A Assembléia Constituinte é um grande tema de debate público na Bolívia. Existe uma grande expectativa popular de transformar o país mediante a Constituinte, que será convocada para o dia 6 de agosto. Mas afinal, o que está em jogo com a Assembléia Constituinte?

Um pouco de história…
A Assembléia Constituinte foi levantada pela primeira vez como exigência popular em 1990, pelos povos indígenas bolivianos, em sua grande marcha até a cidade de La Paz, “por Dignidade e Território”. A bandeira “Assembléia Constituinte, já!” expressava toda a esperança dos setores mais oprimidos: “Queremos refundar o país, para não sermos mais excluídos, para impedir o saque das multinacionais e ter o controle sobre nossos recursos naturais. Queremos participar plenamente deste processo”, diziam.

Em outubro de 2003, houve uma revolução social que exigia fundamentalmente a nacionalização das reservas de gás e petróleo da Bolívia. A mobilização conseguiu expulsar o presidente Sánchez de Losada, responsável direto pela entrega de todas as reservas do país.

O novo presidente, Carlos Mesa, propôs três medidas “democráticas” para controlar o processo revolucionário: um referendo sobre o gás, a mudança da Lei de Hidrocarbonetos (derivados de gás e petróleo) e o chamado de uma Assembléia Constituinte. Mas o referendo foi uma armadilha, servindo apenas para confirmar a política de exportação dos hidrocarbonetos.

A mudança da lei de hidrocarbonetos não garantiu a nacionalização e a Assembléia Constituinte nunca foi convocada. Em junho de 2005, as organizações sociais voltaram a se levantar em uma nova crise revolucionária que provocou a renúncia de Carlos Mesa.

Desta vez, para sair da crise foram propostas eleições gerais para dezembro de 2005 e, novamente, a Assembléia Constituinte. Manobras políticas, entretanto, adiaram a Constituinte para depois das eleições. Em uma vitória popular distorcida contra a direita tradicional e contra o modelo neoliberal que impera na Bolívia desde 1985, o Movimiento al Socialismo (MAS) ganhou as eleições com 54 % dos votos e Evo Morales foi eleito o novo presidente do país. Uma de suas promessas imediatas era a realização da Assembléia Constituinte, com representação de todos os “historicamente oprimidos”.

Assim, a Assembléia Constituinte voltou a ser uma exigência dos setores sociais mais pobres, que acreditam poder mudar as relações de opressão e exploração a que estão submetidos.
A burguesia e os representantes das multinacionais, por sua vez, representados pelo Comitê Cívico de Santa Cruz (região do país rica em gás e petróleo) exigiam a “autonomia departamental”, quer dizer que cada departamento (estado) do país pudesse controlar e administrar os recursos naturais e financeiros de sua região.

A Lei de Assembléia Constituinte
Em 4 de março de 2006, foi aprovada a lei de convocação da Assembléia Constituinte, proposta pelo MAS. A lei prevê a eleição de 255 constituintes que, entre 6 meses a um ano, terão que reformular e redigir uma nova Constituição. O texto terá que ser aprovado por dois terços dos representantes.

Contudo, diferente do que exigiam as organizações sociais, a Assembléia Constituinte não será soberana, ou seja, não terá o poder de mudar tudo, por exemplo, “não poderá interferir no trabalho dos poderes constituídos” (art. 3). Quer dizer, o governo continuará com seu trabalho, o Parlamento continuará fazendo leis contra os interesses dos povos, a Justiça continuará com sua corrupção de sempre. Além disso, a Constituinte não poderá opor-se e recusar a autonomia departamental, só poderá regulamentá-la.

O referendo autônomo vinculante
Junto a Constituinte, foi aprovada a realização de um referendo nacional sobre a autonomia departamental. Em 2 de julho – um mês antes do início da Constituinte – esse referendo vai definir se haverá ou não autonomia nos departamentos.

A pergunta do referendo é complicada e cheira a uma armadilha. Diz, por exemplo, que se um departamento vota majoritariamente a favor da autonomia (com 51% ou mais dos votos), a autonomia será obrigatoriamente aplicada nesse departamento, mesmo se outras regiões do país estiverem contra.

Isso significa uma vergonhosa capitulação e submissão do governo do MAS aos interesses dos poderosos grupos do departamento de Santa Cruz. Um referendo vinculante como esse significa que a Assembléia Constituinte terá que acatar o seu resultado e só poderá regulamentar o formato que terá a autonomia departamental.

O que se discutirá na Constituinte?
O governo de Morales quer transformar a Assembléia Constituinte numa simples reforma da Constituição, sem fazer as verdadeiras mudanças que exige a população. Para isso, buscará ter a maioria dos dois terços dos representantes da Constituinte e ter seu controle.

Até o momento, não houve muito debate sobre o conteúdo das propostas.
Mas, sem dúvida, os temas centrais que foram levantados durante as duas insurreições e que devem ser discutidos são: garantir a nacionalização dos hidrocarbonetos, a expulsão das multinacionais sem indenização, a imediata expropriação das terras dos latifundiários e sua redistribuição aos camponeses sem terras.

A covardia do MAS frente à nacionalização
Nestes dois meses de governo, Evo demonstrou sua recusa em implementar qualquer tipo de nacionalização, o que ficou explícito com o conflito da LAB (Linhas Aéreas Bolivianas). A empresa aérea, que era estatal, foi vendida em 1996 a preço de banana à VASP. Em 2001, contudo, as ações da VASP foram repassadas a um empresário boliviano, o Sr. Asbun, que nos últimos quatro anos terminou de arruinar a empresa e não pagou suas obrigações sociais com os trabalhadores.

O conflito pelos salários atrasados explodiu em fevereiro. Todavia, até hoje o MAS se recusa a renacionalizar a companhia, alegando sua enorme dívida. Tampouco quer pôr na cadeia os empresários responsáveis pela quebradeira da empresa. Não lhe interessa ajudar os 2.200 trabalhadores da LAB que poderão perder seus empregos.

Esse pequeno exemplo nos apresenta uma questão crucial: como acreditar nas promessas do MAS sobre a nacionalização dos hidrocarbonetos? Só a mobilização de todos os setores sociais, como em outubro de 2003 e junho de 2005, poderá impor esta tarefa à Assembléia Constituinte.

Post author Candy vargas, de La Paz
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