Foto: Wilson Dias (ABr)

A Justiça ainda é branca e tolerante com o racismo

Diversos são os casos do uso da internet para ataque às religiões afrodescendentes. Frequentemente, os rituais das religiões de matriz africana são vinculados ao diabo, figura que representa o lado não sagrado em diversas crenças. Muitos desses ataques vêm de representantes de outras religiões, que a serviço dos interesses dos ricos, ferozmente apontam suas palavras de ódio às crenças negras, como se estivessem lá para dar o seguinte recado: nós negros não podemos ter uma cultura própria, e se caso ousarmos ter uma, ela será extirpada da humanidade com a mesma violência que nossos ancestrais foram arrancados de seu continente. Ofensas que vão desde ataques verbais até a invasões a terreiros com o intuito de intimidar os praticantes.

Diante deste assustador quadro de intolerância, no início do ano, foi levado pela Associação Nacional de Mídia Afro para o Ministério Público um conjunto de 15 vídeos veiculados pela internet com conteúdo de intolerância religiosa, solicitando que esses vídeos saíssem do ar imediatamente. Para a surpresa de todos, no dia 13 de maio – data utilizada para tentar encobrir que no país ainda há racismo –, o juiz federal Eugênio Rosa de Araújo, da 17ª Vara Federal do Rio, fez uma afirmação conteúdo racista, ao afirmar que “as manifestações religiosas afro-brasileiras não se constituem em religiões”, pois, segundo o juiz, a umbanda e o candomblé não possuem uma estrutura hierárquica e um código escrito como, por exemplo, a bíblia. Em outras palavras, o juiz determinou um padrão para as religiões no Brasil, e o formato “aceito” atende a um perfil branco e europeu de religiosidade, ou seja, tudo que estiver fora desse estereótipo deve ser extinto ou inferiorizado a ponto de deixar de ser tratado como expressão religiosa do povo negro, passando a ser concebido apenas como apresentação artística.

Assim, o juiz Eugênio encontra-se diante de seu grande mentor, pelo menos no caráter racista, o filósofo francês Montesquieu, que em sua obra O Espírito das Leis, afirmou que “Não nos podemos convencer que Deus, que é um ser muito sábio, tenha posto uma alma; principalmente uma alma boa, num corpo todo preto”. Essa mesma lógica, de que nós negros não temos alma, foi amplamente divulgada durante o século XVI pela Igreja como justificativa para escravizar os africanos. E mais, segundo essa lógica, se somos sem almas, logo somos incapazes de construir e manter uma cultura. Portanto, nossas crenças não devem ser tratadas como religião. Lamentável esse pensamento, principalmente vindo de um juiz que, no papel, deveria garantir o direito de todos.

Para piorar o show de afirmações racistas, o Google, após receber a solicitação de retirar os vídeos do ar, negou-se com a declaração de que o conteúdo nos vídeos são “manifestações de livre expressão de opinião”. A empresa aqui compara liberdade de expressão com “direito de opressão”. Seria mesmo uma “manifestação de livre expressão de opinião” subjugar um povo ou cultura o inferiorizando? Se sim, valeria a pena que os acionistas da Google dessem uma busca rápida em seu próprio programa e ver a quem coube na história essa mentalidade, e desde já sabemos que não foi a quem foi torturado, perseguido, morto ou colocado nas senzalas.

Um passo atrás, para depois poder nos jogar pedras
Após a repercussão do caso, entidades combativas do país inteiro saíram em repúdio às afirmações do juiz. Movimento negro, movimento de combate à intolerância religiosa, praticantes da umbanda e candomblé, todos juntos lembrando que ninguém tem o direito de determinar o que deve ser tratado como religião ou não. Pressionado pela indignação que despertou, o juiz Eugênio recuou em sua afirmação, mas não no seu julgamento recusando-se a dar o parecer jurídico para retirar os vídeos do ar, mostrando as limitações do seu recuo.

Imediatamente, os setores mais conservadores e racistas da sociedade, saíram da “casa grande”, em defesa do juiz. A Associação dos Juízes Federais do Rio de Janeiro e do Espírito Santo (Ajuferjes), afirmou em nota que as respostas contra o comentário do juiz eram de cunho intimidador contra a Justiça. E mais: pontuou que seu comentário era de “liberdade de expressão”, já que o juiz como qualquer outro cidadão poderia manifestar sua opinião.

A postura do Judiciário só mostra qual é o real papel da Justiça e do Direito, que defende de forma ferrenha o interesse daqueles que dominam a sociedade – os ricos – independente se suas ações são explicitamente racistas e violam os princípios balizadores da Constituição Federal.

Resistência através da religião
Durante a Diáspora Africana, os negros e negras trouxeram parte de sua cultura ao Brasil, tornando-se como um dos principais polos de resistência da sua cultura no país. Em situações como a escravidão, onde os negros eram coisificados (tratados como objetos), havia três tipos de resistência. O primeiro era o banzo, que era o suicídio como forma de protesto contra a condição que lhes era imposta, de serem tratados como animais ou objetos. O segundo eram os quilombos, locais onde os negros, em sua maioria (pois também havia brancos), organizavam-se contra a escravidão e construíam dia-a-dia um ideal de comunidade igualitária. E o terceiro trava-se das manifestações artísticas, sociais, raciais e culturais dos negros, dentre elas as religiões afrodescendentes, que traziam consigo uma memória de identidade étnica, fazendo com que os negros permanecessem ligados aos seus laços e pudessem passá-los às gerações através da palavra.

O candomblé e a umbanda são religiões herdeiras da resistência quilombola, demonstração do levante nas senzala contra a opressão. A umbanda é a primeira religião de matriz afro fundada no Brasil, apesar dos diversos enfretamentos com sistema opressor, não perdeu seu caráter contestador e antirracista. Ambas foram alvos atos de criminalização, sendo atrelada a concepções profanas que a demonizaram e deformaram suas divindades.

Até hoje, por conta da ideologia racista, toda a cultura negra (e o que a envolve), é tratada como algo ruim. Desde pequeno a sociedade burguesa nos ensina que devemos manter distância dos tambores, dos orixás, dos terreiros, como se neles houvesse algo tão prejudicial que superasse o racismo da sociedade capitalista sobre nossa cultura.

As religiões e os marxistas
Nós, marxistas, sempre defendemos o direito das pessoas de escolherem sua fé. Lênin, numa polêmica contra os antissemitas, dizia que havia tanto judeus trabalhadores quanto judeus patrões, e era dever de todos os comunistas defenderem os trabalhadores independente de sua fé. E o mesmo não poderia ser diferente com outras religiões. Nós entendemos que mesmo que a fé nos una, a classe nos dividirá nas trincheiras da realidade. Para nós, o que definirá se alguém é nosso companheiro ou não, não é sua religião, mas sim de que lado ele decidiu lutar, dos oprimidos e explorados ou opressores e exploradores.

Sempre defendemos a laicidade do estado, e isso inclui também que não haja interferência ou até mesmo extermino a fé dos trabalhadores. A religião é uma opção individual, que deve ser defendida enquanto não for usada para chumbar as correntes da opressão e exploração. A quem interessa atacar a umbanda e o candomblé? Oras, aos mesmos que sempre tentaram demonizar e acabar com a cultura e a resistência negra.

Nós, da Secretaria de Negras e Negros do PSTU, chamamos a todos os trabalhadores a defenderem não uma religião, mas sim o direito de liberdade religiosa e a auto-determinação cultural. E mais, cobramos que o governo federal, Dilma (PT), junto com os órgãos competentes, afaste o juiz de seu cargo. Não basta o racismo e a intolerância que sofremos, não precisamos de suas expressões também na justiça.