Tão complexa quanto a discografia de Bob Marley é a religião por ele adotada: o Rastafarianismo. Em uma síntese bastante breve, pode-se afirmar que a seita é uma mescla do judaísmo e do cristianismo primitivos com tradições africanas (egípcias, em particular), que baseia-se na crença em Jah (abreviação de Jehovah) e na oposição de um “paraíso”, identificado com as terras da Etiópia (para onde todos os negros deveriam retornar um dia), e a “Babilônia” (muitas vezes identificada com o próprio sistema e suas instituições, como o papado, o exército etc).

Criada na própria Jamaica, a religião tem a Etiópia como “terra santa” por ter sido lá que viveu o imperador Haile Selaisse I (1892-1975), considerado o Messias pelos Rastas. Aliás, o nome da religião deriva do nome original do Imperador Ras (príncipe) Tafari Makonnen que, ao se tornar imperiador, segundo seus seguidores, teria cumprido uma “profecia” popularizada Marcus Garvey, o líder negro jamaicano que, na década de 30, pregava o retorno de todos os negros à África.

Do ponto de vista histórico, o surgimento e crescimento do movimento Rastafari na Jamaica estão profundamente relacionados ao cenário sócio-político do país na década de 30, que foi marcada por levantes de trabalhadores, principalmente cortadores de cana, e por uma violenta repressão, que resultou em centenas de prisões e mortes. Em meio a essa efervescência social, a nova religião e seu discurso anti-sistema e anti-opressão ganhou rapidamente milhares de adeptos entre os mais pobres.

Tendo se espalhado por todo mundo, a religião acabou sendo um tanto banalizada, principalmente por aparecer quase que exclusivamente vinculada a uma de suas práticas, o consumo de cannabis de forma ritual. Contudo, suas práticas e teologia são muito mais complexas. E, no mínimo, contraditórias.

Baseados em passagens do Velho Testamento, seus seguidores não consomem bebidas alcoólicas, qualquer tipo de carne ou alimento que não seja considerado natural e mantém os famosos dreadlocks (cabelos trançados e nunca cortados que, de acordo com o significado do próprio termo, são utilizados para ironizar o medo que a aparência provoca nos não iniciados) seguindo um rigoroso código de rituais e preceitos que possam capacita-los a atingir a “terra prometida”, depois da queda da Babilônia e do julgamento final.

A mescla de religiões primitivas e, particularmente, o culto àquilo que é considerado “natural” é responsável pelas muitas contradições do movimento e seus aspectos mais conservadores, particularmente a aberta homofobia de muitos de seus seguidores.

Na Jamaica, a absurda condenação dos homossexuais por suas “práticas não-naturais”, além da discriminação generalizada, que frequentemente chega à agressão física, têm sido responsável por um tratamento criminosamente desumano, particularmente em relação aos portadores de HIV.

Uma situação que só pode ser veementemente repudiada, por mais simpatia que se tenha em relação a Marley e sua música.