O papel da esquerda deve ser o de ala crítica do governo com o objetivo de empurrá-lo para esquerda? Ou a defesa de um projeto socialista e revolucionário exige a ruptura com o governo Lula?

O governo Lula está aprofundando a política econômica aplicada durante os 8 anos de FHC/FMI. Esta não é uma opinião exclusiva do PSTU. É um diagnóstico de grande parte das correntes da esquerda do PT e também das direções de movimentos sociais que se reivindicam socialistas, como a do MST.

Apesar disso, há uma grande polêmica acerca do caráter do governo Lula e, mais importante, sobre as tarefas da esquerda diante desse governo.

Ainda que com diferenças, esses companheiros coincidem num ponto: consideram-se parte do campo governista. Embora sejam críticos às medidas e aos rumos do governo, se propõem a ser sua ala crítica. Rejeitam um papel de oposição de esquerda a ele. Para estes companheiros, o PSTU seria “sectário” porque se opõe ao governo.
Antes que nada, esclarecemos que não consideramos todo o espectro que se reivindica de esquerda e socialista por igual. Reconhecemos que há diferenças dentro deste campo. Há setores e correntes que privilegiam a ação direta e defendem um projeto de ruptura. Há outros que defendem reformas nos limites da ordem atual, priorizam de fato a ação institucional e, inclusive, participam diretamente do governo.
Ambos justificam sua posição com base em diferentes argumentos. Buscaremos polemizar com eles nestas páginas.

Mas, buscamos dialogar sobretudo com os companheiros com os quais estamos juntos nas lutas e a quem fazemos um chamado para construirmos juntos uma alternativa de esquerda no país. Pensamos que é nossa obrigação polemizar, de modo fraternal, com aquilo que opinamos ser uma posição equivocada.

Os argumentos do apoio crítico

Os companheiros do MST e do Consulta Popular, por exemplo, que privilegiam a ação direta, afirmam que o governo é, em princípio, aliado na luta contra a Alca, o latifúndio, etc.

O governo Lula, na visão dos companheiros, estaria em disputa. Avaliam que se as lutas se chocarem com o governo, cairão no isolamento e farão o jogo da direita, porque empurrarão o governo para os braços do imperialismo. Então, a esquerda deve estimular a mobilização social, mas não direcioná-la contra o governo. O objetivo deve ser o de “ajudar o governo a realizar mudanças” e empurrá-lo para a esquerda.
Nessa mesma lógica, a esquerda petista, ou melhor, a parte da esquerda que a mídia tem chamado de “radical”, diz ser contra a política econômica, mas que apóia o governo. Esses companheiros alegam que, como a maioria dos trabalhadores apóia o governo, eles também devem apoiá-lo porque seria um erro se “isolar” das massas.
Outros ainda argumentam que é preciso paciência, porque não haveria correlação de forças para a ruptura com o FMI e a Alca. Para estes, deve-se criticar as medidas que levam ao aprofundamento do projeto neoliberal, mas não se pode exigir do governo que pilote uma ruptura do modelo.

O argumento final é o de que se Lula for derrotado toda a esquerda e a classe trabalhadora seriam derrotadas junto com ele. Por isso é preciso lutar para que o governo dê certo.

Consideramos que estes companheiros cometem um grave erro em colocar-se numa posição de apoio crítico ao governo. Na nossa opinião, esta postura implica numa lógica que, longe de cumprir o papel de “empurrar o governo para a esquerda”, acabará empurrando o movimento para a direita.

Não é possível empurrar o governo para a esquerda

Esse governo não está em disputa e não é possível empurrá-lo para a esquerda por uma razão de classe. O governo, como instituição, faz parte do Estado burguês e se articula com outras instituições – Parlamento, Forças Armadas, etc. – para compor um regime de manutenção da ordem vigente. No caso atual, ainda há o agravante de que a ordem estabelecida tem cada dia mais os contornos de uma “democracia colonial”: é “blindada” pelo imperialismo e o FMI, que, de fato, definem as ações do governo.

O PT se propõe a governar nos limites dessa ordem e colocou no governo uma considerável representação da classe dominante. Do governo atual participam expoentes da burguesia como Meirelles (BankBoston), Furlan (Fiesp), Rodrigues (latifúndio) e outros do mesmo naipe. Lula governa em aliança com partidos burgueses como o PL, PMDB e PPB, nos marcos do acordo com o FMI. Não é possível empurrar para a esquerda um governo assim.

Para ser um governo passível de ser empurrado para a esquerda de modo a governar para os trabalhadores, teria que ser derrotado na sua forma e conteúdo atual: ser outro governo. Teria que romper as alianças com a burguesia, romper com o FMI e a Alca e estar disposto a governar apoiado na mobilização dos trabalhadores e suas organizações. Enfim, teria que deixar de ser um governo burguês, para converter-se num governo de ruptura com a ordem burguesa e imperialista.

Isso significa que este governo é idêntico ao governo FHC? Não. Num sentido é diferente. A diferença é que na gestão do Estado burguês, temos a participação de um partido operário, como o PT. Isso gera confusão e ilusões nas massas, que acreditam estar diante de um governo seu. Nesse sentido, as táticas que os revolucionários devem utilizar perante tal governo não são as mesmas que sob um governo burguês normal. Porém, a estratégia não muda e a tarefa não é apoiá-lo ou sustentá-lo, mesmo que criticamente, mas derrotá-lo. Porque apoiá-lo significará ajudá-lo a governar contra os trabalhadores e a manter a ordem estabelecida.

Dizer a verdade ao povo ou fazer seguidismo ao senso comum?

O governo tem pedido paciência aos trabalhadores, dizendo que não é possível mudar as coisas de um dia para outro. A maioria dos trabalhadores, porque confia no PT e em Lula, por enquanto tem engolido essa história. O paradoxo é que o governo tem atendido às pressas aos banqueiros e tomado medidas que aprofundam os planos neoliberais.

Uma das condições fundamentais para que a crise atual possa ser resolvida sob a ótica da burguesia é que a classe trabalhadora aceite sem reagir o “remédio amargo” do FMI e da Alca.

O governo usa da sua popularidade para acelerar e concluir as reformas de FHC, negociar a Alca e aplicar a agenda que consta da Carta de Intenções com o FMI.
Nesta situação, os revolucionários não podem temer “isolar-se das massas”. Pelo contrário, é preciso enfrentar o senso comum. Os trabalhadores não devem ter paciência alguma. E os revolucionários devem explicar essa verdade ao povo, mesmo que por algum tempo fiquem em minoria. Seguir o senso comum e ficar atrelado ao governo significa ajudar a construir derrotas.

“Medidas progressivas” e negativas ou um projeto global?

Reproduzindo o senso comum, muitos acham que o governo é “contraditório”: tem medidas progressivas e regressivas.

Todo governo – como qualquer coisa na vida – tem contradições, mas também como tudo é uma totalidade: a não ser em um momento de crise aguda quando uma totalidade se destrói e surge outra. No caso do governo atual, aquilo que o determina são os interesses da burguesia e um projeto de aprofundamento do modelo vigente.
Nesse sentido, medidas aparentemente progressivas, como o “Fome Zero”, por exemplo, estão a serviço de avançar nas reformas estruturais. Não podemos então nos comportar como os que apóiam as medidas progressivas e criticam as negativas, mas como quem denuncia um projeto global e luta contra ele.

Não se trata, evidentemente, de não fazer uso de tais medidas. Mas não se pode dourá-las como uma dádiva do governo. Deve-se exigir mais e denunciar seus limites.

Ruptura e correlação de forças

Há setores que dizem ser esse o “governo possível”. Que não podemos exigir de Lula que rompa com o FMI e a Alca, porque não haveria correlação de forças para tanto.
É curiosa essa posição. Pois, se estas bandeiras estavam corretas sob o governo FHC, como podem estar erradas sob o governo Lula? A correlação de forças hoje é superior à que existia antes.

Esses companheiros se apóiam na inexistência, por enquanto, de um ascenso generalizado das lutas. Mas poupam o maior obstáculo para que se dê um salto nas mobilizações da classe: o governo e o PT, que é a direção majoritária do movimento.
Se Lula fizesse um pronunciamento explicando que o FMI quer que ele pague – com a fome do povo – uma dívida externa questionada, que financiou as bombas contra o Iraque, e chamasse o povo às ruas para apoiá-lo numa ruptura, temos certeza que milhões se moveriam. O “mercado” retaliaria? Sim. Mas o governo, apoiado na mobilização da maioria do povo, tem como derrotar a burguesia e o imperialismo.
Mas o problema aqui não é de ritmo. Ocorre que o governo não quer ruptura e nem que se criem condições para tal. Lula e o PT não querem mobilização, querem impedí-la.

Esquerda será derrotada se não superar governo Lula

O argumento final é que o governo tem que dar certo, porque senão toda a esquerda será derrotada. Mas se o governo atual e o projeto do FMI que ele vem aplicando der certo, a classe trabalhadora será derrotada e a burguesia vitoriosa.

Há aqueles que esperam por um Plano B. Lindberg Farias, por exemplo, declarou ao Jornal do Brasil: “Há como construir um outro caminho sem criar uma grande crise de confiança no mercado. O nosso desafio, o desafio da esquerda do PT, é nos posicionar para influenciar os rumos do governo (…). Se esse governo der errado, infelizmente, é uma derrota de toda a esquerda”.(06/04/2003)

Não há Plano B e não é possível um Plano B sem ruptura. Lula e o PT não querem quebrar os ovos e nem fazer omeletes. Já Lindberg quer fazer omeletes sem quebrar ovos.

Por quê a esquerda sofreria uma derrota se os trabalhadores derrotarem o governo nas reformas do FMI que ele quer fazer? A esquerda só será derrotada se a classe trabalhadora o for. E a classe trabalhadora será certamente derrotada se não enfrentar o governo. O desafio da esquerda é criar as condições para um governo verdadeiramente dos trabalhadores e construir uma alternativa socialista e revolucionária a esse governo.

Post author Mariúcha Fontana,
da redação
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