Em visita ao Brasil, sindicalista haitiana denuncia ações das tropas da ONU, lideradas por militares brasileiros e exige o fim da ocupaçãoA Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti, a Minustah, não são tropas de paz. São tropas de ocupação. Com a chegada das tropas militares da ONU, a situação no país piorou e hoje há graves violações dos direitos humanos do povo haitiano.

É assim, de forma direta e contundente, que a haitiana Rachel Beauvoir Dominique, antropóloga, pesquisadora e professora da Universidade do Haiti, resumiu o papel da Minustah e a realidade atual no Haiti, que está sob intervenção militar estrangeira, comandada pelo Brasil, desde 2004.

A professora haitiana esteve no Brasil, entre os dias 1º e 10 de março, com Didier Dominique, arquiteto e também professor da Universidade do Haiti. Os dois são militantes do movimento Batay Ouvriye – “Luta Operária“ – e vieram ao Brasil para uma série de debates organizados pela rede Jubileu Sul Brasil.

Os dois visitaram 10 cidades, de Porto Alegre à Fortaleza, para denunciar a violação dos direitos humanos no Haiti e pedir a solidariedade do povo brasileiro para a campanha pela retirada das tropas do país. Rachel encerrou sua série de palestras em São José dos Campos (SP), no dia 9, em um debate na Faculdade de Direito da Universidade do Vale do Paraíba (Univap).

O mito das “tropas de paz“
Segundo a professora, as tropas da ONU chegaram ao país, em 2004, sob vários mitos. “Diziam que era uma missão de paz; que iriam controlar a violência e garantir segurança do povo; fazer o desarmamento e restaurar governos legítimos e atuantes“, contou.

“Mas, após três anos, a Minustah mostrou-se incapaz de garantir a segurança e resolver os problemas de segurança do Haiti. O desarmamento é uma farsa. Foram apreendidas 200 armas de pequeno porte e não as grandes e poderosas, cujas estimativas da ONU apontam a existência de 200 mil“, disse.

A presença das tropas tem agravado os problemas do Haiti e do povo. Direitos humanos estão sendo constantemente violados.

Para combater supostas gangues, a Minustah faz incursões nas favelas e bairros populares do Haiti, principalmente na capital Porto Príncipe, levando mais violência e terror à população.

Helicópteros sobrevoam os bairros pobres durante toda a madrugada e tanques de guerra entram nas favelas. Miram e atiram em uma casa, mas destroem cinco ao mesmo tempo, em razão da proximidade uma das outras e do material precário com que são construídas.

Crianças têm morrido vítimas de tiros indiscriminados. A falta de respeito é maior nas zonas rurais e periferias. A situação das mulheres é ainda mais vulnerável. São muitos casos de estupro e assédio sexual feitos por soldados estrangeiros. Muitas são chefes de família, mas estão impossibilitadas de garantir seu sustento, pois diante da ameaça das tropas ficam impedidas de se locomover com segurança para trabalhar.

“As tropas não vistas como protetoras, mas levando o terror contra o povo. Não se vêem eles nos bairros ricos, onde estão os grandes bandidos, as armas poderosas. Mas nas favelas, contra os pobres“, conta Raquel.

O sistema legal é de prisões lotadas com pobres. A impunidade é a lei. Não julga a classe dominante. O povo não usufrui de sistema legal que os proteja. “Temos certeza que não estão provendo o avanço e a democracia, mas agravando os problemas existentes no país“, afirma.

Outro aspecto do papel repressivo contra a população cumprido pelos “capacetes azuis“ da Minustah é em relação às manifestações populares. “Com a ajuda das tropas, todas as passeatas são interrompidas e atacadas, sob a justificativa de que são partidários de Aristide ou são gangues“.

Casos de seqüestro têm tido grande repercussão, segundo Raquel, porque a maioria as vítimas são integrantes da elite e alguns poucos da classe média. “Mas isso não justifica a permanência de tropas de ocupação e a tutela de um povo“, afirma.

A proteção contra as gangues é um pretexto. “Há gangues, violência, mas esse não é o foco do problema. O problema do Haiti é uma sociedade desestruturada por anos de opressão e exploração imperialista, por planos neoliberais e a Dívida Externa“.

Outro mito, segundo Raquel, é dizer que as tropas sul-americanas são “menos brutas“. “As tropas da ONU são violentas, sim. Um dos colaboradores do ditador chileno Augusto Pinochet foi comandante durante certo período. Além do mais, um soldado é sempre um soldado em qualquer lugar do mundo e tem de cumprir as ordens de comandantes“, alega.

“Muitos dizem que a saída das tropas da ONU traria mais violência e caos. Mas, a questão não é a existência de um Estado ou sua ausência. A questão é que tipo de Estado. Pois um Estado de modelo neoliberal também significa desestrutura, violência. A política neoliberal prega a redução do estado. Foi isso que levou o país a situação atual“, argumenta.

Ofensiva imperialista
Para Raquel, o inimigo do povo são os planos neoliberais que tem destruído as estruturas sociais, políticas e econômica do Haiti. Ela salienta que a situação no país ocorre dentro de um contexto internacional de forte ofensiva imperialista sobre todos os povos do mundo.

O Haiti é o país mais empobrecido do continente. Menos de 40% da população têm acesso à água potável, 45% dos haitianos são analfabetos, restam apenas 2% das florestas e apenas uma em cada 50 pessoas tem emprego fixo.

A dívida externa é extremamente ilegítima. Nasceu após um bloqueio econômico imposto pela França depois que os escravos, através de uma revolução, conquistaram a independência do país e a abolição da escravidão.

Imposto por dez anos, o bloqueio só foi suspenso após o primeiro governo haitiano concordar em pagar à França e aos ex-donos de terras e escravos 150 milhões de franco-ouro, equivalente nos dias de hoje a algo em torno de 22 bilhões de dólares.

Ainda assim, em 2005, o Haiti pagou mais de 80 milhões de dólares referente à suposta dívida que o Banco Mundial, o Bird, a França e outros “credores internacionais“ continuam cobrando do povo haitiano. “A ilegítima dívida externa do país pesa nos ombros dos haitianos, tornando proibitivo à população o acesso a serviços básicos como água, educação, esgoto, saúde pública“, resume Raquel. “Essa dívida formou a elite haitiana. Uma classe dominante que não tem interesses de ajudar o país, e quer apenas sugar as riquezas e levar pra fora. O comando da Minustah é da ONU que recebe ordens das mesmas instituições que recebem 45% dos pagamentos da dívida. Portanto, têm o interesse de manter o estado de exploração como está“, disse.

O projeto econômico traçado para o país, o chamado Quadro de Cooperação Interina (CCI), baseia-se na construção de zonas francas e maquiladoras, onde imperam as precárias condições de trabalho, a miséria e a superexploração.

Para Raquel, não há perspectiva de paz para o Haiti com a permanência da Minustah. “É hipocrisia falar em intervenção humanitária ou soberania limitada. Um povo é soberano ou não é. A retirada das tropas estrangeiras do Haiti e o fim da intervenção são cruciais, pois é uma questão de soberania e auto-determinação“, disse. “A presença das tropas não representa uma solução porque a classe dominante, nacional ou internacional, não tem solução para o povo. A missão da ONU está a serviço dos interesses imperialistas e da classe dominante haitiana, que quer manter o estado de opressão e exploração para garantir seus interesses“, explica a professora.

“Chegamos à conclusão de que o povo tem suas próprias soluções. O caminho é a solidariedade entre os trabalhadores e a luta. Passam a imagem os haitianos como se fossemos um povo resignado, acuado perante os atos de violência e que precisa de proteção internacional. Nada mais falso. Nós, haitianos, somos um dos povos mais lutadores e combativos do mundo. Isso faz parte da história do Haiti e lutamos até hoje. Queremos a saída das tropas. Nossa auto-determinação e o direitos de decidir sobre nosso país“, concluiu.

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