Che Guevara (à direita) com seu companheiro Universo Sánchez, em 1957, na selva, em plena guerrilha
Biblioteca da Universidade de Yale (EUA) / Cuba Collection

Em 1967, era executado o guerrilheiro Ernesto Che Guevara. Quarenta anos depois, ele ainda é referência para militantes de esquerda e para a juventude do mundo inteiroEm 9 de outubro de 1967, às 13h30 [1], o sargento Mario Teran entrou na pequena sala de uma escola em La Higuera e assassinou um prisioneiro que se encontrava amarrado e deitado no chão. Era Che Guevara.

Capturado em batalha no dia anterior por Gary Prado, um capitão de porte aristocrático, Che trazia um ferimento na panturrilha e um uniforme andrajoso. Ele fazia, então, sua última aparição. As tormentas de La Higuera, o pequeno povoado onde foi assassinado sob os auspícios do agente da CIA Felix Rodrigues, uma história já mil vezes contada, vão formando a narrativa heróica que cerca o guerrilheiro legendário.

Che foi um combatente corajoso, internacionalista, ideólogo do foco guerrilheiro, crítico de Moscou, simpatizante de Mao Tse-Tung, apaixonado por poesias, médico e asmático. Essa figura poliforme, culta e abnegada invadiu o mundo depois de sua morte tornando-se, não raro, o oposto de tudo o que era.

Serão necessários muitos anos e esforços, que começarão de fato com a publicação de suas obras completas, para terminar de entender Che Guevara, mas já será um grande serviço limpar algumas fábulas que lhe são associadas. Mais ainda, é necessário estudar Che Guevara com o mesmo espírito crítico com que ele próprio analisou suas obras.

Nada mais edificante, nesse sentido, do que ler Passagens da Guerra Revolucionaria – Congo, em que, logo na primeira parte, Che avisa: “esta é a historia de um fracasso”. Depois, ao longo de todo o livro, sem pena, ele analisa seus próprios erros e do conjunto de seus camaradas de armas. Esta foi uma marca indelével de Che, a crítica e a autocrítica constantes, que tanto incomodou aos burocratas de Moscou e que, mais de uma vez, criou problemas para ele em Cuba.

Sua crítica mordaz ao socialismo russo no discurso de Argel, segundo alguns, lhe custou sua já instável permanência à cabeça do governo cubano[2]. Nos anos de 1959 a 1967, há sempre um aparente distanciamento entre Fidel e Che. São meios-tons que vão dando contornos a visões diferentes da revolução.

Como se sabe, Che Guevara era um dos poucos comunistas das tropas guerrilheiras de Sierra Maestra, ao ponto de escrever a um dos membros do M26, Ramos Latour: “eu pertenço, por minha formação ideológica, àqueles que acreditam que a solução para os problemas deste mundo está por trás disto que nós chamamos ‘cortina de ferro’”. E, mais à frente: “considerei sempre a Fidel como um autêntico líder da burguesia de esquerda, ainda que sua figura esteja realçada por qualidades pessoais de extraordinário brilho que o coloca por cima de sua classe. Com este espírito iniciei a luta, honradamente, sem esperança de ir além da libertação do país, disposto a ir-me quando as condições da luta posterior girarem para a direita”[3]

Inicialmente, um entusiasta da aproximação com a URSS, logo decepciona-se e começa a fazer críticas pelos desvios do Estado operário e pela falta de um verdadeiro internacionalismo, como na Mensagem à Tricontinental, em que diz: “o imperialismo norte-americano é culpado de agressão; os crimes são imensos e repartidos por todo o globo. Já o sabemos meus senhores! Mas também são culpados os que, no momento de se definirem, vacilaram em fazer do Vietnã parte inviolável do território socialista, correr os riscos de uma guerra de alcance mundial, mas também obrigando os imperialistas norte-americanos a uma decisão. E são culpados os que mantêm uma guerra de insultos e ardis, iniciada, há algum tempo, pelos representantes das maiores potencias do campo socialista”[4].

Um, dois, três, mil Vietnãs
A guerra do Vietnã foi um fato que delimitou águas no mundo. A medida que a escalada americana ia sendo enfrentada vitoriosamente pelas massas do país asiático, o entusiasmo tomava conta daqueles que lutavam contra o imperialismo em todo o mundo.

Guevara, cujo um dos centros era justamente a luta à morte contra os Estados Unidos, foi um dos primeiros a gritar em alto e bom som que não bastavam as declarações de apoio. Era necessário compartilhar a sorte do povo em luta: “a solidariedade do mundo progressista ao Vietnã é semelhante à amarga ironia que significava para os gladiadores do circo romano o estimulo da plebe”[5].

Vendo a possibilidade de intervir diretamente no conflito, jogou-se numa empresa arriscada: ir para o Congo incógnito a fim de auxiliar a guerrilha e criar um segundo Vietnã no coração da África. Seu livro Passagens da guerra revolucionaria – Congo narra as agruras desta tentativa de aplicar em solo africano sua visão pessoal da luta revolucionária.

Derrotado, passa seis meses na Europa Oriental, provavelmente na Tchecoslováquia, de onde segue para a Cuba para terminar o treinamento de seus companheiros que o seguiriam até a Bolívia.
Toda a sua “aventura” boliviana esta narrada nos famosos Diários da guerrilha boliviana. Sobre sua captura e morte, ainda restam dúvidas a serem esclarecidas. A maior delas é, sem dúvida, sobre o papel de Fidel Castro na sua saída de Cuba e na ausência de qualquer tentativa de apoio de Cuba quando a guerrilha se encontrava em sua fase final.

Para Che, nem partido, nem classe operária
Guevara era um marxista heterodoxo, sua visão da revolução estava profundamente influenciada por Mariategui[6], Mao Tsé-Tung[7], Stálin[8], Lênin [9] e, aparentemente, no seu fim, por Leon Trotsky[10].

As revoluções anticoloniais africanas, em especial a argelina, lhe impactaram, ganharam sua simpatia e corroboraram sua visão da classe operária e do campesinato, bem como sua idéia de partido, ou melhor, de organização política.

Che sintetizara, a seu modo, estas experiências. Daí, sacara duas grande e, a nosso ver, equivocadas, conclusões:

1) É o campesinato pobre e não a classe operária o sujeito social da revolução. A revolução começará no campo e se estenderá até as cidades. Como disse Debray[11], sintetizando a teoria de Che, as cidades são os cemitérios dos revolucionários.

2) A organização revolucionária, por natureza, é a guerrilha. É nela que se deve concentrar a vanguarda, e sua tarefa fundamental, da guerrilha, é iniciar a guerra revolucionária.

Estas duas opiniões são contrárias ao marxismo clássico e, em nossa visão, a realidade já demonstrou estarem erradas. Este ponto de vista se apoiava, na época, numa série de revoluções anticoloniais, cuja mais importante foi a chinesa e da qual a cubana é parte. Essas revoluções chegaram a expropriar a burguesia e foram dirigidas por organizações militarizadas do tipo guerrilheiras. Elas tiveram como sujeito social o campesinato. A generalização dessas experiências e, principalmente, a linha política a que deu origem criou uma perigosa armadilha para a vanguarda da América Latina.

A linha guevarista, que dizia que na América Latina a tarefa central era organizar guerras de guerrilha a partir de focos guerrilheiros de pequeno tamanho, ignorou o papel da classe operária no continente e, sobretudo, o papel que essa classe e suas organizações já vinham cumprindo na Argentina, no Brasil e na Bolívia, para dar apenas três exemplos.

Essa política levou uma vanguarda – em sua maioria estudantil, mas que também tinha elementos do operariado – se distanciasse do trabalho político cotidiano junto à classe operária e se dirigisse, de forma heróica, mas equivocada, até as selvas e montanhas para organizar o exército guerrilheiro.

O efeito foi catastrófico para boa parte da esquerda latino-americana. Essa vanguarda se viu isolada e massacrada por uma guerra desigual contra os aparatos dos estados, numa febre militarista que atravessou a esquerda na década de 1970.

Assim, a vigorosa critica que a revolução cubana fez,na pratica, a política russa de coexistência pacifica e que levou a rupturas em todos os partidos comunistas
do continente foi em seguida esterilizada por uma concepção voluntarista e elitista, era a vontade de fazer a revolução o que levava a sua realização e não
as condições concretas da luta de classe e da correlação de força, e um pequeno grupo de bravos decididos podiam determinar o inicio da revolução, ou no jargão guevarista, não é necessário que todas as condições objetivas estejam maduras para que estale a revolução, o foco guerrilheiro pode acelerar este processo.

O que reivindicamos em Che
As indiscutíveis debilidades de Che não podem, no entanto, apagar seus méritos e seus acertos.

Che poderia ter vivido sua vida em Cuba e morrido como um bom burocrata. Optou por outro caminho. Crente absoluto na necessidade de levar a revolução até outras terras, abandonou seu cargo de ministro e sua cidadania cubana e partiu primeiro para o Congo e, depois, para a Bolívia.

Dedicou à luta contra o capitalismo e o imperialismo tudo o que tinha, defendeu energicamente a solidariedade ativa e militante aos povos em lutas, foi a vanguarda dessa solidariedade e pagou com a vida por ela.

Como a experiência e a história nos mostram, o desapego aos cargos e honrarias não tem sido uma das virtudes mais comuns e não foram poucos os que sucumbiram ou se adaptaram à burocracia dos estados.

NOTAS:
1.
O horário da morte de Che nunca foi definido com precisão. Usamos o que foi declarado em Che Guevara – Uma biografia, de Jon Lee Anderson.
2. Essa é a opinião, por exemplo, de Dariel Alarcon, o Benigno, um dos poucos sobreviventes da guerrilha boliviana.
3. Carta de Che a René Ramos Latour, em 14 de dezembro de 1957.
4. Mensagem à Tricontinental, Organização de Solidariedade com os Povos da África, Ásia e América Latina.
5. Mensagem à Tricontinental, Organização de Solidariedade com os Povos de África, Ásia e América Latina
6. José Carlos Mariátegui La Chira, nascido em Moquegua, no dia 14 de junho de 1894, e morto em Lima, em 16 de abril de 1930. Jornalista, literato, político, pensador e ensaísta peruano. É considerado um dos grandes teóricos do marxismo na América Latina. Sua obra mais conhecida, 7 ensaios de Interpretação da Realidade Peruana, converteu-se numa obra de consulta obrigatória para os socialistas latino-americanos. Mariátegui também buscou a construção de um Socialismo autenticamente peruano, que não fosse uma cópia do Socialismo europeu.
7. Mao Tsé-Tung nasceu em 26 de dezembro de 1893 e faleceu em 9 de setembro de 1976. Mao Tsé-Tung foi teórico marxista, político, revolucionário, poeta, soldado e governante comunista da República Popular da China.
8. Joseph Vissarionovich Djugashvili, mais conhecido por Joseph Stálin. Em russo, Stálin significa “homem de aço”. Nascido em Gori, a 18 de dezembro de 1878, e morto em Kunzevo, a 5 de março de 1953, foi o líder máximo da URSS de 1924 até 1953, período designado por estalinismo. Instaurou uma ditadura na URSS que marcou a burocratização ao estado operário até levar à derrota a vitoriosa Revolução de Outubro. Sob sua mão-de-ferro, milhares de pessoas morreram nos chamardos expurgos, principalemnte a velha-guarda do Partido Bolchevique.
9. Vladímir Ilitch Lenin nasceu em 10 de abril de 1870, em Simbirsk, e faleceu em 21 de janeiro de 1924, em Gorki, próximo de Moscou. Foi um revolucionário russo, responsável pela execução da Revolução Russa de 1917. Líder do Partido Comunista e primeiro presidente do Conselho dos Comissários do Povo da União Soviética, influenciou teoricamente os partidos comunistas de todo o mundo. As suas contribuições resultaram na criação de uma corrente teórica denominada leninismo. O seu pseudônimo Lênin tem origem no nome do rio Lena, pois esteve exilado numa região às margens desse rio.
10. Leon Trotsky nasceu em 7 de novembro de 1879 e morreu em 21 de agosto de 1940, no México. Foi um intelectual marxista e revolucionário bolchevique. Nos primeiros tempos da União Soviética desempenhou um importante papel político, primeiro como Comissário do Povo para os Negócios Estrangeiros, posteriormente como criador e comandante do Exército Vermelho e fundador e membro do Politburo do Partido Comunista da União Soviética. Afastado por Stálin do controle do partido, Trotsky foi expulso deste e exilado da União Soviética, refugiando-se no México, onde foi assassinado por Ramón Mercader, um agente de Stalin. As suas ideias políticas, expostas numa obra escrita de grande extensão, deram origem ao trotskismo, corrente de fundamental importância para o marxismo nos dias de hoje.
11. Régis Debray, filósofo e escritor francês, nasceu em 2 de setembro de 1940 em Paris, proveniente de uma família burguesa. Doutorou-se na Escola Normal Superior, onde mais tarde daria aulas. Foi seguidor do marxista Louis Althusser, alem de amigo de Fidel Castro e Ernesto Che Guevara. Em 1967 escreveu sua primeira obra, chamada Revolução na revolução. Foi membro do Partido Socialista Francês, do qual se afastou depois de ter diferenças ideológicas com ex-presidente Mitterrand.