus bens e direitos autorais).

“Esquisitão” que nunca fez muito esforçou para se enquadrar nos padrões sociais, Raul transformou-se num ícone nacional, uma verdadeira lenda, que mais de 20 anos depois de sua morte continua vendendo 300 mil discos por ano e empolgando uma multidão de seguidores, muitos dos quais beiram o fanatismo.

Tudo isto está no documentário. E o melhor: através de uma edição que, apesar de se destinar evidentemente a fazer uma homenagem ao cantor, tenta fugir da hipocrisia, vasculhando, inclusive, o “lado B” da vida de Raul, principalmente sua doentia relação com as drogas, particularmente o álcool e a cocaína, que o fizeram mergulhar em momentos de patética decadência e inegavelmente aceleraram sua morte.

Mosca na sopa
Sem ficar muito preso à ordem dos fatos, mas também sem deixar de lado os momentos-chave da vida do cantor e compositor, o filme também é um prato-cheio para os fãs de “carteirinha” e os amantes da música.

São particularmente interessantes os depoimentos de alguns dos principais parceiros de Raulzito. Há, por exemplo, a fala de Edy Star sobre o alucinado “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10” (que ele, Raul, Sérgio Sampaio e Miriam Batucada produziram em 1971) e questiona qualquer suposição de que Raul tivesse problemas com gays, já que ele próprio e Miriam Batucada nunca esconderam suas orientações sexuais.

Como também, o público mais atento não deixará de se “divertir” com as tentativas do hoje “careta capitalista” Paulo Coelho em relocalizar a si próprio como parceiro do “maluco beleza”, como alguém que, como ele próprio diz, apresentou “todas as drogas” ao cantor e o introduziu nas bizarras seitas esotéricas-satanistas em que os dois se envolveram no princípio dos anos 1970 (anos em que Coelho, sintomaticamente, chama de “período negro” de sua vida, o que dispensa comentários…)

Uma tentativa brindada com uma sequência daquelas que só o cinema pode registrar: em plena entrevista (concedida na bilionária e requintada casa do escritor em Genebra), uma mosca “terceiro-mundista” fez questão de participar das gravações. O resultado precisa ser visto, para que se entenda o quanto a tal mosca contribuiu para o documentário.

O “lado B” de Raul
“O início, o fim e o meio” não se furta do período mais sombrio do cantor. Está tudo lá: os porres que inviabilizaram ou interromperam apresentações; a quebra abrupta da relação com mulheres, filhas e até mesmo sua degeneração física e mental. Contudo, tudo isso geralmente surge em depoimentos de gente que reconhece que Raul conseguiu nos brindar com obras maravilhosas até mesmo de seus piores momentos.

Afinal, não é qualquer um que pode sacar uma música como “A maçã” (“se eu te amo e tu me amas…”) de uma separação tempestuosa ou, ainda, produzir “Sociedade Alternativa” como síntese das relações com uma seita cuja confusão ideológica só não é menor do que a bizarrice de seus propósitos.

Pra assistir cantarolando
Registro digno da vida e obra de um sujeito cuja própria “definição” é a dificuldade de se definir, o documentário possibilita, principalmente para aqueles e aquelas que cresceram ao som de Raul, uma viagem instigante e emocionante pela vida e obra do cantor. E, por isso mesmo, em qualquer sessão do filme não faltam aqueles que façam coro acompanhando músicas como “Ouro de Tolo”, “Gita”, “Medo da Chuva” e tantos outros sucessos.

E a se considerar a bilheteria que o filme vem alcançando, é provável que sejam muitos os jovens que, ao sair do cinema, se lancem na descoberta do multifacetado Raul. O que, por si só, é ótima notícia. Afinal, há muito precisamos de um “maluco beleza” que sacuda a pasmaceira e mediocridade reinantes no cenário musical brasileiro.