Ao resgatar o papel de um jornalista na luta contra a ultradireita norte-americana, na década de 50, Boa noite, boa sorte faz uma instigante reflexão sobre o papel do jornalismo na sociedadeEm tempos em que amplos setores do jornalismo mantém uma pouco disfarçada submissão aos interesses dos poderosos (sejam eles os governos de turno ou os representantes diretos do capital), Boa noite, boa sorte – produzido e dirigido por George Clooney – não deixa de ser uma boa surpresa.

O filme refaz a história do comentarista de televisão Edward Murrow (David Strathairn) e seu enfrentamento com o senador republicano Joseph McCarthy, na década de 1950. Como se sabe, McCarthy foi responsável por uma inescrupulosa operação de “caça às bruxas” (comunistas, homossexuais e outros potenciais “opositores” do sistema norte-americano) que levou centenas aos tribunais e às prisões, além de provocar o exílio, ou até mesmo o suicídio, de uns tantos outros.

Ao resgatar esta história, Clooney – que ficou famoso como o “gal㔠da série Plantão Médico e tem se revelado uma figura no mínimo interessante na indústria cinematográfica norte-americana, envolvendo-se em produções que fogem da mesmice de Hollywood (vide abaixo) – fez uma espécie de “manifesto” em defesa da independência do jornalismo frente aos poderes constituídos.

Algo há muito esquecido num país como os EUA onde, por exemplo, jornalistas foram cobrir a invasão do Iraque como parte integrante das Forças Armadas e, há tempos, em nome dos interesses da “democracia”, as muitas barbáries cometidas por Bush e seus asseclas são minimizadas (quando não exaltadas) pela imprensa. Uma lamentável prática que não difere em muito do que se passa mundo afora, inclusive no Brasil.

Beleza estética a serviço da verdade
A anos-luz da estética que atualmente domina o cinema de Hollywood (marcado pelo clima alucinante e a falta de espaços para a reflexão), o filme foi realizado em preto-e-branco, com um caráter abertamente documental, reforçado por uma de suas mais belas estratégias: o uso de uma fantástica trilha sonora jazzística (interpretada pela “diva” Diana Reeves), que surge intercalando (e comentando) os principais episódios da história, contribuindo em muito para o clima melancólico de um período marcado pela perseguição e pela injustiça.

Outro curioso recurso do filme é o fato de que o único personagem que não é representado por um ator seja exatamente o famigerado senador republicano, que surge apenas em cenas reais, durante os inúmeros tribunais inquisitoriais que ele dirigiu.

O recado deixado por Clooney é vigoroso. Dotado de uma retórica ao mesmo tempo agressiva e tacanha (assim como seu herdeiro Bush), McCarthy é um patético personagem de si mesmo. Um sujeito que deu a si próprio o lamentável papel de algoz das mais mínimas liberdades democráticas e criou um verdadeiro teatro (senão um circo) para atingir seus objetivos, conquistando, assim, ele próprio, o direito exclusivo de representar a si mesmo.

O filme defende a tese de que a farsa interpretada por McCarthy começou a ser desmascarada por Murrow quando ele decidiu investigar o que se escondia por trás da prisão de um piloto da Força Aérea, Milo Radulovich, acusado de ser espião comunista, e, para tal, desafiou publicamente o senador, o qual, por sua vez, não poupou esforços para fazer do próprio jornalista e sua equipe mais uma de suas vítimas.

Mesmo pressionado pela direção da rede de TV CBS e, particularmente pelo seu principal patrocinador – a Alcoa, que fornecia material para as Forças Armadas – Murrow (que acabou, de fato, perdendo o emprego) não se curvou em função da crença de que o “povo não é burro”, de que a TV, que estava praticamente nascendo naquela época, “poderia ser um veículo utilizado para iluminar e inspirar” e de que “a história é o que fazemos dela”.

Exagerada ou não, a tese defendida por Clooney serve para fazer de seu belo filme um necessário comentário sobre o papel da mídia na realidade. Um contraponto necessário para uma época em que as telas são invadidas por inexpressivos talk-shows repletos de futilidades; apresentadores chapa-branca à frente de noticiários oficialescos e por uma concepção de TV em que todos os seus recursos estéticos estão colocados a serviço da manipulação e idiotização do público.

Quando ainda não “éramos” Homer Simpsons
Recentemente, o professor Laurindo Lalo Leal Filho revelou, em matéria na revista Carta Capital, que William Bonner, apresentador e editor do Jornal Nacional, costuma referir-se aos telespectadores como “Homer Simpson”, em referência ao nada esperto e totalmente desligado personagem da série de TV.

Segundo Bonner, o telespectador médio, assim como o personagem, é incapaz “de entender notícias complexas” e é isto que determina que tipo de notícia deve ir ao ar no principal telejornal do país. Ou seja, só é mostrado aquilo que Bonner e seus chefes acreditam que seja “compreensível”.

Uma prática cuja lógica é a oposta daquela mostrada no filme, que ao fazer uma espetacular reprodução do que eram os bastidores da TV traça também um interessante comentário sobre as profundas mudanças que ocorreram neste meio de comunicação nos últimos 50 anos.

O “romantismo” daquela época (inegavelmente exagerado, é preciso que se diga), em que tudo era feito ao vivo, com recursos mambembes e empolgado envolvimento de seus profissionais, serve como contraponto para os dias de hoje, quando repórteres e âncoras seguem roteiros pré-definidos pelos manda-chuvas das emissoras e seus patrocinadores, pautando as notícias de acordo com interesses que pouco têm a ver com as necessidades dos espectadores.

Neste sentido, a escolha de Murrow (1908-1965) como personagem central na luta contra o macarthismo também não é casual. Tendo se destacado, no rádio, nas décadas de 30 e 40, como um apaixonado porta-voz da luta contra o fascismo e o nazismo (ele cobriu diretamente do front britânico), Murrow surge como uma espécie de metáfora para um tipo de televisão que, há muito, se perdeu e, certamente, só será resgatada quando for liberada dos interesses do Capital e seus representantes.

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