Viacheslav Rodin, o "Slava", no centro da foto durante o Fórum Social Mundial de Porto Alegre, 2002
Henrique Canary, da Secretaria Nacional de Formação

Devido a uma série de desencontros e falhas de comunicação, somente agora nos chegou a triste notícia de que em agosto de 2014 faleceu, em Moscou, aos 75 anos, Viacheslav Fedorovich Rodin, o Slava, um dos fundadores do POI (Partido Operário Internacional), grupo simpatizante da LIT na Rússia.

Slava era físico por formação, mas trabalhou toda a sua vida como engenheiro, construindo e instalando nas ogivas nucleares russas o mecanismo que orienta os mísseis balísticos no caminho até seus alvos. Sua qualificação profissional era tão elevada que, mesmo depois de se aposentar, foi proibido por 10 anos de deixar o território russo, para evitar a transmissão de seus enormes conhecimentos sobre o sistema de defesa nuclear russo para as potências estrangeiras. E essas são apenas as primeiras credencias deste homem!

Ainda nos anos 1960, encorajado pela aparente abertura política promovida por Krushev, Slava montou, junto com outros intelectuais russos, um grupo de estudos das obras de Lênin. No início, o grupo tinha objetivos modestos: conhecer melhor o pensamento do fundador do Estado soviético. Mas a conclusão a que chegaram os jovens cientistas liderados por Slava assustou a todos. Em primeiro lugar a eles próprios: lendo o próprio Lênin, concluíram que a URSS não era uma sociedade socialista, uma vez que a classe operária, verdadeiro sujeito social e político da transformação socialista, havia sido expropriada de todo o poder pela burocracia dirigente. A partir de então, o grupo de Slava passou a atuar clandestinamente. Embora as obras de Lênin fossem amplamente divulgadas na URSS, Slava e seus companheiros eram obrigados a se esconder da KGB em seus estudos, pois uma simples análise dos trechos das obras de Lênin sublinhados pelos membros do grupo poderia ser o suficiente para uma condenação de todos por “atividade antisoviética”. Assim atuava a burocracia russa…

Com o fim da União Soviética em 1991, Slava e seu grupo buscaram estabelecer relações com o movimento operário, que passara então à legalidade. Assim, em 1994, fizeram contato com um grupo de mineiros da região de Poltava, na Ucrânia. Do encontro dos intelectuais com os operários surgia o POI, Partido Operário Internacional, que assim se denominava porque atuava simultaneamente em dois Estados: Rússia e Ucrânia. Formar um partido em dois países era também uma forma de combater o chauvinismo grão-russo, um inimigo poderoso, que hoje se mostra tão atual…

Slava conheceu a obra de Leon Trotsky por meio de um militante da LIT, que lhe passou o livro “A Revolução Traída” durante uma reunião. O velho cientista devorou o livro em uma única noite e no dia seguinte, com os olhos vermelhos e fatigados pela leitura, procurou nosso militante propondo uma colaboração estratégica.

Slava nunca se considerou Trotskysta, mas absorveu os postulados fundamentais da teoria da revolução permanente, às portas da qual tinha chegado de maneira independente, lendo apenas Lênin. A leitura de Trotsky foi o despertar definitivo. Era um entusiasta da classe operária, um apaixonado pelos trabalhadores simples, sem tê-los jamais idealizado.

Poucos sabem, mas o nome “Marxismo Vivo”, que carrega a revista teórica da LIT, é uma sugestão de Slava. A expressão foi retirada de um texto escrito por ele ainda nos anos 1960, no qual propõe uma interpretação original para o fenômeno da URSS. Para Slava, havia surgido na União Soviética uma nova formação social-econômica, nem capitalista, nem socialista, que ele chamou de “modo de produção burocrático”. A característica fundamental deste novo modo de produção seria a extração de mais-trabalho da classe operária por parte de uma classe burocrática possuidora do monopólio do conhecimento técnico e científico.

A teoria por ele formulada, como se vê, é uma variante da hipótese que Bruno Rizzi levantou ainda nos anos 1940, e que não se sustentou historicamente. A URSS não significou um novo modo de produção distinto tanto do socialismo quanto do capitalismo. Mas o erro de Slava é compreensível, visto que ele e seu grupo estavam isolados de toda a tradição marxista do Ocidente e se encontravam sós em suas elaborações, sem ter com quem confrontá-las. Ainda assim, sua teoria possui méritos. Por exemplo, Slava, coerente com suas próprias ideias, abordou com grande profundidade a necessidade de expropriar as classes dirigentes não apenas de sua propriedade física, mas também de seu conhecimento, de forma que o monopólio do saber não crie novos setores privilegiados em uma sociedade pós-revolucionária. Que importante e atual questão no século 21! Certamente, esta é uma contribuição válida ao programa marxista e que deve ser incorporada pelos revolucionários!

Quando conheci Slava, eu tinha 20 anos, e ele 60. Para mim, era um gigante. Lia Hegel e Marx no original alemão, marcando com canetas de pelo menos 5 cores diferentes os vários assuntos que encontrava em cada página. Os livros eram seus escravos. Ele os destruía com suas canetas coloridas passadas e repassadas em cima da mesma linha várias vezes. Quando já estavam ilegíveis, ele os jogava fora e começava tudo de novo com um novo exemplar.

Em 1997 eu era um jovem militante, muito mais preocupado com os problemas práticos do movimento do que com as questões filosóficas que Slava levantava em cada reunião. Certa vez polemizei com ele dizendo que ele caía no idealismo, pois exagerava o papel da teoria e da filosofia, e que precisávamos de respostas práticas para as coisas. Ele me respondeu com uma frase de Marx que eu então não conhecia: “As ideias que penetram as massas adquirem força material”. Para mim, foi uma lição. Slava não perdia uma única oportunidade de me incitar ao estudo. Dizia que caberia à minha geração atualizar a teoria da revolução permanente de Marx e Trotsky. Acho que de alguma forma começamos a fazer isso na LIT, felizmente contando com o esforço combinado de várias gerações de revolucionários.

Com o tempo, as diferenças teóricas que tínhamos com Slava evoluíram para diferenças políticas e programáticas importantes, e ele então deixou o POI. Mas sua ruptura foi leal e correta, e ele permaneceu como um amigo e colaborador até o fim da vida, nos ajudando inclusive em questão de clandestinidade e segurança, coisas extremamente importantes na Rússia de Putin.

Para mim, ficará sempre a imagem do velho sorridente, incansável, forte fisicamente, com seu chapéu de pele de coelho, já um pouco furado, chegando nas reuniões sempre antes de todos, coberto de neve e com um livro já na mão para me mostrar algo; eu lhe fazendo um chá para aquecer o estômago, e ele me contando sobre Marx, Engels ou a filosofia de Hegel. Que bela e terna imagem, digna do amigo que Slava foi.