Ester Cesário: diretora pediu que alisasse os cabelos para manter

No final de dezembro, um menino negro foi jogado para fora de um restaurante frequentado pela classe média alta de São Paulo. No início do mesmo mês uma jovem foi assediada no emprego por ter cabelos crespos. Lamentáveis exemplos de que vivemos num país onde ser negro é igual a parecer marginal, e ser racista continua sendo um crime acobertado pela impunidade.

Na tarde de 30 de dezembro, um garoto negro de seis anos foi retirado à força do interior de um restaurante supostamente chique e jogado na rua. O fato ocorreu na pizzaria Nonno Paolo, que fica na zona sul de São Paulo. A história poderia ter passado desapercebida, já que a cena, lamentavelmente, está longe de ser uma novidade. Afinal, segundo dados do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), somente no estado mais rico do país existem cerca de 5 mil crianças, a maioria negra, vivendo em situação de rua. Não é raro que elas sofram todo tipo de abuso e violência por parte de seguranças e policiais.

Desta vez, contudo, para o azar dos proprietários, gerente e seguranças da pizzaria, a história ganhou as manchetes da imprensa (inclusive internacional) devido a um detalhe que estava além das aparências: o garoto em questão era um etíope, adotado por um casal de turistas espanhóis, que o haviam deixado sozinho na mesa enquanto se serviam no buffet do restaurante.

Ao se dar conta de que o garoto não estava na mesa, a mãe, identificada apenas como Cristina, saiu para procurá-lo e o encontrou a um quarteirão do restaurante, na rua, chorando. Depois de saber que seu filho havia sofrido a agressão, a mulher registrou boletim de ocorrência no 36º DP, no bairro de Vila Mariana.

A diferença entre “parecer marginal” e “ser racista”
Como é de praxe, o racista negou o ocorrido e disse que tudo não se passava de um mal entendido. Um detalhe da explicação do gerente para o qual a imprensa deu pouquíssima importância, contudo, revela a profundidade de seu racismo. Segundo o sujeito, a confusão toda só ocorreu porque, naquele horário (13h30), havia uma feira na rua, e o garoto etíope foi confundido com um menino de rua.

Nada mais racista do que igualar a negritude à pobreza, à marginalização e à criminalidade. Como, também, nada é mais asquerosamente típico da desumana ideologia dominante do que tentar justificar a agressão brutal contra uma criança com a desculpa de que ela se “parecia com um menino de rua”.

O pior é que, enquanto a simples “aparência” do garoto já foi o suficiente para que ele fosse humilhado e punido, o mais do que evidente racismo dos responsáveis pelo restaurante ainda está apenas sob suspeita. Pelo menos é esta a opinião de Márcio de Castro Nilsson, delegado do 36° DP, que declarou ao G1 que ainda está avaliando se o caso deve ser encaminhado para a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi). “Ainda não dá para dizer que é preconceito. Quero apurar os fatos. Em um primeiro momento, pelo menos um constrangimento ilegal houve. Mas em que circunstâncias é preciso apurar, e até quem cometeu”, disse.

Beneficiados por esta “dúvida” e, consequentemente, livres da prisão sem direito à fiança (o que seria assegurado caso tivessem sido enquadrados na já há muito desacreditada lei anti-racismo), os donos do restaurante vieram a público, através do advogado José Eduardo da Cruz, para acrescentar mais uma desculpa esfarrapada ao lado da justificativa estapafúrdia: “Ele [o dono] se dirigiu ao garoto e ele não respondeu. Ele imaginou que fosse mais um dos meninos de rua da feira, e a criança saiu do local espontaneamente. Em hipótese alguma houve racismo”.

Esta desculpa não resiste sequer à constatação de que, se realmente tivesse tentado falar com o garoto, o sujeito teria descoberto que ele não fala ou entende uma única palavra em português. Diante de todos estes descalabros, a família, que já retornou para a Espanha, promete entrar na Justiça caso a investigação não prossiga.

Como todos sabem, a história só seguirá adiante se houver muita pressão, não só por parte da família, mas também e principalmente, por parte dos que realmente estão comprometidos na luta contra a discriminação racial. Algo mais do que necessário num país no qual ser negro é sempre igual a “parecer marginal”, enquanto sempre sobram desculpas e impunidade para aqueles que são, efetiva e inegavelmente, racistas.

Outra história envolvendo racismo e “aparências”
O caso do menino etíope ocorreu apenas algumas semanas depois de outro envolvendo aparências, racismo e ambientes de classe-média. No dia 6 de dezembro, a estagiária Ester Elisa da Silva Cesário, 19 anos, fez uma gravíssima denúncia de racismo contra seu local de trabalho, o Colégio Internacional Anhembi Morumbi, no Brooklin (zona sul de SP), onde a diretora, identificada como Dea de Oliveira, quis forçá-la a alisar os cabelos para “manter boa aparência”.

A história toda começou no primeiro dia de trabalho de Ester, em 1º de novembro, como assistente de marketing da escola. Segundo ela, assim que contratada, a diretora do colégio a chamou numa sala particular e reclamou de uma flor em seu cabelo, pedindo para mantê-los presos.

Nas semanas seguintes, o assédio racista continuou nas mais diferentes formas: houve uma nova reclamação sobre os cabelos e a suposta educadora chegou a dizer que compraria camisas mais longas para que a funcionária escondesse seus quadris, além de ter solicitado que Ester evitasse circular pelos corredores.

A gota d’água que levou Ester a registrar um boletim de ocorrência na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi) foi uma segunda conversa, ocorrida no dia 24 de novembro e relatada pela estagiária: “Ela disse: ‘como você pode representar o colégio com esse cabelo crespo? O padrão daqui é cabelo liso’. Então, ela começou a falar que o cabelo dela era ruim, igual o meu, que era armado, igual o meu, e ela teve que alisar para manter o padrão da escola.”

Se isso não bastasse, Ester ainda sofreu ameaças depois de falar sobre a conversa aos demais funcionários do colégio, que demonstraram solidariedade ao vê-la chorando no banheiro. Dessa vez, o racismo da diretora se misturou com puro assédio moral: “Ela me parou na porta e disse: ‘cuidado com o que você fala por aí porque eu tenho vinte anos aqui no colégio e você está começando agora. A vida é muito difícil, você ainda vai ouvir muitas coisas ruins e vai ter que aguentar’.”

Ruim é o racismo!
O episódio foi seguido das costumeiras desculpas por parte da instituição, sem que isso, inclusive, deixasse transparecer sua conivência com as práticas racistas. Muito pelo contrário. Na nota que emitiu para justificar a “ausência” de preconceitos na escola e defender que não houve racismo e que a diretora não teve intenção de causar qualquer constrangimento, a Anhembi-Morumbi afirma que “o colégio zela pela sua imagem e, ao pregar a ‘boa aparência’, se refere ao uso de uniformes e cabelo preso”.

O problema é que todos sabem exatamente o que se entende por boa aparência num mundo racista e preso aos padrões de beleza machistas e elitistas impostos pela classe dominante: mulheres loiras, altas, magras de olhos claros e padrões europeus de vestimenta e comportamento.

Diante disso, cabe ressaltar a importante iniciativa tomada por ativistas do movimento negro, particularmente da União de Núcleos de Educação Popular para Negros(as) e Classe Trabalhadora (Uneafro), que, no dia 13 de dezembro, através de uma convocação pelo Facebook, reuniram cerca de 50 pessoas nos portões do colégio para realizar um ato de solidariedade a Ester, em protesto contra o racismo e em defesa da implantação da Lei 10.639, que determina o ensino da cultura afrobrasileira nas escolas.

Ato

O inspirado tema do ato foi “Soltem os crespos, prendam os racistas”. Os manifestantes portavam faixas com dizeres como “Ruim é o racismo” (em referência à malfadada história do “cabelo ruim”).

A resposta do Colégio foi das piores. Segura da impunidade que cerca esse tipo de situação, a direção, além de negar o evidente racismo envolvido no episódio, transferiu Ester, que também é estudante de Pedagogia, para o setor de arquivos que, por acaso, fica exatamente na porta da diretoria. Ou seja, além de colocar Ester num lugar em que ela só pode compartilhar sua “indesejável aparência” com caixas e papéis velhos, os feitores da Anhembi Morumbi ainda criaram sua própria e moderna versão para os pelourinhos que, séculos atrás, eram usados para “reeducar” os negros e negras rebeldes.

Quem venha 2012!
Histórias como a de Ester e do garoto etíope são provas lamentáveis de que, passadas mais de duas décadas da aprovação da lei anti-racista, ainda é preciso muita luta para que ela seja implementada. Vale lembrar que estas situações absurdas ocorrem num país que tem um governo eleito com ampla maioria dos negros, negras e suas organizações, muitas delas atualmente encasteladas nos gabinetes do Planalto e numa secretaria ministerial, o Seppir, que deveria se dedicar integralmente para a eliminação do racismo e não o faz por uma combinação lastimável de falta de vontade política e de investimentos concretos.

Diante disso, não só é possível ter a certeza de que histórias como essa, infelizmente, voltarão a se repetir, como também que só com muita luta será possível virar o jogo e fazer com que tenhamos um país onde seja possível punir exemplarmente alguém por ser racista e não continuar vendo jovens e crianças serem humilhados e agredidos por serem negros e, diante dos olhos nublados pela ideologia dominante, “parecerem marginais”.

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