Redação

Jean Salines, de São Paulo (SP)

Abriu-se uma nova situação da luta de classes no Brasil com as mobilizações de junho. Os novos ativistas que surgiram se enfrentam com inúmeras questões estratégicas, que poderão definir o futuro das mobilizações. Abordamos algumas delas aqui, especialmente as que têm a ver com a questão da democracia e as classes sociais.
Indivíduo ou classes sociais?
Antes de tudo, é importante discutir uma ideologia que se desenvolveu ao longo dos anos 1990, fortalecida pelos longos anos de ausência de lutas no movimento de massas: o individualismo, o culto de tudo o que significa o predomínio do indivíduo sobre o coletivo. Essa é uma das bases ideológicas mais fortes do neoliberalismo que deu origem aos planos econômicos que se aplicam até hoje no Brasil.
O neoliberalismo cultua o individualismo, disseminando a idéia de que basta se esforçar pelo bem da empresa que o empregado pode progredir na vida. Os trabalhadores são estimulados a competir uns com os outros porque “os melhores podem ganhar mais”. Isso se contrapõe à força das ações coletivas das assembléias, greves que ameaçavam o capital. O resultado é o reforço da dominação da burguesia sobre trabalhadores desunidos.
Não se tratava só de uma negação do coletivo, mas da negação também das classes sociais. O operário não precisava se identificar enquanto classe operária e, muito menos, identificar a burguesia como classe inimiga. Mas um trabalhador sozinho não pode enfrentar o patrão. Não pode parar uma fábrica. Ao contrário, devia se entender como um indivíduo, um “colaborado” que precisa se aliar à empresa para “progredirem juntos”.
Muitas ideologias que cresceram durante os anos de ausência do movimento de massas reforçaram o culto do indivíduo. As ideologias pós-modernas fazem questão de rejeitar o coletivo, as classes sociais. A decepção e o repudio às ditaduras stalinistas, às burocracias sindicais, aos partidos burgueses e reformistas reforçaram o individualismo.
E ninguém está imune. Parte do movimento anarquista se distanciou do anarquismo clássico que, apesar de seus equívocos estratégicos, apontava para a perspectiva de revolução social e estreita relação com a classe operária. Agora, a maioria dos movimentos anarquistas não tem nenhuma estratégia de revolução, nem tem referência de classe. Param na defesa da ampliação da democracia e do “horizontalismo”. Inconscientemente, apesar de serem contra a dominação capitalista, acabam por reforçar todas as ideologias individualistas que mantém essa dominação.
Para rejeitar o controle burocrático, propõe rejeitar toda forma de atuação coletiva. Cada um por cada um. Essa é ainda a ideologia dominante entre os ativistas das mobilizações de junho. Não se deve ter nenhuma organização, porque toda organização coletiva leva a burocracia. Os cartazes individuais, escritos à mão, são, por este motivo, a maior forma de expressão nas passeatas.
O fato das manifestações ocorrerem por fora da CUT e do PT foi extremamente positivo e despertou uma nova situação política no país. Mas para que esse processo siga adiante, essa espontaneidade inicial, senão superada, vai enfraquecer o movimento.
Um indivíduo pode não se reconhecer como parte de uma classe, e tampouco entender a situação política a partir da luta de classes. Isso não vai mudar a realidade que é determinada pela luta de classes, independente de ser ou não entendida por esse indivíduo. Expliquemos: a classe dominante, a burguesia, vai continuar dominando a sociedade. A dominação burguesa não é clara como a dominação da nobreza, dos monarcas etc. Ela ocorre sob o engano da “justiça para todos”, do “voto universal”, do “governar para todos”. A burguesia, minoria absoluta da sociedade, domina através das instituições da democracia burguesa, em nome do “voto de todos”.
A exaltação do “indivíduo” para se contrapor às práticas detestáveis das burocracias sindicais ou dos partidos burgueses não tem a mínima possibilidade de destruir a dominação da classe burguesa. Ao contrário, ajuda essa dominação ao negar a necessidade de uma alternativa coletiva. No caso, uma alternativa dos trabalhadores, uma classe social oposta à burguesia.
Em nossa opinião, é preciso construir uma alternativa coletiva, revolucionária, dos trabalhadores e estudantes para dar um novo rumo ao país. Isso é o que queremos dizer quando defendemos a necessidade de construir uma nova direção. Se isso não avançar, não haverá uma mudança real no país.
Organizar ou ação espontânea?
A discussão começa pela necessidade ou não de se organizar. O individualismo vem associado muitas vezes a uma defesa do espontaneísmo. Em um recente debate no Fórum de Lutas do Rio de Janeiro, uma ativista perguntava: porque se organizar ? Segundo ela, bastava resolver tudo na hora da passeata. Mais uma vez, predominava a desconfiança de qualquer organização como um entrave, uma burocracia. É a expressão de um movimento “horizontal”, formado apenas por indivíduos. Não seriam necessários partidos ou sindicatos, nenhuma organização.
Isso pode ser muito simpático, mas é um erro grave. Estamos em uma luta e nossos inimigos, a burguesia e seu Estado, não agem assim.
A burguesia tem inúmeras organizações profissionais, altamente treinadas e equipadas para enfrentar as massas. As Forças Armadas, os serviços de inteligência, a imprensa, os partidos burgueses e reformistas, as burocracias sindicais, etc.
Como entrar nessa luta sem organização? É como enfrentar uma partida de futebol contra o Barcelona com um time improvisado, amador e que nem se dispõe a discutir a definição da posição em campo de cada um, a tática de jogo, etc. Não existe nenhuma possibilidade de vitória.
É preciso preparar e organizar os atos, passeatas e greves para se enfrentar com os governos, com a polícia, etc. A própria existência de espaços como o Bloco de Luta, em Porto Alegre, a Assembleia Horizontal, de Belo Horizonte, o Fórum de Luta, do Rio, e o Mais Pão Menos Circo, de Fortaleza, é a expressão clara da necessidade de se organizar. É inegável o papel que estes fóruns cumpriram em lutas importantes, como passeatas e ocupações das Câmaras de Vereadores, por exemplo.
Isso não significa ignorar outras organizações existentes, como os sindicatos e partidos de esquerda. Não temos dúvida que a grande maioria do movimento sindical brasileiro, dominado pelas centrais pelegas, como a CUT e a Força Sindical, está há muito tempo vendido ao governo e às grandes empresas. Não é à toa que há poucos meses estávamos denunciando um projeto de flexibilização dos direitos trabalhistas proposto por um sindicato e apoiado pela CUT.
Mas o maior desserviço que o PT, a CUT e a UNE podem cumprir no movimento é levar milhares de ativistas a concluirem que toda forma de organização leva à burocratização e à traição. Se as organizações atualmente majoritárias não servem, é preciso criar outras que sirvam. Negar a direção dos sindicatos, não significa negar a necessidade dos sindicatos, mas construir uma nova direção para eles, através das oposições sindicais. Negar a CUT e a Força Sindical nos levou a construir a CSP-Conlutas, como uma central oposicionista e antiburocrática.
É isso o que propomos: negar o PT, o PSDB, assim como os partidos burgueses e reformistas. Mas não negar todos os partidos. Por isso estamos construindo o PSTU como um partido revolucionário, oposto a tudo que está aí.
Consenso ou democracia operária?
Nos debates que ocorrem desde junho nesses Fóruns de Luta, uma questão sempre vem à tona: como se resolvem as diferenças? A democracia do movimento pressupõe a possibilidade de diferentes opiniões, praticamente inevitáveis. Não só inevitáveis como positivas. O acordo completo em tudo é mais típico da imposição das ditaduras do que de um movimento vivo, rico em sensibilidades e experiências distintas.
As polêmicas devem ser bem vindas. Mas se mantém a questão: como resolver as diferenças? Muitas vezes, os que defendem o horizontalismo pregam a necessidade do consenso. Isso seria a expressão de um movimento sem líderes nem burocracias.
Na verdade, o “consenso” não existe, porque o debate revela que as diferenças continuam presentes. A imposição de um “consenso” como pré-condição para que uma decisão seja tomada pode até parecer mais democrático, mas na prática impede a democracia, pois impede que uma maioria seja respeitada. É a imposição de uma minoria.
É na diversidade, no embate de idéias e posições diversas, que se constrói a democracia. Evidentemente, para que uma discussão seja democrática, é preciso ter tempo de discussão e espaço igual para que as todas as posições se expressem, sejam elas minoritárias ou majoritárias. Mas depois da discussão é preciso decidir por algumas das posições em debate. E é democrático que a maioria da base seja respeitada.
O consenso não evita que as burocracias se imponham. Evita sim que as bases possam lutar contra as burocracias. Um método muito mais eficaz é a democracia operária: as bases se reúnem em assembleias e votam por maioria. É assim que as bases passam por cima de muitas burocracias sindicais e impõem greves contra direções de sindicatos. O “consenso” impediria isso, porque um setor (a burocracia sindical, por exemplo) estaria contra a greve e, por isso, ela não poderia ocorrer.
Esse debate já ocorreu em diversos Fóruns surgidos no país desde junho. A necessidade de tomar decisões práticas, como fazer ou não fazer um ato, ocupar ou desocupar um espaço, defender uma ou outra bandeira, mostrou que o método da democracia operária, ou seja, a votação democrática, foi aplicado em todos esses espaços contra o “consenso”.
Qual é a estratégia?
Essa é uma pergunta chave. Muitos ativistas, ao estender a visão “horizontal”, enxergam apenas uma democracia melhorada, a radicalização da democracia. É como se a democracia fosse elástica. Caso se ampliasse, poderia se impor a vontade das massas (ou da “multidão” de indivíduos) e, assim, expurgar os políticos corruptos, conquistar saúde e educação de qualidade etc.
Aqui, mais uma vez, se impõe uma discussão que supera o limite dos indivíduos. A “democracia” em que vivemos tem um caráter de classe. Trata-se de uma democracia burguesa. É a burguesia, proprietária das grandes empresas multinacionais e nacionais, que controla essa “democracia”.
O povo vota, mas não decide. As grandes empresas financiam os partidos majoritários, suas campanhas eleitorais e os grandes meios de comunicação. No Brasil, por exemplo, controlam o PT e o PSDB e seus aliados, assim como a “nova alternativa” de Marina Silva (que teve como vice em sua candidatura presidencial o presidente da Natura, uma grande empresa). Assim, os planos econômicos e políticos das grandes empresas são sempre vitoriosos, ganhe quem ganhe as eleições dentre esses partidos.
A justiça não é igual “para todos”. O pobre que rouba um pão vai preso e começa a apanhar de imediato. O rico ladrão e corrupto (assim como o rico assassino e estuprador) tem a seu dispor grandes advogados e juízes.
A polícia reprime as mobilizações e age com violência contra as comunidades carentes. Mas protege os ricos e suas propriedades.
A corrupção é parte constituinte da “democracia burguesa”. E não vai haver saúde e educação de qualidade enquanto as grandes empresas mandarem no país, pois o plano econômico é definido por elas. Só acabando com a dominação das grandes empresas e sua “democracia” é que poderemos mudar.
Somos, evidentemente, a favor de lutar por “mais democracia”. Propomos que os parlamentares recebam salários semelhantes aos de um professor.  Defendemos a prisão e expropriação dos corruptos e corruptores. Essas são lutas parciais importantes, mas limitadas. Lutamos por aumentos salariais e não achamos que ganhando um reajuste hoje outro amanhã um dia chegaremos à superação da exploração capitalista. Mas porque através das lutas concretas dos trabalhadores podemos nos organizar e um dia acabar com a dominação burguesa.
 A democracia burguesa não pode ser “ampliada” para se impor através dela a vontade das massas. Por trás do regime democrático burguês existe o Estado burguês, com suas Forças Armadas como base de segurança para a manutenção da propriedade privada das grandes empresas, caso essa esteja ameaçada.
A alternativa, portanto, não é “a radicalização da democracia” burguesa. Mas acabar com a dominação das grandes empresas através de uma revolução socialista.
A queda das ditaduras stalinistas e restauração do capitalismo na URSS  proporcionaram uma gigantesca campanha de propaganda imperialista contra a revolução socialista. As ditaduras stalinistas não tinham nada de socialismo. Eram regimes controlados autoritariamente por burocracias que se aproveitavam dos Estados para garantirem seus privilégios materiais.
É possível expropriar as grandes empresas e utilizar todo o potencial da produção para satisfazer as necessidades do povo trabalhador e não para aumentar os lucros da burguesia. É possível já hoje ter um mundo sem fome, com as pessoas tendo saúde, educação e moradia.
E isso pode ser feito com uma democracia muito superior à democracia burguesa. A democracia operária, apoiada em organismos dos trabalhadores, é muito superior. Os trabalhadores elegem seus representantes e podem destituí-los na hora que quiserem, sem ter de esperar quatro anos como na democracia burguesa. Os temas mais importantes, como os planos econômicos, podem ser debatidos e decididos diretamente pelos trabalhadores e não nos parlamentos como na democracia burguesa.
A revolução russa, em 1917, foi um exemplo para a humanidade em seus sete primeiros anos, antes da burocratização stalinista. Havia uma democracia muito mais ampla que a mais democrática das repúblicas burguesas. Os trabalhadores debatiam e decidiam nos sovietes (conselhos operários) as questões mais importantes do país. As artes floresciam livremente e se produziram obras magistrais que ainda hoje são referências culturais, como a poesia de Maiakovsky, os filmes de Eisenstein.
Não achamos que possamos mudar o país com “mais democracia”. Defendemos uma revolução socialista que acabe com a dominação das grandes empresas e leve a um novo Estado, apoiado na democracia operária. Não somos “democratas”. Somos revolucionários.

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