LIT-QI

Liga Internacional dos Trabalhadores - Quarta Internacional

O processo revolucionário (que levou à tomada do poder pela classe operária russa em outubro de 1917) havia começado em fevereiro daquele mesmo ano, quando o regime czarista foi derrotado. Muitos historiadores consideram que esta primeira revolução foi “espontânea” e que não teve nenhuma direção. Trotsky, pelo contrário, dedica um capítulo do seu livro História da Revolução Russa para demonstrar que, ainda que não fosse centralizada, houve sim uma direção: os operários de vanguarda educados pelo partido bolchevique de Lenin nos anos anteriores.

Leon Trotsky

Capítulo VIII – Quem dirigiu a insurreição de fevereiro?

Advogados e jornalistas das classes prejudicadas pela revolução gastaram uma boa quantidade de tinta tentando provar mais tarde que o que aconteceu em fevereiro foi essencialmente uma rebelião de mulheres, reforçada por um motim de soldados e que recebeu o nome de revolução; Luís XVI, em seu tempo, também tentou acreditar que a captura da Bastilha era uma rebelião, mas respeitosamente lhe explicaram que era uma revolução. Aqueles que perdem para uma revolução são raramente inclinados a chamá-la por seu nome real. Pois este nome, apesar dos esforços de reacionários desesperados, está cercado na memória histórica da humanidade com uma auréola de libertação de todas prisões e preconceitos. As classes privilegiadas de todas as épocas, e também seus lacaios, sempre tentaram declarar a revolução que as derrubaram, em contraste com as revoluções passadas, como um motim, uma sedição ou uma revolta da ralé. Classes que sobrevivem a elas mesmas não se distinguem pela originalidade.

Logo após o dia 27 de fevereiro, tentou-se fazer paralelos entre a revolução e o coup d’etat militar dos Jovens Turcos, com o qual, como sabemos, tanto sonharam os círculos superiores da burguesia russa. Esta comparação era tão infundada, contudo, que foi refutada seriamente até por um dos jornais burgueses. Tugan-Baranovsky, economista que estudou Marx em sua juventude, uma variante russa de Sombart, escreveu em 10 de março, nos Birjevoe Vedomosti[1]: “A revolução turca consistiu num levante vitorioso do Exército, preparado e realizado pelos chefes do Exército; os soldados foram apenas os obedientes executores dos planos de seus oficiais. Mas os regimentos da Guarda, que em 27 de fevereiro derrubaram o trono russo, marcharam sem seus oficiais. Não foi o Exército, mas os operários que iniciaram a insurreição; não foram os generais mas os soldados que se dirigiram à Duma do Estado. Os soldados apoiaram os operários não porque eram cumpridores obedientes das ordens de seus oficiais, mas porque… eles se sentiam irmãos de sangue dos operários, como uma classe composta de trabalhadores como eles mesmos. Os camponeses e os operários – estas são as duas classes sociais que fizeram a revolução Russa”.

Estas palavras não precisam de correção ou complementos. O desenvolvimento ulterior da revolução confirmou suficientemente e até reforçou sua significação. Em Petrogrado, o último dia de fevereiro foi o primeiro dia da vitória: um dia de êxtase, abraços, lágrimas jubilosas, expansões derramadas; ao mesmo tempo, dia de golpes decisivos no inimigo. Tiros ainda estouravam nas ruas. Dizia-se que os “faraós” de Protopopov, não informados da vitória do povo, ainda atiravam dos telhados. De baixo atiravam-se nas águas furtadas, lucarnas, campanários, onde os fantasmas armados do tsarismo ainda se escondiam. Às quatro da tarde foi ocupado o Almirantado, onde os últimos remanescentes do que era formalmente o poder do Estado se refugiaram. As organizações revolucionárias e grupos improvisados faziam prisões por toda a cidade. A prisão-fortaleza de Schlüsselburg foi tomada sem um tiro. Mais e mais regimentos estavam se unindo à revolução, tanto na capital como nos arredores.

A queda em Moscou foi apenas um eco da insurreição em Petrogrado. As mesmas opiniões entre operários e soldados, mas expressas menos claramente. Uma tendência um pouco mais esquerdista entre a burguesia. Uma fraqueza ainda maior entre as organizações revolucionárias do que em Petrogrado. Quando começaram os eventos do Neva, a intelectualidade radical de Moscou chamou uma conferência para decidir o que se faria, e não chegaram a conclusão alguma. Apenas em 27 de fevereiro começaram greves nas fábricas e oficinas de Moscou, em seguida manifestações. Os oficiais diziam aos soldados nos quartéis que uma ralé fazia arruaças nas ruas e precisava ser reprimida. “Mas nesta época”, relata o soldado Chichilin, “os soldados entendiam a palavra ‘ralé’ no sentido oposto”. Às duas da tarde chegaram ao prédio da Duma municipal muitos soldados de vários regimentos perguntando como se unir à revolução. No dia seguinte, as greves aumentaram. As massas avançaram para a Duma com bandeiras. Um soldado de uma companhia motorizada, Muralov, velho bolchevique, agrônomo, um gigante magnânimo e valente, trouxe para a Duma o primeiro e completo destacamento militar disciplinado, que ocupou a estação de rádio e outros pontos. Oito meses depois, Muralov estaria no comando das tropas da região militar de Moscou.

As prisões foram abertas. O mesmo Muralov conduziu um caminhão cheio de presos políticos libertados: um oficial de polícia, com a mão na viseira, perguntou ao revolucionário se devia também libertar os judeus. Dzerjinski, acabado de sair de uma prisão de trabalhos forçados e sem mudar seu traje de prisão, falou no prédio da Duma onde um soviete de deputados já estava formado. O artilheiro Dorofeev relata como, em 1.° de março, operários da fábrica de doces Siou se apresentaram com suas bandeiras nos quartéis da brigada de artilharia para confraternizar com os soldados e como muitos não podiam conter suas lágrimas de alegria. Houve casos de tiroteios na cidade, mas em geral não houve confrontos ou feridos: Petrogrado garantia Moscou.

Em várias cidades provinciais o movimento começou apenas em 1.° de março, após a revolução já ter triunfado até em Moscou. Em Tver, os operários saíram do trabalho para os quartéis numa procissão e, misturados com os soldados, marcharam pelas ruas da cidade. Nessa época eles ainda cantavam a “Marselhesa”, não a “Internacional”. Em Nijni-Novgorod, milhares de operários se reuniram em torno do prédio da Duma municipal, que, na maioria das cidades, desempenhou o papel do Palácio de Tauride. Após um discurso do prefeito, os operários marcharam com bandeiras vermelhas para libertar os presos políticos das prisões. À noite, 18 de 21 divisões militares da guarnição se passaram voluntariamente para a revolução. Em Samara e Saratov realizaram-se comícios e organizaram-se sovietes de deputados operários. Em Kharkov, o chefe da polícia, tendo ido à estação ferroviária e recebido notícias da revolução, subiu em um vagão ante uma multidão excitada e, erguendo seu chapéu, gritou com todos os seus pulmões: “Vida longa à revolução. Hurra!” As notícias chegaram à Ekaterinoslav de Kharkov. À frente da manifestação estava o assistente-chefe da polícia, tendo à sua mão um longo sabre, como nas grandes paradas dos dias santos. Quando se tornou claro finalmente que a monarquia não mais se levantaria, começaram cautelosamente a remover os retratos do tsar das instituições governamentais e escondê-los nos sótãos. Anedotas sobre isso, autênticas e imaginárias, circulavam muito entre os círculos liberais, onde ainda não tinham perdido o gosto pelo tom jocoso quando falavam da revolução. Os operários, e também os soldados dos quartéis, tomaram os eventos de um modo muito diferente. Sobre o que aconteceu em várias outras cidades (Pskov, Orel, Rybinsk, Penza, Kazan, Tsaritsyn, e outras), o Chronicle, de 2 de março, assinala que: “Chegaram notícias da revolta e o povo aderiu à revolução”. Esta descrição, não obstante seu caráter sumário, traduz o que aconteceu de fundamental.

Notícias da revolução chegavam ao campo das proximidades – das cidades, parcialmente através das autoridades, mas principalmente através dos mercadores, dos operários e soldados em licença. As aldeias aceitaram a revolução mais lentamente e de modo menos entusiástico do que as cidades, mas não menos profundamente. Para elas, a revolução estava ligada à questão da guerra e da terra.

Não seria exagero dizer que foi Petrogrado que realizou a Revolução de Fevereiro. O resto do país apenas aderiu. Não houve luta em lugar algum, exceto em Petrogrado. Não houve em nenhum país, um só grupo da população, partido, instituição ou unidade militar que estivesse pronto para lutar pelo velho regime. Isso mostra como são infundados os raciocínios tardios dos reacionários de que se a cavalaria da Guarda estivesse na guarnição de Petersburgo ou se Ivanov trouxesse do front uma brigada confiável, o destino da monarquia teria sido diferente. Nem no front nem na retaguarda havia uma brigada ou regimento disposto a lutar por Nicolau II.

A revolução foi feita pela iniciativa e pelo esforço de uma cidade, constituindo cerca de aproximadamente 1/75 da população do país. Pode-se dizer, se quiser, que o maior dos atos democráticos se realizou da maneira mais antidemocrática. Todo o país foi posto ante um fait accompli. O fato de se ter a Assembléia Constituinte em perspectiva não altera questão, pois as datas e os métodos de convocação desta representação nacional seriam determinados por órgãos que emanavam da insurreição vitoriosa de Petrogrado. Isso lança uma intensa luz sobre a questão das funções das formas democráticas em geral e numa época revolucionária em particular. As revoluções têm sempre aplicado golpes no fetichismo jurídico da vontade popular e os golpes são sempre muito mais violentos quanto mais profunda, audaciosa e democrática é a revolução em questão.

Diz-se freqüentemente, especialmente em relação à grande Revolução francesa, que a extrema centralização da monarquia permitiu mais tarde que a capital revolucionária pensasse e agisse por todo o país. Esta explicação é superficial. Se revoluções revelam uma tendência centralizadora, esta não é uma imitação das monarquias derrubadas, mas uma conseqüência das irresistíveis demandas da nova sociedade, que não pode se reconciliar com o particularismo. Se a capital desempenha um papel dominante numa revolução e concentra em si o desejo da nação, isso é simplesmente porque a capital expressa mais claramente e completamente as tendências fundamentais da nova sociedade. As províncias aceitam os passos tomados pela capital como suas próprias intenções já materializadas. O papel iniciador dos centros não é uma violação da democracia, mas sua realização dinâmica. Contudo, o ritmo desta dinâmica nunca coincidiu nas grandes revoluções com o ritmo da democracia formal representativa. As províncias aderem à atividade do centro, mas com atraso. Com o rápido desenvolvimento dos eventos característicos de uma revolução, surgem agudas crises no parlamentarismo revolucionário, que não podem ser resolvidas pelos métodos da democracia. Em todas as genuínas revoluções, a representação nacional invariavelmente entrou em conflito com a força dinâmica da revolução, cujo centro principal é a capital. Foi assim no século 17, na Inglaterra; no século 18, na França, e no século 20, na Rússia. O papel da capital é determinado não pela tradição do centralismo burocrático, mas pela situação da classe revolucionária dirigente, cuja vanguarda se concentra naturalmente na cidade principal: isso é igualmente verdadeiro para a burguesia e para o proletariado.

Quando a vitória de Fevereiro foi totalmente confirmada, começaram a contar as vítimas. Em Petrogrado, eles contaram 1.443 mortos e feridos, 869 deles soldados e, sessenta destes, oficiais. Comparadas com as vítimas de qualquer batalha da Grande Matança, estas cifras são insignificantes. A imprensa liberal declarou que a Revolução de Fevereiro não foi sangrenta. Em dias de entusiasmo geral e anistia mútua dos partidos patrióticos, ninguém tomou a iniciativa de estabelecer a verdade. Albert Thomas, um amigo de todo vencedor, até de uma insurreição vitoriosa, escreveu na época sobre “a mais luminosa, a mais jubilosa, e a mais incruenta revolução russa”. Certamente, ele esperava que esta revolução ficasse à disposição da Bolsa francesa. Mas apesar de tudo, Thomas não inventou este hábito. No dia 27 de junho de 1789, Mirabeau exclamou: “Que felicidade que esta grande revolução venceu sem homicídios e sem lágrimas!… A História há muito tempo nos fala apenas das ações animalescas das vítimas… Podemos muito bem esperar que estejamos iniciando a história humana”. Quando os três Estados foram unidos na Assembléia Nacional, os ancestrais de Albert Thomas escreveram: “A revolução terminou. Não custou uma gota de sangue”. Precisamos reconhecer, contudo, que, neste período, de fato, o sangue não foi derramado. Não foi assim nos dias de Fevereiro. Não obstante, a lenda de uma revolução sem sangue persistiu obstinadamente, devido à necessidade da burguesia liberal de mostrar as coisas como se o poder tivesse caído por si mesmo, nas suas mãos.

Se a Revolução de Fevereiro não foi isenta de derramamento de sangue, ainda não deixa de surpreender o número insignificante de vítimas, não apenas no momento da revolução mais no primeiro período que se seguiu. Esta revolução, precisamos lembrar, era uma reparação pela opressão, perseguição, humilhação e golpes vis sofridos pelas massas do povo russo através de séculos! Os marinheiros e soldados, em alguns locais, realizaram uma justiça sumária sobre o mais desprezível torturador, na pessoa de seus oficiais, mas o número destes atos de represália foi insignificante em comparação ao número dos velhos insultos sangrentos. As massas abandonaram sua boa natureza apenas muito mais tarde, quando se convenceram que as classes dominantes queriam fazer tudo voltar ao que era antes, apropriar-se de uma revolução não realizada por elas, como elas sempre se apropriaram das coisas boas da vida que não produziram.

Tugan-Baranovsky está certo quando diz que a Revolução de Fevereiro foi obra dos operários e camponeses – estes na pessoa dos soldados. Mas ainda resta a grande questão: quem liderou a revolução? Quem levantou os operários? Quem levou os soldados para as ruas? Depois da vitória, estas perguntas tornaram-se objeto de discórdia entre os partidos. Ela foi resolvida de forma mais simples pela fórmula universal: Ninguém liderou a revolução, ela se fez por si mesma. A teoria do “espontaneísmo” caía mais oportunamente nas mentes não apenas destes cavalheiros que ontem pacificamente governavam, julgavam, acusavam, defendiam, negociavam, ou comandavam, e hoje se apressavam em adular a revolução, mas também de muitos políticos profissionais e antigos revolucionários, que estavam dormindo durante a revolução e desejavam pensar que nisso eles não foram diferentes de todo o resto.

Em sua curiosa História das desordens russas, o general Denikin, antigo comandante do Exército Branco, diz sobre o 27 de Fevereiro: “Neste dia decisivo não houve líderes, houve apenas os elementos. Em seu curso ameaçador não eram visíveis objetivos, planos, ou palavras de ordem”. O sabido historiador Miliukov não se aprofundou mais do que este general com paixão por cartas. Antes da revolução, o líder liberal declarava toda idéia de revolução uma sugestão do Estado-Maior alemão. Mas a situação era mais complicada após uma revolução que levou os liberais ao poder. A tarefa de Miliukov agora não era desonrar a revolução ligando-a aos Hohenzollern mas, pelo contrário, subtrair a honra de sua iniciação dos revolucionários. O liberalismo adotou inteiramente a teoria de uma revolução espontânea e impessoal. Miliukov cita com simpatia o semiliberal e semi-socialista Stankevitch, conferencista que se tornou comissário político no quartel-general do Supremo Comando: “As massas se moveram por si mesmas, obedecendo a um inconsciente apelo íntimo…”, escreve Stankevitch sobre os dias de Fevereiro. “Com que palavras de ordem os soldados marcharam? Quem os liderou quando conquistaram Petrogrado, quando incendiaram o Palácio de Justiça? Nenhuma idéia política, nem uma palavra de ordem revolucionária, nem uma conspiração, nem uma revolta, mas um movimento espontâneo subitamente consumindo todo o velho poder até o último vestígio”. A espontaneidade adquire aqui um caráter quase místico.

O mesmo Stankevitch oferece um testemunho valioso no mais alto grau: “No final de janeiro, eu apareci num círculo muito íntimo para falar com Kerensky… Para a possibilidade de um levante popular, todos tinham uma posição francamente negativa, temendo que um movimento de massas, uma vez surgido, seguisse uma corrente de extrema esquerda e isto criasse grandes dificuldades na condução da guerra”. As opiniões do círculo de Kerensky não diferiam essencialmente da dos kadetes. A iniciativa certamente não saiu daí. “A revolução caiu como um raio no céu azul”, disse o presidente do Partido Socialista-Revolucionário, Zenzinov. “Sejamos francos: ela chegou para a inesperada alegria de todos nós, revolucionários que trabalharam por ela por muitos anos e sempre esperaram por ela”.

Não era muito melhor com os mencheviques. Um jornalista da imigração burguesa narra seu encontro num bonde, em 21 de Fevereiro, com Skobelev, futuro ministro do governo revolucionário: “Este socialdemocrata, um dos líderes do movimento, disse-me que as desordens tinham o caráter de pilhagem, e que era necessário reprimi-las. Isso não impediu Skobelev de afirmar um mês depois que ele e seus amigos fizeram a revolução”. As cores aqui estão provavelmente exageradas, mas no essencial a posição dos socialdemocratas legais, os mencheviques, está transmitida suficientemente bem.

Finalmente, um dos recentes líderes da ala esquerda dos socialistas-revolucionários, Mstislavsky, que depois se uniu aos bolcheviques, disse sobre a revolta de fevereiro: “A revolução também nos pegou dormindo, o partido popular daqueles dias, como as virgens loucas da Bíblia”. O quanto eles se pareciam com virgens não importa, mas é verdade que todos eles dormiam.

Como estavam os bolcheviques? Já os vimos em parte. Os principais dirigentes da organização bolchevique clandestina eram nesta época três: os antigos operários Chliapnikov e Zalutsky, e o ex-estudante Molotov. Chliapnikov, tendo vivido algum tempo no exterior e em associação estreita com Lenin, era no sentido político o mais maduro e ativo destes três, que constituíam o birô do Comitê Central. Contudo, as próprias memórias de Chliapnikov confirmam da melhor forma o fato de que os eventos eram muito para o trio. Até a última hora, estes dirigentes pensavam que era a questão de uma manifestação revolucionária, uma entre muitas, e não de uma insurreição armada. Nosso amigo Kayurov, um dos líderes do bairro de Vyborg, afirma de modo categórico: “Nenhuma iniciativa orientadora dos centros do partido foi sentida… o comitê de Petrogrado estava preso e o representante do Comitê Central, o camarada Chliapnikov, era incapaz de dar qualquer diretriz para o dia seguinte”.

A fraqueza das organizações clandestinas era resultado direto dos ataques policiais, que deram resultados excepcionais em meio à atmosfera patriótica do início da guerra. Toda organização, mesmo a mais revolucionária, tende a ficar atrás de sua base social. A organização clandestina dos bolcheviques no início de 1917 ainda não se recuperara de seu esmagamento e sua dispersão, enquanto que nas massas a histeria patriótica fora bruscamente substituída pela indignação revolucionária.

Para dar uma idéia clara da situação na esfera da direção revolucionária, é preciso lembrar que os revolucionários mais autorizados, os líderes dos partidos de esquerda, estavam no exterior, e alguns deles, na prisão e no exílio. Quanto mais perigoso era um partido para o velho regime, mais cruelmente decapitado aparecia no momento da revolução. Os narodniks tinham uma fração da Duma encabeçada por um apartidário radical, Kerensky. O líder oficial dos socialistas-revolucionários, Tchernov, estava no exterior. Os mencheviques tinham uma fração na Duma chefiada por Tchkheidze e Skobelev; Martov emigrara; Dan e Tseretelli, no exílio. Um número considerável de intelectuais socialistas com um passado revolucionário estava agrupado em torno destas facções – narodnik e menchevique. Isso constituía algum estado-maior político, mas um que era capaz de chegar ao front apenas depois da vitória. Os bolcheviques não tinham uma fração da Duma: seus cinco deputados operários, que o governo tsarista via como o centro organizador da revolução, tinham sido presos nos primeiros meses da guerra. Lenin estava no exterior, Zinoviev com ele; Kamenev estava no exílio, junto com os então pouco conhecidos líderes práticos: Sverdlov, Rykov, Stalin. O socialdemocrata polaco Dzerjinski, que ainda não pertencia aos bolcheviques, estava na prisão. Os líderes acidentalmente presentes, pelo fato de estarem acostumados a agir sob uma direção autorizada e inapelável, não se consideravam e não eram considerados por outros capazes de desempenhar um papel orientador nos eventos revolucionários.

Mas se o partido bolchevique não podia garantir à insurreição uma liderança autorizada, o mesmo se pode dizer de outras organizações. Este fato reforçou a convicção corrente do caráter espontâneo da Revolução de Fevereiro. Não obstante, esta convicção está profundamente errada, ou pelo menos sem significado.

A luta na capital durou não uma hora, ou duas, mas cinco dias. Os líderes tentaram refreá-la; as massas respondiam com crescente pressão e marchavam adiante. Tinham contra elas o velho Estado, cuja fachada tradicional dissimulava ainda uma poderosa força, a burguesia liberal, com sua Duma do Estado, Uniões do Campo e da Cidade, as organizações industrial-militares, academias, universidades e uma imprensa poderosa e, finalmente, dois fortes partidos socialistas que impunham uma resistência patriótica ao impulso vindo de baixo. No partido bolchevique, a insurreição tinha sua organização mais próxima, mas uma organização acéfala, com quadros dispersos e fracos núcleos ilegais. E, não obstante, a revolução, que ninguém esperava naqueles dias, se desenvolveu, e quando nas cúpulas parecia que o movimento já estava se extinguindo, este, com um ressurgimento abrupto, uma poderosa convulsão, alcançou a vitória.

De onde veio esta força sem exemplo de agressão e impetuosidade? É insuficiente se referir à exasperação. Ela sozinha é pouco. Os operários de Petersburgo, não importa o quanto estavam diluídos durante os anos de guerra, com material humano novo, tinham em seu passado uma grande experiência revolucionária. Em sua agressão e impetuosidade, na ausência de liderança e em face da oposição das cúpulas, foi revelado uma estimativa bem fundamentada, embora nem sempre expressa, das forças adversárias e um cálculo estratégico da sua própria.

Às vésperas da guerra, as camadas operárias revolucionárias seguiam os bolcheviques e lideravam as massas atrás delas. Com o início da guerra, a situação bruscamente mudou: grupos conservadores levantaram as cabeças, arrastando com eles uma parte considerável da classe. Os elementos revolucionários se viram isolados e silenciados. Ao longo da guerra, a situação começou a mudar, primeiro lentamente, mas, após as derrotas, de forma mais rápida e radical. Um descontentamento ativo tomou toda a classe operária. Ele estava, na maior parte, disfarçado de cores patrióticas, mas não tinha nada de comum com o patriotismo calculista e covarde das classes possuidoras, que adiavam todas as questões domésticas para depois da guerra. A guerra em si, suas vítimas, seu horror, sua infâmia, impeliam não apenas as velhas, mas também as novas camadas de operários ao conflito com o regime tsarista. Fez isso com uma força redobrada e as levou a esta conclusão: isto não pode mais durar. A conclusão era universal; ela tornou coesas as massas e deu a elas uma poderosa força dinâmica.

O Exército inchou, trazendo para si milhões de operários e camponeses. Todos tinham parentes entre as tropas: um filho, um marido, um irmão. O Exército não estava mais isolado do povo, como antes da guerra. O povo se encontrava freqüentemente com os soldados; via-os quando saíam para o front, vivia com eles quando voltavam para a casa de licença, conversava com eles nas ruas e nos bondes sobre as trincheiras, visitava-os nos hospitais. Os bairros operários, os quartéis, o front e, de certa forma, as aldeias, tornaram-se vasos comunicantes. Os operários sabiam o que os soldados pensavam e sentiam. Eles tinham inúmeras conversas sobre a guerra, sobre a gente que estava ficando rica com ela, sobre os generais, o governo, o tsar e a tsarina. O soldado dizia da guerra: “Maldita seja!”. E o operário respondia sobre o governo: “Maldito seja!”. O soldado perguntava: “Por que então vocês estão quietos aqui no centro?”. O operário respondia: “Não podemos fazer nada com mãos vazias; nós quebramos a cabeça contra o Exército em 1905”. O soldado refletia: “Se todos começássemos juntos!”. O operário: “Isso, todos juntos!”. Conversas deste tipo antes da guerra eram conspiratórias e realizadas apenas a dois; agora elas se realizavam em todo lugar, em toda ocasião, e quase abertamente, pelo menos nos bairros operários.

O serviço de inteligência do tsar conseguiu, várias vezes, fazer boas sondagens. Duas semanas antes da revolução, um espião, que assinava com o nome Krestianinov, relatou uma conversa num bonde atravessando um subúrbio operário. Um soldado dizia como em seu regimento oito homens estavam nos trabalhos forçados porque no último outono se recusaram a atirar nos operários da fábrica Nobel e, ao invés, atiraram na polícia. A conversa se passava abertamente, já que nos bairros operários a polícia e os espiões preferiam permanecer incógnitos. “Ajustaremos contas com eles”, o soldado concluiu. O relatório concluía: “Um operário qualificado respondeu a ele: ‘Por isso é necessário que todos ajam como um’. O soldado respondeu: ‘Não se preocupem, já nos organizamos há muito tempo… Já beberam sangue demais. Homens estão sofrendo nas trincheiras e aqui eles estão engordando!’… Nenhum distúrbio especial ocorreu. 10 de fevereiro de 1917. Krestianinov”. Incomparável épico espião. “Nenhum distúrbio especial ocorreu”. Eles ocorreriam, e logo: esta conversa no bonde assinalava sua aproximação inexorável.

O espontaneísmo da insurreição é ilustrado por Mstislavsky em um curioso exemplo: Quando a “União dos Oficiais de 27 de Fevereiro”, formada logo após a revolução, tentou determinar com um questionário quem primeiro liderou o Regimento Volynsky, recebeu sete respostas nomeando sete iniciadores desta ação decisiva. É provável, podemos adicionar, que parte da iniciativa realmente pertencesse a vários soldados, nem é impossível que o principal iniciador tenha caído lutando nas ruas, levando seu nome com ele para o esquecimento. Mas isso não diminui a importância histórica de sua iniciativa anônima. Ainda mais importante é o outro lado da questão, que nos leva para além dos muros da caserna. A insurreição dos batalhões da guarda, aparecendo como uma surpresa geral para os círculos liberais e socialistas legais, não foi de modo algum uma surpresa para os operários. Sem a sua insurreição, o Regimento Volynsky não teria saído às ruas. O encontro de rua dos operários com os cossacos, que um advogado observou de sua janela e comunicou por telefone a um deputado, seria para ambos um episódio de um processo impessoal: os gafanhotos da fábrica esbarram com os gafanhotos dos quartéis. Mas não parecia assim para o cossaco que se atrevera a piscar para o operário, nem para o operário que instantaneamente percebeu que o cossaco “piscara de uma maneira amigável”. A interpenetração molecular do Exército com o povo prosseguia sem interrupção. Os operários mediam a temperatura do Exército e sentiam que se aproximava o momento crítico. Foi exatamente isso que deu tal força inconquistável ao impulso das massas, confiantes da vitória.

Aqui devemos citar a notável observação de um dignitário liberal tentando sumarizar suas observações de Fevereiro: “É hábito dizer que o movimento começou de forma espontânea, os soldados indo para as ruas por si mesmos. Não posso concordar com isto de forma alguma. Afinal, o que significa a palavra ‘espontaneidade’?… A geração espontânea está mais deslocada na sociologia do que nas ciências naturais. O fato de que nenhum dos líderes revolucionários de renome foi capaz de pôr sua marca no movimento não o torna impessoal, mas meramente anônimo”. Esta formulação da questão, incomparavelmente mais séria do que as referências de Miliukov aos agentes alemães e ao espontaneísmo russo, pertence a um antigo procurador que encontrou a revolução na posição de senador tsarista. É possível que sua experiência judiciária permitiu a Zavadsky perceber que uma insurreição revolucionária não poderia vir da ordem de agentes estrangeiros, ou no modo de um processo impessoal da natureza.

O mesmo autor narra dois incidentes que o permitem olhar pela fechadura do laboratório do processo revolucionário. Na sexta, 24 de fevereiro, quando ninguém nas altas esferas esperava uma revolução no futuro próximo, um bonde em que viajava um senador, inesperadamente, entre a Liteiny e uma rua adjacente, manobrou com tal violência que as janelas estremeceram e uma quebrou, e lá parou. O condutor disse para todos saírem: “O carro não prosseguirá”. Os passageiros objetaram, reclamaram, mas desceram. “Ainda posso ver a face do taciturno condutor: raivosamente resoluto, um aspecto de lobo”. O movimento dos bondes foi interrompido até onde a vista alcançava. Este condutor resoluto, em cujo rosto o senador viu um “aspecto de lobo”, devia estar dominado por um alto senso de dever para ousar, sozinho, parar um carro contendo dignitários nas ruas da Petersburgo imperial em tempo de guerra. Foram condutores como este que pararam o vagão da monarquia e, com praticamente as mesmas palavras – Este trem não irá adiante! –, fizeram descer a burocracia, não fazendo distinção, em sua pressa, entre um general dos gendarmes e um senador liberal. O condutor da avenida Liteiny era um fator consciente da história. Ele deveria ter sido educado com antecedência.

Durante o incêndio do Palácio da Justiça, um jurista liberal do círculo do mesmo senador expressou na rua seu pesar de que salas cheias de decisões judiciais e arquivos de cartórios estavam perecendo. Um homem idoso, de aspecto sombrio, vestido como operário, objetou irritado: “Seremos capazes de dividir as casas e as terras nós mesmos, sem seus arquivos”. Provavelmente, este episódio está aumentado de uma maneira literária. Mas havia muitos operários idosos como este na multidão, capazes de fazer a réplica necessária. Eles mesmos nada tinham a ver com o incêndio do Palácio da Justiça: por que queimá-lo? Mas eles não poderiam se assustar com “excessos” deste tipo. Eles estavam armando as massas com as idéias necessárias não apenas contra a polícia tsarista, mas contra os juristas liberais que temiam mais do que tudo que no fogo da revolução se incendiassem os títulos de propriedade nos cartórios. Estes anônimos e austeros estadistas das fábricas e ruas não caíram do céu: deviam ter sido educados.

Ao registrar os eventos dos últimos dias de fevereiro, o Serviço Secreto também observava que o movimento era “espontâneo”, isto é, não tinha uma direção planejada de cima; mas logo acrescentava: “a não ser a condição geralmente propagandeada do proletariado”. Esta avaliação atingia o alvo: os profissionais da luta contra a revolução, antes de entrar nas celas deixadas vagas pelos revolucionários, discerniam muito melhor o que estava acontecendo do que os líderes do liberalismo.

A doutrina mística do espontaneísmo nada explica. Para apreciar corretamente a situação e determinar o momento para um golpe contra o inimigo, era preciso que as massas ou suas camadas dirigentes deveriam fazer seu exame dos eventos históricos e ter seus próprios critérios para estimá-los. Em outras palavras, era preciso não contar com as massas no abstrato, mas com as massas operárias de Petrogrado e os operários russos em geral, que passaram pela Revolução de 1905, pela insurreição de Moscou de dezembro de 1905, e esmagados pelo Regimento Semenovsky da Guarda. Era preciso que por esta massa estivessem espalhados operários que refletissem sobre a experiência de 1905, criticando as ilusões constitucionais dos liberais e mencheviques, assimilando as perspectivas da revolução, meditando centenas de vezes sobre a questão do Exército; observassem atentamente o que se passava neste meio – operários capazes de tirar conclusões revolucionárias do que eles observavam e as comunicassem a outros. E, finalmente, era preciso que houvessem, nas tropas da própria guarnição, soldados progressistas, conquistados, ou pelo menos tocados, pela propaganda revolucionária no passado.

Em cada fábrica, em cada corporação, em cada companhia, em cada taverna, no hospital militar, nos centros de transferências, mesmo nas vilas despovoadas, o trabalho molecular do pensamento revolucionário progredia. Por toda parte havia comentaristas e quem esperasse as palavras necessárias. Estes líderes estavam quase sempre entregues a si mesmos, nutriam-se de fragmentos de generalizações revolucionárias que vinham até eles por vários caminhos, descobrindo por si mesmos, entre as linhas dos jornais liberais, o que eles precisavam. Seu instinto de classe era refinado por um critério político e, embora não levassem todas as suas idéias até o fim, não obstante pensavam sem cessar, obstinadamente a trabalhar em uma só direção. Elementos de experiência, crítica, iniciativa, auto-sacrifício, penetravam nas massas e criavam, de forma invisível a uma olhada superficial, mas não menos decisiva, uma mecânica interna do movimento revolucionário como um processo consciente. Aos políticos conscientes do liberalismo e do socialismo domesticado tudo o que acontece entre as massas é costumeiramente representado como um processo instintivo, como um formigueiro ou uma colméia. Na realidade, o pensamento que estava perfurando a crosta da classe operária era mais audaz, mais penetrante, mais consciente do que estas pequenas idéias pelas quais as classes educadas viviam. Além disso, este pensamento era mais científico: não apenas porque estava num grau considerável fertilizado pelos métodos do marxismo, mas mais ainda porque tinha se nutrido da experiência viva das massas que logo iriam entrar na arena revolucionária. Pensamentos são científicos se correspondem a um processo objetivo e são capazes de influenciar e guiar este processo. Aqueles círculos do governo que eram inspirados pelo Apocalipse e acreditavam nos sonhos de Rasputin possuíam, mesmo num grau mínimo, idéias deste tipo? Ou talvez as idéias dos liberais tivessem base científica, eles que esperavam que a Rússia atrasada, tendo se unido à contenda dos gigantes do capitalismo, pudesse ganhar ao mesmo tempo a vitória e o regime parlamentar? Ou talvez a vida intelectual daqueles círculos da intelectualidade era científica, eles que servilmente se adaptavam a este liberalismo, senil desde a infância, protegendo sua independência imaginária com metáforas há muito putrefatas? Na verdade, este era um reino de inércia espiritual, espectros, superstição e ficções, um reino, se desejarmos, de “espontaneísmo”. Mas não temos, de todo modo, o direito de virar esta filosofia liberal da Revolução de Fevereiro exatamente de ponta-cabeça? Sim, temos o direito de dizer: ao mesmo tempo em que a sociedade oficial, toda esta superestrutura de vários andares das classes dominantes, grupos, partidos e clãs, viviam no dia-a-dia da inércia e do automatismo, nutriam-se com as relíquias de idéias caducas, mortas para as inexoráveis demandas da evolução, satisfeitas com fantasmas e nada prevendo – ao mesmo tempo, nas massas trabalhadoras, estava ocorrendo um processo independente e profundo de crescimento, não apenas de ódio aos governantes, mas de um entendimento crítico de sua impotência, uma acumulação de experiência e consciência criativa, que a insurreição revolucionária e sua vitória apenas completou.

Para a questão: “Quem dirigiu a Revolução de Fevereiro?”, podemos responder de forma suficiente: operários conscientes e temperados, educados em sua maior parte pelo partido de Lenin. Mas devemos adicionar aqui: esta direção provou ser suficiente para garantir a vitória da insurreição, mas inadequada para transferir imediatamente para as mãos da vanguarda proletária a direção da revolução.

Nota:

[1] “Notícias da Bolsa”, em russo. (N. E.)

Fonte: Leon Trotsky. História da Revolução Russa. Tomo I. Tradução: Diego Siqueira. São Paulo: Editora Sundermann, 2007.