Capa do disco Brasil, com ilustração de Macartti
Tácito Chimato

O ano era 1989. A banda Ratos de Porão, oriunda do movimento punk de São Paulo, já havia ido para um som mais metal, que era comercialmente mais bem-sucedido. Nessa época, o Sepultura, que havia participado intensamente do disco do Ratos Vivendo cada dia mais sujo e agressivo de 1987, já chamava grande atenção com dois discos de grande impacto internacional. Sua gravadora, a RoadRunner Records, compra a Eldorado, responsável pelo Ratos, e decide investir na banda que passa a compor e se dedicar intensamente aos ensaios na casa do guitarrista na Vila Piauí, uma das dezenas de vilas do bairro de Pirituba, periferia de São Paulo. Com uma considerável verba para uma banda do gênero, embarcam no mesmo ano para Berlim, onde gravariam seu maior clássico, o disco Brasil.

Falar em números sobre o Ratos de Porão é relativo. Distante de qualquer recorde de venda ou sucesso comercial, a banda angariou, ao longo de 38 anos de carreira, um público fiel e cativo espalhado mundo afora, se tornando a banda mais longínqua do rock pesado brasileiro. Seu vocalista, João Gordo, se tornou marca da televisão nos anos 90 pelas entrevistas sem limite algum na MTV, onde presenteou todos os músicos, políticos, apresentadores e famosos que passaram por seus programas com algum merchandise do Ratos, tornando a banda um ícone da rica cena do rock underground nacional para o mundo inteiro. Porém, muito antes dessa exposição, o Ratos já galgava sua carreira internacional, em parte pelo sucesso desse disco. O segredo foi a produção. Acostumados com os estúdios brasileiros, que começavam a descobrir como trabalhar com rock pesado, o Ratos de Porão passava longe de qualquer disciplina, gravando da maneira que podia. Mas, sob a mão de ferro do produtor Harris Johns, especialista na cena de metal alemã, eles aprenderam a se portar em um estúdio e a regravar quantas vezes fosse necessário.

Por insistência da RoadRunner, o disco foi gravado em duas versões, uma em inglês e outra em português. Porém, o contrário do que começava a acontecer com algumas bandas de rock extremo da época, que começavam a cantar em inglês dado o sucesso do Sepultura, a segunda versão foi a que prevaleceu com o tempo. O segredo, talvez, está na origem do Ratos. Mesmo passeando por diversos estilos do rock pesado, a banda sempre manteve o discurso punk de revolta e indignação contra um mundo que recusa oportunidades para a juventude da periferia, muito distante das bandas pesadas brasileiras da época, que prezavam pela técnica instrumental e uma temática mais alinhada ao mercado internacional, como o sobrenatural. Assim, não só a mensagem permanece muito mais fiel em português, como seus discos sempre soam contemporâneos à época, como mostra Brasil, uma perfeita alegoria de 1989 e, em diversos trechos, com agora, 30 anos depois de seu lançamento.

Sua capa, do cartunista Marcatti, trás a ilustração de um homem com a camisa da seleção e diversas cenas ao fundo, como a violência policial e uma queimada florestal. Todas as letras revelam as tragédias do capitalismo no Brasil e bradam uma desesperança com o futuro, como o verso da Terra do Carnaval:Segue a vida, pé no chão/ Dentes podres, ilusão/ Que o Brasil vai melhorar/ Mas eu acho que não vai!”. Assustadoramente, não só essa, mais muitas letras do disco se encaixam no contexto atual. Basta dizer que ele abre com a emblemática Amazônia Nunca Mais, que o próprio título já indica semelhança com nossa realidade de 30 anos depois.

Contexto histórico do disco: O Punk e a CS no olho do furação
Ao final dos anos 70, o punk desembarcava em São Paulo sem as inúmeras referências políticas que o nortearam na Europa, prevalecendo uma forte organização de gangue, que se concentrava em dois núcleos: no ABC Paulista, na região metropolitana de São Paulo, e na zona norte de São Paulo, em especial na região do bairro Freguesia do Ó e seu entorno.

Na mesma época, a ditadura caminhava para seu fim. A opressão e exploração na vida da classe operária esmagava ao ponto de tornar a reação inevitável, explodindo diversas greves no ABC. Em 1979 a Convergência Socialista, que originou o PSTU, chama a construção do Partido dos Trabalhadores, e tem importante participação no processo que culminaria na grande greve de 40 dias do ABC em 1980, com a prisão de Lula e outros ativistas, entre eles, Zé Maria. O punk do ABC segue então uma linha bem alinhada com a realidade operária, com letras mais voltadas para esse cotidiano, como o Subúrbio Operário, do Garotos Podres, de Mauá: “Nasceu num subúrbio operário/
de um país subdesenvolvido/ apenas parte da massa/ de uma sociedade falida
”.

Do outro lado, em São Paulo, a violência policial, alinhado ao desastre econômico do governo Figueiredo com a disparada da inflação, não davam perspectiva de futuro para a juventude. Em 1980, a Freguesia do Ó, colada aos bairros Brasilândia e Pirituba, foi palco da Pancadaria do Ó, quando manifestantes da região foram para cima da polícia em uma visita do governador. Na mesma época, é formada na região a Carolina Punk, a maior e mais famosa gangue punk de São Paulo. Em 1981, três garotos de Pirituba no meio desse caldeirão formam o Ratos de Porão, com um claro discurso de revolta, como em Novo Vietnã: “Vamos transformar o Brasil num novo vietnã/ Onde seus medos irão se acabar ou eles irão se multiplicar/ E ninguém vai ajudar, se não ajudar eu vou ajudar”. Três anos depois, a banda, agora com João Gordo nos vocais, lança o primeiro disco de hardcore da América Latina, o seminal Crucificados Pelo Sistema.

Com o avanço do governo Figueiredo, foi se tornando cada vez mais notável que a ditadura estava em seu limite. O descontrole da inflação resultou em diversos saques em mercados Brasil afora e a Convergência participava da fundação da CUT. As manifestações pelas Diretas Já levavam milhões de brasileiros as ruas, e diversos militantes e artistas voltavam ao Brasil com a lei da Anistia. A democracia enfim voltava, mas ainda controlada. As eleições foram indiretas, com a vitória de Tancredo Neves, que viria falecer e ser substituído por seu vice, José Sarney. Nesse meio tempo, o movimento punk foi difamado no Fantástico, que retratou diversos integrantes da cena como marginais. As brigas entre gangues do ABC e São Paulo também se tornavam cada vez mais constantes, tornando a música motivo de chacota e a realização de qualquer show impossível, já que ninguém se atrevia a encarar um público tão explosivo. A cena esfriou e algumas bandas passaram a migrar para outros estilos, como o caso do Ratos, que se aproximou da cena de metal mineira. Eles decidem apostar suas fichas em uma nova formação no disco Descanse em paz e angariam um contrato com a promissora Cogumelo Records, que investiu no próximo disco, o Vivendo Cada Dia Mais Sujo e Agressivo.

Sarney entrou com enorme expectativa no governo, com a esperança de um novo Brasil. Porém, seu governo degringolou para um aprofundamento da inflação, com diversos planos econômicos mal sucedidos. E, em 1989, ocorre a primeira greve geral do país em 30 anos. É diante de toda essa história que o Ratos trabalhou seu álbum.

O Brasil do Ratos e o de 2019: o que mudou?
Amazônia Nunca Mais, que abre o álbum, é uma denúncia contra o extermínio da floresta desde a colonização. No final de 1988, Chico Mendes, militante socialista, é assassinado, chamando toda a atenção do mundo para a exploração capitalista irrefreável na floresta. Mas, ao ouvir a música em 2019, um ano marcado por manifestações no mundo contra a mudança climática e casos absurdos, como do INPE, a música se encaixa como luva nos dias de hoje. O Ratos dispara no refrão: “Morte pra quem defende o verde e os animais/ Doenças, misérias, queimadas, devastação/ Por que ninguém faz nada para os deter?/ Cuidado, senão, Amazônia nunca mais!”.

Retrocesso, segunda música do disco, denuncia o poder militar, que voltava para os bastidores perdoados pela lei da Anistia de 1979, que os próprios redigiram: “Cuidado com o poder/ Do regime militar/ O tempo vai retroceder/ E o DOI-CODI vai voltar no…/Brasil! Brasil! Brasil!”.  Em S.OS País Falido, a banda fala sobre a inflação descontrolada no país e a falta de perspectiva para o futuro: “Somos um povo sofrido/ Acreditamos em Deus e na seleção/ Estamos num barco furado/ Não temos dinheiro, nem revolução/ Só 1000% de inflação/ Eu acho que o barco vai afundar/ 2000% de inflação/ Nem São Tancredo vai ajudar”. Crianças sem futuro soa como um tapa na cara diante do discurso do nosso presidente miliciano de hoje que diz que não há fome no Brasil: “Temos crianças mortas para exportação/ Umas morrem de doença, outras por inanição/ Agora a Etiópia está com inveja do Brasil/ Ganhamos em pobreza e em mortalidade infantil”.

Farsa Nacionalista, segundo João Gordo, na realidade é uma música sobre os skinheads de São Paulo. Porém, se encaixa nos defensores mais intransigentes da extrema direita de hoje, que insistem em defender um Brasil que não existe, e, pelo álbum, nunca existiu: “Seu orgulho é totalmente sem sentido/ Cê trabalha como um animal e vive como um cão/ Isso representa algum tipo de sensacionalismo/ Cópia mal tirada, contradição”. Porcos Sanguinários denuncia a violência policial na periferia, remetendo diretamente ao genocídio do povo negro “Medo em cada esquina/ Terror no camburão/ A cana é sua sina/ Se tiver cheiro na mão”. E, talvez a música mais emblemática de todo esse discurso, Terra do Carnaval, onde é impossível não se identificar o verso inicial: “Você sabe de onde eu venho?/ Da terra do carnaval/ Onde a maioria é pobre/ E se fode pra viver”.

O álbum ainda tem diversos clássicos, como o maior sucesso da banda, Beber até Morrer, e outras músicas fora do discurso político. Mas, o que fica marcado é a semelhança entre o conceito do álbum, a crítica ao então projeto de país que se apresentava diante de 1989 e a realidade de hoje. A atemporalidade do disco, porém, não foi pensada. O guitarrista e fundador da banda, Jão, disse em recente entrevista sobre o disco: “Nós passamos por muita falta de informação na época. A gente era revoltado, não era revolucionário. Não tinha esse lance de agir politicamente. Vivíamos muito loucos e éramos contra tudo, família, igreja, governo, político. Mas não tínhamos nenhuma formação, que hoje em dia tem em um monte de segmentos”. O que pode se dizer, afinal, de versos que ilustram tão bem o Brasil dos tempos atuais?

Show comemorativo do 30 anos do álbum Brasil, no Sesc Pompéia em São Paulo

Somente a via parlamentar não basta
Ao longo desses 30 anos, muitas coisas ocorreram. O próprio Ratos de Porão ainda embalaria outro disco clássico, o Anarkofobia e um disco ao vivo, mas os problemas com drogas e más decisões da gravadora levaram a banda a voltar definitivamente ao underground, onde seguem firmes até hoje. Dos anos 90, sem dúvida o destaque fica com o disco Feijoada Acidente, uma verdadeira homenagem a história do punk mundial.

O discurso do disco Brasil, dada a própria opinião do guitarrista, em nenhum momento propõe uma revolução. É um disco de denúncia de quatro jovens da periferia diante da realidade em sua volta, e encontraram na violência do hardcore a força para reagir.

Após 30 anos desde a redemocratização parece que pouco mudou. O próprio PT escolheu seu lado, da via parlamentar, e deu no que deu. Sempre denunciamos que somente a via parlamentar não basta, e que o próprio parlamento, pela natureza do Estado, é um espaço burguês. Basta ver o número de empresários, latifundiários e famílias inteiras de políticos que governam o país há anos.

O PT governou esse tempo todo sem todos eles? Claro que não. E por isso que o disco Brasil é tão bem lido até hoje. Porque, na realidade, não houve nenhum processo revolucionário. Muito pelo contrário, passaram longe sequer das sugestões que a banda deu em Terra do Carnaval: “Afasta essa cambada do poder, eu quero ver!/ Dê esperança ao povo com fim da inflação; Siga seu mandato honestamente até o fim/ Cuidado com o povão…. O PT só fez a última parte, se afastando totalmente da base e se tornando mais uma figura nos parlamentos Brasil afora. Agora, diante de uma enorme insatisfação da população com o governo petista, a extrema direita se elege sob uma campanha de mentiras e de acabar com “tudo isso aí”. A figura patética de Bolsonaro, o típico senhor repulsivo que brada bravatas de ódio, é, na realidade, a consequência de tudo isso.

“Deu tudo errado!”: a necessidade de superar o capitalismo
Não tenhamos ilusão: é óbvio que um governo que flerta com militares, sugere uma revisão da história sobre a ditadura, avança na entrega do país ao imperialismo e incentiva a violência contra as minorias é pior. Mais do nunca, Amazônia Nunca Mais faz sentido quando saímos as 16 horas em São Paulo e nos deparamos com uma escuridão noturna, dado o volume de queimadas da Amazônia.  A música Retrocesso, também, faz ainda mais sentido agora, com os militares orbitando o poder executivo como não faziam há anos.

É fato que, ao longo desses trinta anos, o “nada mudou” é cada vez mais persistente. Não a toa esse disco tem chamado tanta atenção agora. Mas para a população, esse sentimento não é só sobre 2019, mas sobre todo nosso passado recente. Basta uma rápida olhada em toda a história contada no disco Brasil para perceber que fica difícil esquecer a relação entre as letras e todas as promessas feitas por um país melhor.

Ao longo dos anos, a previsão feita pelos Ratos continua assertiva. Sem esperanças no capitalismo e na democracia burguesa, afinal o parlamento não é nosso campo. Isso era válido há 30 anos e ainda é hoje. Por isso prestamos essa “homenagem” a uma banda e um disco que, querendo ou não, se não deu o caminho das pedras com um programa político, foi a porta de entrada para muitos militantes dizerem “não!” contra o capitalismo e a ordem burguesa.

Par ouvir:


Par entender:

Hardcore: subgênero do rock oriundo do punk, no final dos anos 70, que preza ainda mais a velocidade e o peso. Tornou-se extremamente popular no mundo a partir dos anos 90, quando diversas bandas passaram a usar a estrutura sonora do estilo com mais melodia, como o caso da banda Green Day, e no Brasil, o Raimundos.

Underground: Por underground, entende-se toda a expressão cultural que passe por fora da indústria, desde a moda, música, poesia, entre muitos outros. No Brasil, o termo ficou ligado a uma série de bandas, a grande maioria de rock pesado, que constroem uma cena fora da grande indústria fonográfica, ou com o apoio de pequenas gravadoras ou de maneira 100% independente. 

Punk Rock: Subgênero do rock, extremamente popular na Europa nos anos 70. O punk começa com uma série de bandas da região de Detroit, nos Estados Unidos, do final dos anos 60 que, mesmo sem possuir a técnica das grandes bandas clássicas, apostavam na vitalidade dos shows e em uma postura artística mais radical. Com a popularidade desse grupo, diversos artistas passam a tentar reproduzir o estilo a partir dos anos 70, com destaque especial para a cena novaiorquina formada em torno da casa de shows CBGB, onde se apresentou a banda mais importante do gênero, o Ramones. Com o lançamento do disco deles na Inglaterra, diversos jovens passaram a formar suas próprias bandas e a incorporar a realidade britânica da época nas letras, com especial destaque para o disco Never Mind the Bullocks: here they are…the Sex Pistols.

Metal: Gênero de rock pesado formado no final dos anos 60. Fiel a realidade da classe operária na época, o metal busca em uma sonoridade mais pesada e um discurso obscurantista a resposta ao movimento Hippie, que buscava um estilo de vida alternativo e a iluminação espiritual. O primeiro disco do estilo é o Black Sabbath, de 1969, da banda de mesmo nome, destaque em matéria no nosso portal. A partir dos anos 80, o estilo passa a se aproximar do hardcore, dando origem a diversas bandas do estilo do Ratos de Porão mundo afora.


Par ler e assistir: