PSTU-SP

Ana Cristina de Oliveira “Yalorixa” e Eli Cezario “Yamorô”, do PSTU Zona Leste-SP

A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo
(Karl Marx, na Introdução da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel )

Este texto busca contribuir com a discussão sobre a intolerância religiosa ou racismo religioso, e denunciar o preconceito, o racismo, as perseguições e a demonização sofridas por estas religiões ao longo de nossa História, desde quando os primeiros africanos foram sequestrados na África e trazidos para o Brasil e aqui escravizados, e alijados de suas origens, culturas e crenças.

Devido a tantas e tantas perseguições sofridas por religiões não cristãs no Brasil, com especial destaque para o Candomblé e a Umbanda, o dia 21 de janeiro é destinado ao combate à intolerância religiosa, instituído pela lei nº 11.635, de dezembro de 2007. A data foi escolhida porque a intolerância religiosa causou a morte da Ialorixá Gilda, fundadora do Terreiro de Candomblé Ilê Axé Abassá de Ogum, no bairro de Itapuã em Salvador. Depois de vários ataques ao seu Ilê Axé, ela teve seu rosto estampado como charlatona no jornal da Igreja Universal, o que lhe causou um infarto fulminante.

Sabemos que essa intolerância religiosa ou racismo religioso e toda violência  gerada tem sua origem no sequestro de seres humanos negros e negras de diferentes etnias africanas, que ao chegarem aqui após meses dentro de porões de navios, se viam separados de suas famílias, apartados de sua cultura e crenças e acima de tudo escravizados.

Tudo em nome da produção da riqueza de alguns, que tinham total apoio do Estado e da Igreja, que, por sua vez buscaram justificar esses tristes acontecimentos com ideologias racistas que cumpriam o papel de desumanizar os negros e fazer com que todos acreditassem que a escravidão era uma forma de libertá-los de seus pecados. Assim, os negros não possuiriam almas, precisariam abandonar sua cultura e tradições religiosas, pois estas eram vistas como heresia, como cultos ao Diabo.

Um pouco da história do candomblé e seus Deuses, os Orixás

O culto aos Orixás teve origem na África e foi trazido para o Brasil pelos negros que aqui foram escravizados.  Nem todos são cultuados aqui, apenas alguns guardados na memória dos negros e negras: Exú, Ogun, Oxóssì (Odé), Ossain, Omulú, Obalúaye, Òxumare, Nanã Buruku, Xangô, Oya (também conhecida como Iansã), Oba, Ewa, Oxum, Yemanjá, Logun Ede, Oxaguian e Oxalufan (Oxalá).

No início, eles eram cultuados nas senzalas, práticas que eram chamadas de Calundus ou Batuque, e só bem depois vieram ser conhecidas como Candomblé. A palavra Candomblé possui dois significados entre os pesquisadores: seria uma modificação fonética de “Candonbé”, um tipo de atabaque usado pelos negros de Angola; ou ainda, viria de “Candonbidé”, que quer dizer “ato de louvar, pedir por alguém ou por alguma coisa”. A palavra Candomblé define, no Brasil, o que chamamos de culto afro-brasileiro, ou seja: “Uma Cultura Africana em Solo Brasileiro”. A palavra Candomblé também é usada para definir o modelo de cada tribo ou região africana, com o Candomblé da Nação Ketu, o Candomblé da Nação Jeje e o Candomblé da Nação Angola.

Os grupos que falavam a língua yorubá, entre eles os de Oyó, Abeokutá, Ijexá, Ebá e Benin vieram constituir uma forma de culto denominada de Candomblé da Nação Ketu. Ketu era uma cidade igual às demais, mas no Brasil passou a designar o culto de Candomblé da Nação Ketu ou Alaketu.

A palavra “Nação” entra aí não para definir uma nação política, pois Nação Jeje não existia em termos políticos. O que é chamado de Nação Jeje é o Candomblé formado pelos povos vindos da região do Dahomé e formado pelos povos Mahin.

Os Candomblés da Nação Angola e Congo foram desenvolvidos no Brasil com a chegada desses africanos vindos de Angola e Congo.

Candomblé, matriarcado negro e resistência à toda opressão

O culto aos Orixás na África não é igual ao culto que conhecemos aqui, visto que o Candomblé é uma religião brasileira de matriz africana. Os cultos na África são patriarcais, tendo como líderes Babalaôs. No Brasil, o culto tornou-se matriarcal, com Yalorixás ou mães de santo à frente do conhecimento (somente em meados do século XX surgiram os primeiros Babalorixás ou Pais de santo, mas até hoje a maioria das casas de Ilê axé são liderada por mulheres  e em algumas ainda, a tradição diz que só mulheres poderão ocupar tal cargo).  Sendo assim, foi através do pulso forte destas mães que se constituiu o candomblé brasileiro, preservando as tradições africanas.

Foi no período da escravidão no Brasil, em comunidades nos engenhos de cana ou disfarçadas em irmandades da igreja (voltadas para conversão e catequização dos escravos), que teve início a organização do Candomblé. Na Bahia, princesas recém chegadas da África, na condição de escravas, vindas de Oyó e Keto, fundaram com a ajuda de escravos libertos e outros ainda não libertos a Barroquinha em Salvador, onde fundaram uma comunidade Nagô, que segundo historiadores, remonta mais ou menos a 300 anos de existência.

Sabe-se que esta comunidade fora fundada por três princesas negras africanas cujos nomes são: Adetá ou Iya Detá, Iya Kalá e Iya Nassô. Não se tem certeza de quem plantou o Axé, porém o Engenho Velho se chama Ilé Iya Nassô Oká. O Ilé Iya Nassô funcionava numa Roça na Barroquinha, dentro do perímetro urbano de Salvador. Os negros que se encontravam ali, um lugar deserto naquela época, porém próximo ao Palácio de sua Real Majestade, tiveram receio da intervenção das autoridades no seu culto, daí, Iya Nassô resolveu arrendar terras do Engenho Velho do Rio Vermelho de Baixo, no trecho chamado Joaquim dos Couros, lugar onde se encontra até hoje, estabelecendo aí o primeiro Terreiro de Culto Africano na Bahia. Assim surgiram as negras ganhadeiras que trabalhavam lavando roupas, vendendo no mercado e até carregando água para comprar a alforria de outros escravos e escravas.

Mas, o motivo principal desta reunião era estabelecer um culto africanista no Brasil, pois viram essas mulheres que se alguma coisa não fosse feita aos seus irmãos negros e descendentes, nada teriam para preservar o “culto de orixá”, já que os negros que aqui chegavam eram batizados na Igreja Católica e obrigados a praticarem assim a religião católica.

Este culto, no Brasil, teria que ser similar ao culto praticado na África, em que o principal quesito para se ingressar em seus mistérios seria a iniciação. Enquanto na África a iniciação é feita muitas vezes em plena floresta, no Brasil foi estabelecida uma mini África, ou seja, a casa de culto teria todos os orixás africanos juntos. Ao contrário da África, onde cada orixá está ligado a uma aldeia, ou cidade; por exemplo: Xangô em Oyó, Oxum em Ijexá e assim por diante.

Outras casas têm referência histórica na Bahia a exemplo do Terreiro do Gantois e oIlê Axé Opó Afonjá, este último fundado por Mãe Eugênia Anna dos Santos, em 1910, ambos intimamente vinculados ao Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho. Além destes, existem outros entre os quais, Zoogodô Bogum Malê Rundó (Terreiro do Bogum) Bate Folha, na Mata Escura.

Já na Era Vargas, em 1930, a perseguição aos terreiros de candomblé foi acirrada, os terreiros foram invadidos e destruídos pelo Estado opressor, todas as práticas religiosas dos negros foram proibidas porque crescia o interesse dos intelectuais brancos pelas rodas de samba e seus tambores. Mais uma vez o Estado opressor capitalista atacando os negros, sua cultura e crença religiosa. O Candomblé não possui estrutura de dominação de poder, é uma religião familiar e isso não cabe em um sistema capitalista que prefere pessoas que abaixam a cabeça e sejam controláveis.

O escritor baiano, Jorge Amado, em seu breve período como parlamentar, de 1946 a 1948, deixou como legado a Emenda Constitucional 3.218, a lei que tratava da liberdade religiosa. Na época da Ditadura as Mães de Santo da Bahia escondiam os comunistas e ativistas em seus ilês axés, muitos dentro do seu quarto de santo, por isso sendo chamada pelo Estado de religião de comunista.

Tanto Jorge Amado quanto Pierre Verger defendiam o Candomblé por ser uma religião que não se dobrava ao Estado.

Sionismo cristão, intolerância e demonização

Nos dias atuais, a demonização do Candomblé e da Umbanda acontece principalmente via igrejas neopentecostais que são as maiores fomentadoras da intolerância religiosa, do preconceito e da violência. Elas colocam o Candomblé e a Umbanda como cultos de adoração ao Demônio (ou diabo).

Alegam que todas as mazelas que assolam o Brasil são causadas por esses adoradores, dessa forma consideram que a matriz africana está personificando o demônio nos seus terreiros e casas de axé.

Esses ataques são uma forma de retirar os seguidores dos terreiros e casas de axés, com a vantagem da legitimidade social e política conquistada pelo campo religioso cristão. Como foi na época da escravidão, as religiões de matriz africana continuam sendo tratadas como crenças pagãs, hereges e demoníacas.

Portanto, não se trata só de racismo religioso, mas também de demonização que é aplicada dentro das igrejas neopentecostais. O Sionismo Cristão que está sendo implantado no Brasil explica bem as razões e os porquês, ele objetiva angariar cada vez mais pessoas para igrejas neopentecostais seja pelo convencimento ou pela violência tanto que segundo o IBGE os negros estão migrando cada vez mais para essas igrejas. Há formação de grupos que se intitulam como “bandidos de Cristo”, “Exército de Deus” e outros, o que explica a agressividade e acirramento da intolerância.

Outro método é a teologia da prosperidade que está sendo aplicada nas igrejas sempre focando o problema socioeconômico do Brasil. Os negros estão se afastando de suas raízes e ancestralidade não só por motivos raciais, mas também por motivo socioeconômico devido ao fato de pertencerem em sua grande maioria ao setor mais precário economicamente dentro de nossa sociedade.

A matriz africana já sofreu vários ataques ao longo da história, foi perseguida pelos inquisidores, pelo governo colonial, pelo Estado e agora pelas igrejas neopentecostais, e sempre sobreviveu a todos. Não é só pela religião, é como símbolo de resistência junto ao opressor, ela não se deixa dominar, não apazigua a luta, ela luta contra todas as formas de opressão.

O que fazer?

Os membros do Candomblé nunca tiveram como princípio travar uma luta política contra o Estado ou sequer contra a Igreja. Seu único desejo era ter um lugar para reviver suas tradições, sua cultura e, acima de tudo, cultuar seus Orixás.

Mas todos nós sabemos que os lutadores se forjam na própria necessidade da luta.  E que embora quisessem apenas um lugar para expressar e lutar contra a sua miséria real, um lugar para suspirar os anseios de suas almas, não tiveram sequer o direito de encontrar na sua religião um ópio.

Aprendemos com Marx que a luta entre as classes sociais é inevitável e é também a grande responsável por produzir as mudanças e as transformações na nossa História. E que enquanto houver dominadores (os detentores dos meios de produção) e dominados (os que sofrem a exploração da sua força de trabalho seja como escravos ou assalariados) o confronto entre eles será iminente.

Neste sentido, não houve e não há outra opção às religiões de matrizes africanas a não ser resistir e lutar para continuar existindo.

Queremos ainda chamar atenção para algumas peculiaridades dessas religiões, principalmente no que diz respeito ao Candomblé. Nos terreiros são aceitas diversidades que a sociedade burguesa de um modo geral oprime.  Vemos mulheres negras como sacerdotisas, ou seja, elas lideram o culto e a comunidade, LGBTs são bem vindos e não vistos como pecadores e também podem ocupar cargos de liderança no culto. Grande parte de seus frequentadores são negros e negras pertencentes à classe trabalhadora, ou seja, são parte do proletariado.

Sendo assim além de todas as ideologias racistas impostas ao Candomblé, sua organização interna é, sem o intuito de querer ser, vista como uma transgressão pela sociedade burguesa no Brasil.

Devido a isso nós como revolucionários devemos enxergar nas religiões de matrizes africanas mais do que apenas lugares de culto, mas sim lugares de resistência de uma raça, de uma etnia que lutou e luta contra as perseguições e agressões. Ainda que esse não fosse o desejo de seus praticantes, os embates foram e são inevitáveis

Nossa luta contra o racismo inevitavelmente passa pelos terreiros já que estes foram a princípio os grandes responsáveis pelo resguardo da cultura e da História do povo negro no Brasil.

Em contrapartida, se faz necessário procurarmos mostrar aos praticantes desses cultos que a luta contra o racismo religioso ou  intolerância religiosa que eles travam, só terá fim com o fim da sociedade capitalista, ou seja, é uma luta de Raça e de Classe e que só a construção de uma sociedade verdadeiramente justa e igualitária trará a verdadeira liberdade e paz tão desejadas pelo povo negro.

Por fim, nossa luta não pode se limitar a um indivíduo, a este ou aquele setor apenas, e muito menos ignorar as demandas sociais postas. Mas sim unir todos os setores explorados e oprimidos. E devemos aqui acrescentar que num país onde a maioria da população se identifica como “preta ou parda”, melhor dizendo negros e negras, ignorar as demandas desse setor seria um grande erro. Sejamos sim ousados em dizer que no Brasil especificamente “a revolução será negra ou não será”.

Referências
Fontes:/www.ileode.com.br/historia//cantodoaprendiz.wordpress.com/2008

Candomblé, Nações do candomblé, Roberto Rodrigues, Terreiros