A justíssima prisão de um jogador de futebol argentino, que fez um ataque racista contra um brasileiro, em São Paulo, jogou luzes sobre o crescente problema da discriminação nos campos. Mas também é mais um exemplo da hipocrisia das elites em relação ao tEm 13 de abril, o jogo, válido para as Libertadores da América, entre o São Paulo e o Quilmes, da Argentina, terminou com o jogador argentino, Leandro Desábato, sendo preso no estádio do Morumbi, acusado de prática de racismo depois de ter xingado o atacante são-paulino Edinal Libânio, o “Grafite”, em uma disputa de bola.

Marcos Antonio Vito, da Comissão de Negros e Assuntos Antidiscriminatórios da OAB-SP, esteve na prisão e declarou ao site UOL que Desábato assumiu que chamou Grafite de ‘macaco’ e ‘negrinho’. “Ele mandou enfiar a banana em um lugar do corpo que eu não posso repetir para vocês agora”, disse Vito.

Desábato foi enquadrado por injúria qualificada, com agravante de preconceito racial, já que, pela legislação brasileira, somente o Ministério Público poderia detê-lo por racismo (o que tornaria a prisão inafiançável). Assim, ele pôde receber um habeas corpus e ser libertado no dia 15, depois de duas noites na prisão.
É evidente que somos a favor da punição de qualquer ataque racista. Contudo, o que ocorreu não tem nada a ver com a infinidade de declarações da elite brasileira citando o caso como exemplo de que, no Brasil, o racismo não é admitido.

Racismo corre solto nos campos
Os ataques racistas dos jogadores do Quilmes contra Grafite não são novidade. Na partida anterior, na Argentina, o são-paulino foi “chamado de macaco e negro de merda”, como ele próprio declarou ao jornal Lance. As agressões foram tão pesadas que a direção do Quilmes chegou a enviar um pedido de desculpas.

Mundo afora, os casos têm sido ainda mais constantes, principalmente na Europa. Roberto Carlos, que joga no Real Madrid, da Espanha, é vítima permanente de xingamentos vindos das torcidas adversárias, que o chamam de “macaco” ou imitam os sons produzidos pelo animal quando ele pega na bola.

Diante desses e muitos outros ataques que jogadores ingleses, de Camarões e vários outros brasileiros receberam nos últimos meses, a reação das autoridades e federações de futebol locais têm sido, no mínimo, brandas, limitando-se a pífias sanções financeiras contra os milionários times de futebol. No caso dos ataques dos torcedores do La Coruña contra Roberto Carlos, a Federação Espanhola estipulou uma multa de apenas 600 euros (cerca de R$ 2.100).

Já no Brasil, a única punição anterior a de Desábato foi dada em março ao jogador Wellington Paulo, do América-MG, suspenso por um mês por ter chamado André Luiz, do Atlético-MG, de macaco.

Neste sentido, é inevitável constatar que a prisão do jogador argentino é muito mais do que uma exceção no que se refere ao combate ao racismo. E, pelo que indica uma faixa exposta num jogo do Quilmes, no domingo, dia 17 — representando Grafite como um macaco — sequer serviu para coibir os ataques em campo.

Enquanto isso, fora dos campos
Não seria um exagero afirmar que, se Desábato não estivesse numa disputa de futebol e, inclusive, se não fosse argentino, e tivesse dito exatamente a mesma coisa em qualquer outro canto do Brasil, o caso não teria tido qualquer repercussão. A rixa histórica entre brasileiros e argentinos foi, sem dúvida, um componente importante que levou à prisão o jogador.

Se algo semelhante acontecesse nas ruas e uma denúncia fosse feita pela possível vítima ou pelo movimento negro, as chances do racista ser preso seriam mínimas. Infelizmente, essa tem sido a história que se repete desde quando a Constituição tornou o crime de racismo inafiançável, em 1988. Apesar de milhares de denúncias feitas em todos os cantos do país, a “Justiça” simplesmente tem-se recusado a aplicar a lei. Para impedir que os racistas sejam presos sem direito à fiança, os ataques racistas são transformados em “calúnias”, “difamação” ou qualquer outra coisa que amenize a prisão.

O exemplo da excepcionalidade do caso de Grafite pode ser encontrado até mesmo no que se refere à própria atitude do São Paulo em relação ao racismo. Depois de ofensas ocorridas em um primeiro jogo com o Quilmes, em março, o técnico Emerson Leão, referindo-se aos xingamentos, declarou ao jornal Lance, que “brincadeiras são normais” e deu como exemplo destas “brincadeiras” o fato de que, em alguns treinos, os jogadores são divididos em times de brancos e negros.

É esse mesmo “espírito” que, lamentavelmente, impera fora dos campos. Apesar de ser prática cotidiana, o racismo quase nunca é admitido ou punido. As piadas, a vigilância cerrada sobre negros e negras, a discriminação em todos os aspectos da vida social, são tidos como práticas “normais” e “inofensivas”, quando não frutos da “mania de perseguição” de alguns negros e negras.

Pior: utilizado para superexplorar os trabalhadores, o racismo vitima cotidianamente, aqui e no resto do mundo, milhões de negros e negras condenados a salários reduzidos, ao desemprego, ao subemprego e a uma violência que vai muito além do xingamento em uma disputa de futebol.

Por essas e muitas outras, é fundamental que, para além de saudar a prisão de Desábato, exijamos que esse caso não seja exceção, mas sim regra. Algo, que certamente não pode ser esperado por parte deste Estado e da elite que o governa. Repetindo algo que está virando regra nestes tempos de governo Lula, o que estamos assistindo é uma ação “espetacular” e pontual, que sequer arranha a estrutura do sistema que produz e perpetua o racismo: da imprensa às elites, passando pelos principais aliados do governo petista.

Neste sentido, também só pode soar como demagogia hipócrita a avalanche de declarações dadas por membros do governo, a começar pela inoperante Secretaria Especial para Promoção de Políticas Raciais (Seppir), chegando ao inacreditável Severino Cavalcanti. Falar em combate ao racismo, aplicando ao mesmo tempo políticas que aprofundam o abismo entre brancos e negros (e, por tabela, transformam o futebol em quase opção única para milhares de jovens negros) é puro cinismo.

Por isso mesmo, fazer com que a prisão de Desábato se torne regra, não exceção, e que toda e qualquer atitude racista seja exemplarmente punida, inclusive aquela cotidianamente praticada pelo conjunto da elite, são tarefas que estão colocadas para aqueles que realmente estão comprometidos com a construção de uma sociedade sem racismo ou qualquer tipo de preconceito e discriminação: os trabalhadores, a juventude e a enorme massa de oprimidos e explorados que existem neste país.

Post author Wilson H. Silva, da redação
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