Redação

Leia o 4º artigo do Especial Panteras Negras 50 anos

Nos artigos anteriores, discutimos o contexto em que os Panteras Negras surgiram, destacando as polêmicas que estavam abertas em 1965, quando o grupo foi fundado, como o questionamento do racialismo e do pacifismo e a gradativa (mas sempre cheia de contradições) aproximação de setores do movimento de posições classistas. No último deles, também contamos um pouco sobre o surgimento da pantera negra como símbolo do movimento e sua relação com o pensamento de Stokely Carmichael.

Neste, o tema é a principal “palavra de ordem” do movimento: Black Power (Poder Negro). Novamente, nosso objetivo é discutir as polêmicas e diferentes interpretações em torno do grito que ecoou forte nos corações, mentes e ações da juventude negra da época e marcou profundamente não só a trajetória dos Panteras Negras como de amplos setores do movimento desde então.

Uma influência que precisa ser discutida até mesmo porque a ideia do que viria a ser o “Black Power” e como ele deveria ser construído já não era um consenso nos anos 1960´s e nem mesmo no interior dos Panteras Negras. E também porque continua viva em especial diante daqueles que a interpretam como uma postura revolucionária e radical por si só ou completamente antagônica à defesa de políticas de combate ao racismo que incluam a aliança com demais setores oprimidos e explorados. Ou seja, de raça e classe.

Carmichael, o “Black Power” e o racialismo
artigo04_black-power-passeada-1960sComo mencionamos no artigo anterior, Stokely Carmichael esteve por trás tanto do surgimento da pantera negra como símbolo do movimento quanto pela popularização do termo “Black Power”. Foi em junho de 1966, em meio a uma onda de protestos que culminou na “Marcha contra o medo”, no Mississippi, que Carmichael fez ecoar o grito de guerra que entrou para a História: “Esta é a 27ª vez que eu vou preso. E não irei mais pra cadeia! (…) A única forma de fazer com que os homens brancos parem de nos espancar é tomando o poder. Nós estamos gritando por liberdade há seis anos e nós não conseguimos nada. O que nós vamos começar a dizer agora é ‘Black Power’”.

As palavras reverberaram como um tsunami e a massa negra repetiu em coro: Black Power. O resto é História. As duas palavras ganharam uma força excepcional. Encheram o povo negro de um orgulho tamanho que transbordaram em cabelos naturalmente crespos, libertos e volumosos que se tornaram sinônimos do movimento. Alimentaram sonhos de liberdade que fizeram com que punhos negros se erguessem mundo afora, fossem nas ruas, nas universidades e periferias, fossem nos Jogos Olímpicos ou nas prisões.

Os Panteras acabaram sendo o grupo mais identificado com a palavra de ordem, o que fez com que ela seja, até hoje, associada aos seus métodos e políticas. Contudo, como reflexo dos debates que estavam em curso e das distintas perspectivas políticas que estavam sendo adotadas pelos movimentos, havia, também, diferentes e antagônicas interpretações para o que viria a ser o “Poder Negro”.

LEIA TAMBÉM
1º Artigo: Panteras Negras: um rugido que ainda ecoa contra o racismo
2º Artigo: Os legados de Luther King, Malcolm X e a crise do pacifismo e do racialismo
3º Artigo: Stokely Carmichael e os primeiros passos da pantera

Em geral, mas não exclusivamente, o que havia em comum entre elas era a ideia de que negros e negras não deveriam ser apenas os (as)  protagonistas na luta pela sua própria libertação e desenvolver suas próprias formas de organização e métodos de luta.

Como vimos, contudo, havia uma forte influência das ideias de Carmichael, que também defendia que os únicos aliados na luta contra o racismo deveriam ser os próprios negros (as), como ele sintetizou no livro “Black Power: a política de libertação”, escrito com Charles Hamilton, em 1967[1]: “é um chamado para que os negros neste país se unam, reconheçam a sua herança, construam um senso de comunidade. É um chamado para que as pessoas negras comecem a definir seus próprios objetivos, conduzir suas próprias organizações e apoiar essas organizações. É um chamado para rejeitar as instituições racistas e valores dessa sociedade (…)”.

O destino dos Panteras e outros movimentos da época foi marcado exatamente pela contradição que se encontra no centro desta frase. Por um lado, estava a inquestionável necessidade de unir e organizar negros (as) e incentivá-los a resgatar sua história e o orgulho de sua ancestralidade. Como também a necessária defesa de que negros e negras têm que ser protagonistas na definição do programa e das formas de suas lutas.

Por outro, o racialismo embutido na visão de Carmichael colocava em cheque a possibilidade de unidade com os demais setores oprimidos e explorados. Algo que se manifestava particularmente na forma como ele defendia que o movimento deveria se organizar: “os negros devem conduzir e dirigir suas próprias organizações. Só os negros podem transmitir a idéia revolucionária – e é uma idéia revolucionária – que os negros são capazes de fazer as coisas sozinhos. Só eles podem ajudar a criar na comunidade uma consciência negra permanente, que servirá de base para a força política (…)”.

Apesar de enfática e de ter servido com um dos pilares do chamado à constituição de um Partido Negro, a postura de Carmichael não deixava de ter contradições. Consciente das relações entre o racismo e Imperialismo e influenciado pelas ideias do médico, escritor e militante marxista Franz Fanon[2], pela Revolução Cubana e pela Guerra do Vietnã, o líder negro não era cego às ações revolucionárias de povos e militantes não-negros.

Exemplo disto foi a declaração dada quando Che foi assassinado, em outubro de 1967: “A morte de Che Guevara coloca uma responsabilidade sobre todos os revolucionários do mundo para redobrar a decisão de lutar até a derrota final do imperialismo. É por isso que, em essência, Che Guevara não está morto: suas idéias estão conosco”.

Contudo, para além das concepções de seu autor, o termo Black Power ainda adquiriu tantos outros sentidos na época. Todos eles com ecos ainda no presente.

Como e com quem construir o Poder Negro?
O governo norte-americano, a direita e os movimentos negros “moderados” não demoraram em colocar o absurdo rótulo de “racismo ao reverso” no movimento Black Power, algo sobre o que não achamos necessário nos deter. Contudo, este estava longe de ser o único debate gerado pela proposta de Carmichael. Como lembra Ahmed Shawki, no livro “Libertação negra e socialismo”, “(…) emergiram quatro interpretações interconectadas do que seria Black Power: 1) como capitalismo negro; 2) como poder eleitoral negro; 3) como nacionalismo cultural [ou culturalismo] e 4) como uma forma radical de nacionalismo negro”[3]

Não é possível, neste artigo, comentar exemplos de todas estas vertentes, mas valem algumas observações sobre as duas primeiras. Apesar de minoritária em meados dos anos 1960, a defesa de um “capitalismo negro” tinha (e continua tendo) ecos diretos nos movimentos e na população negra em geral (bombardeada e entorpecida pelas ideologias burguesas de ascensão social, status, privilégios, meritocracia etc.). E dos mais lamentáveis.

Neste sentido, para resgatar suas origens, vale citar Nathan Wright Jr., um dos organizadores e presidentes da Conferência Black Power realizada em 1967. Além de ter apoiado a eleição, nos anos 1970, do asqueroso e corrupto Nixon (grande articulador da guerra suja contra os Panteras) e, anos depois, do igualmente deplorável Reagan, Wright defendia que a essência do Black Power era conquistar “uma fatia justa do bolo” (ou seja, do Capital). Um absurdo que levou a um disparate ainda maior.

Conferência Black Power
Conferência Black Power em 1967

Graças à influência de Nathan, a Conferência Black Power do ano seguinte foi copatrocinada por uma empresa dirigida somente por brancos, a Clairol Company, cujo presidente definiu Black Power como “a propriedade de apartamentos, a propriedade de casas, a propriedade de negócios, como também um tratamento igualitário para todas as pessoas”.[4]

Como sabemos, a perspectiva capitalista nunca esteve no horizonte do Partido dos Panteras Negras pela Autodefesa. Contudo, cabe ressaltar que, no passado ou no presente, a defesa do “capitalismo negro” ou da via institucional se desdobrou, no interior dos movimentos, em organizações que têm em seu horizonte a defesa de várias formas de “empoderamento individual” ou “dentro do sistema”; posturas reformistas ou diretamente pró-burguesas que se manifestam na defesa da ilusão da ascensão social, da chamada “cidadania de mercado”, da “libertação pelo consumo” ou na pura e simples integração ao regime.

Diante deles, assim como inclusive defendiam muitos dos Panteras Negras, nossa resposta é simples e já foi transformada em versos por Solano Trindade: “Negros que são amigos do Capital, não são meus irmãos”.

A ilusão de “poder pelas urnas”
Apesar de que iremos abordar o tema específico do Partido Negro na conclusão destes artigos, também vale um comentário sobre a ideia de Black Power como poder eleitoral. Sempre subordinada à lógica da burguesia e seu controle sobre os meios de produção e mecanismos ideológicos, a perspectiva eleitoral, quando tomada como centro da atuação política ou separada de uma perspectiva revolucionária, leva inevitavelmente a caminhos tortuosos e desvios irreversíveis.

A organização fundada pelo próprio Carmichael, a LCFO, se tornou um exemplo desconcertante disto. Em 1970, o grupo se reconciliou com o Partido Democrata e elegeu vários candidatos a postos públicos na cidade. E o fato de que Hulett tenha se tornado xerife de Lowndes dispensa comentários.

Na época do surgimento dos Panteras, um dos casos mais relevantes, até mesmos pelo impacto que teve na história do movimento negro norte-americano, é o do Congresso pela Igualdade Racial (CORE) que, como vimos, foi bastante atuante nas lutas pelos direitos civis no início dos anos 1960. Um dos seus principais dirigentes na cidade de Cleveland (Ohio) era Floyd McKissick, que fez entusiasmadas declarações de apoio à ideia de Carmichael, definindo a si próprio como um “nacionalista negro”.

No entanto, em 1967, ele aceitou US$ 175 mil dólares da Fundação Ford para financiar “os esforços para o registro eleitoral, o estudo de programas para o desenvolvimento econômico, o treinamento de jovens e adultos como trabalhadores comunitários e a tentativa de melhorias dos programas voltados para os grupos de direito civis”[5].

Como foi destacado por Ahmed Shawki, McKissick foi um dos muitos que menosprezaram uma política permanente da burguesia: “a aparente generosidade da Fundação Ford era um indício de que um setor da classe dominante estava sedento para ver a incorporação dos negros de classe média [à sociedade norte-americana], como uma forma de isolar e reduzir a influência dos setores mais militantes do movimento”[6].

Algo que os representantes da Fundação sequer faziam esforço para omitir. A campanha de registro de eleitores em Cleveland era “especialmente importante para a Fundação Ford porque eles esperavam canalizar a fúria negra para a campanha eleitoral”, particularmente quando, no início de em 1966, protestos varreram a cidade. Uma intenção defendida descaradamente pelo diretor da Ford, McGeorge Bundy: “Foram as previsões de uma nova onda de violência que levaram nosso pessoal a fazer as primeiras visitas à cidade, em março”.[7]

A versão da CORE de como e com quem o Black Power deveria ser construído, infelizmente, fez história quando, em novembro de 1967, a cidade de Cleveland elegeu Carl Stokes, pelo Partido Democrata, como o primeiro prefeito negro eleito em uma cidade de grande porte nos EUA.

Uma eleição que, como foi destacado pelo editor do International Socialist Review, estabeleceu um padrão que se tornou a norma nas eleições posteriores de negros(as): “Os negros de Cleveland descobriram rapidamente que o novo prefeito estava mais interessado em fazer um acordo com o Partido Democrata do que investir no avanço do movimento”. Além de apontar somente dois negros para seu gabinete e de nomear um branco de direita como Chefe de Polícia, “o compromisso de Stokes com ‘a lei e a ordem’ fez com que ele ganhasse um renovado apoio dos empresários, da mídia local e da direção nacional dos Democratas para sua reeleição, em 1969”[8].

Como a História é cheia de ironias, a importância e contradições da concepção de “Black Power” personificada por Carl Stokes nos anos 1960, têm paralelos bastantes curiosos (e trágicos) com os dias de hoje. Um dos principais políticos negros de Baltimore na atualidade recebeu seu nome em homenagem ao prefeito eleito em 1967. O Carl Stokes dos dias de hoje é vice-presidente do comitê de Educação da cidade e membro de uns outros tantos, em áreas como Saúde, Planejamento, Economia e Impostos.

Contudo, ele não é o único negro “empoderado” nas instituições de Baltimore. Lá, negros e negras estão nos principais postos de “poder”. Além da prefeita Stephanie Rawlings-Blake, também são negros (as) o Comissário de Polícia, a maioria e o presidente da Câmara de Vereadores, o Superintende das Escolas Públicas e todos conselheiros da Comissão de Moradia.

Contudo, Baltimore também é a cidade onde Freddy Gray, um jovem negro de 25 anos, foi assassinado por seis policiais enquanto era “detido”. E a enorme presença de “empoderadas autoridades” negras não significou absolutamente nada. Depois de muitas manobras judiciais, os seis assassinos fardados foram completamente inocentados.

Uma situação que levou a escritora e ativista dos movimentos negro e popular Keeanga-Yamahta Taylor a uma conclusão que nos parece bastante adequada. Em um artigo publicado na revista “In this times” (“Em Baltimore e em todo o país, rostos negros em altos postos não têm ajudado a população negra”), Taylor nos lembra: “Hoje, nos EUA, temos mais negros (as) eleitos para postos de comando do que em qualquer outro momento da História. Mesmo assim, para a vasta maioria do povo negro, a vida mudou pouquíssimo. Representantes negros eleitos, em sua enorme maioria, têm governado da mesmíssima forma que seus parceiros brancos, refletindo, assim, todo o racismo, corrupção e políticas que favorecem os mais ricos”.

Poder, só se for com raça e classe
A história dos Panteras foi profundamente marcada pelas formas muitas vezes contraditórias que o próprio grupo lidou com a sua concepção de Black Power. Ela se expressou em distintas políticas, como na auto-organização da comunidade negra (em escolas, refeitórios, creches, clínicas e outros serviços); numa política radical de autodefesa; na pressão parlamentar e na participação com candidatos próprios em processos eleitorais e outras táticas que se tornaram (e continuam sendo) fundamentais no combate ao racismo.

As oscilações, desvios, vitórias e derrotas do grupo estão relacionadas a como estas táticas e políticas foram articuladas com uma noção mais global de luta pelo poder. Algo que só poderia ser delimitado a partir de um corte de raça e classe.

Um debate que sempre esteve vivo em suas fileiras, como Bobby Seale destacou no livro, publicado em 1971, em que conta a história dos Panteras e de Huey P. Newton:  “Esta era a grande divisão em termos da filosofia do nacionalismo negro naquele momento. Huey acreditava que o povo negro precisava adotar coisas de caráter mais cooperativo, do tipo socialista, para se opor ao sistema. Ele explicou muitas vezes que, se um empresário negro está cobrando os mesmos preços ou ainda mais, altos do que empresários exploradores brancos, então ele mesmo não é nada além de um explorador”[9].

Apesar das diferenças que temos pontuado em relação aos Panteras, temos muitíssimos acordos com o critério classista defendido por Huey e com a forma com que o próprio Seale desenvolveu o tema no mesmo livro: “Nós, o Partido dos Panteras Negras, nos vemos como uma nação dentro de outra nação, mas não por quaisquer razões racistas. Nós vemos isto como uma necessidade para que nós possamos progredir como seres humanos e possamos viver na face desta terra juntamente com outros povos. Nós não combatemos o racismo com o racismo. Nós combatemos o racismo com solidariedade. Nós não lutamos contra a exploração capitalista com o capitalismo negro. Nós combatemos o capitalismo com o socialismo básico. E não lutamos contra o imperialismo com mais imperialismo. Nós combatemos o imperialismo com o internacionalismo proletário. Estes princípios são muito funcionais para o Partido. Eles são muito práticos, humanistas e necessários. E eles deveriam ser entendidos pelas massas populares”.

Uma perspectiva que também se estendia ao método de ação mais “polêmico” dos Panteras, a autodefesa, tema que cobriremos nos próximos textos: “(…) nós nunca usamos nossas armas contra a comunidade branca, para atirar contra o povo branco. Nós somente nos defendemos contra qualquer um, seja branco, azul, verde ou vermelho, que nos ataque injustamente e tente nos assassinar ou nos matar por implementarmos nossos programas. (…) Eu acho que as pessoas podem ver, pelas nossas práticas no passado, que não somos uma organização racista, mas, sim, um partido revolucionário muito progressivo[10].

Wilson Honório da Silva (Secretaria Nacional de Formação) e Américo Gomes (Direção Nacional do PSTU)

LEIA TAMBÉM
1º Artigo: Panteras Negras: um rugido que ainda ecoa contra o racismo
2º Artigo: Os legados de Luther King, Malcolm X e a crise do pacifismo e do racialismo
3º Artigo: Stokely Carmichael e os primeiros passos da pantera

[1] Carmichael, Stokely; Hamilton, Charles V. (1967). Black Power: The Politics of Liberation in America (Poder Negro: a política de libertação nos EUA). New York: Random House: 1967. pp. 44–56.

[2] Frantz Fanon (1925-61) nasceu (com ascendência francesa e africana) na Martinica, um país do Caribe. Foi psiquiatra e atuou na luta revolucionária da Argélia, tendo produzido uma obra fundamental em torno da luta contra o colonialismo e o racismo, como “Peles negras, máscaras brancas” (1952), “A revolução argelina” (1959), “Os Condenados da Terra” (1961) e “Pela Revolução Africana” (publicado após sua morte, em 1964)

[3] O termo “nacionalismo negro” é, nos EUA, utilizado para os setores do movimento que defenderam desde a autodeterminação territorial do povo negro até distintas formas de racialismo. Shawki, Ahmed. Black Liberation and Socialism. Chicago: Haymarket Books: 2006. p. 193.

[4] Idem, p. 194.

[5] Idem, p. 195.

[6] Idem, p. 195

[7] Idem, p. 195

[8] Lee Sustar, “Carving out a niche in the system” [Escavando um nicho no sistema]. Socialist Worker. Março de 1988

[9] Seale, Bobby. Seize the Time: The Story of the Black Panther Party and Huey P. Newton. Black Classical Press, 1996. p. 21.

[10] Idem, p. 71