O Opinião Socialista dá início neste número à uma avaliação das Reformas que o futuro governo Lula está propondo. Começamos pela proposta de Reforma da Previdência (tema que seguiremos debatendo nos próximos números), entrevistando a advogada Marilinda da Conceição Marques Fernandes, formada em Coimbra, especialista em Previdência, que vive e atua em Porto Alegre, onde assessora o Sindicato dos Previdenciários

Opinião Socialista – O governo Lula vem afirmando que tem como prioridade aprovar no próximo ano a Reforma da Previdência. Embora o programa de governo do PT seja vago quanto ao conteúdo dessa reforma, há um extenso trabalho de Luís Gushiken –membro do futuro governo petista – sobre o assunto. A proposta de Reforma do PT é similar à do governo FHC?

Marilinda – A forma como está abordada a questão previdenciária no programa de governo do PT é efetivamente vaga, mas bastante elucidativa quanto às linhas que seguirá o novo governo. Os pressupostos justificativos da Reforma que o governo Lula propõe são basicamente os mesmos defendidos pelo governo FHC. Isto é, coloca ênfase num suposto “déficit” da Previdência Social, carregando nos números, apontando para algo na ordem dos R$16 bilhões. Chama a atenção para a “disparidade” de regimes previdenciários , colocando o regime estatutário dos servidores públicos como um campo de “manifesta desigualdade” e de grande “ peso” para a sociedade já que segundo os seus números tal “déficit “seria de aproximadamente “R$ 50 bilhões”, “representando 4,1% do PIB”. Partindo da mesma e falsa base de FHC – alegando um falso déficit – as propostas defendidas pelo futuro governo do PT são muito parecidas com as de FHC. Ambas têm como objetivo ceder às pressões do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial de “contenção do déficit público”, ajustamento das contas da previdência dos servidores públicos e do Regime Geral de Previdência e criar mais uma nova frente de investimento para o capital financeiro internacional via privatização da Previdência Social. Em nenhum momento vislumbramos qualquer traço ou pretensão do futuro governo em reforçar o caráter público de um instrumento tão importante como é o caso da Previdência Social para a redistribuição de renda.

OS – A imprensa tem noticiado que a proposta do PT envolveria um sistema único de previdência publica, com um teto a ser discutido ( entre 10 e 20 salários mínimos) e se apoiaria em três pilares: Estado, fundos de pensão e previdência complementar. Tal proposta conta com o aplauso de empresários e banqueiros e parece querer transferir do Estado para fundos de pensão a arrecadação previdenciária. Sob o nome de “ público não estatal”, isso será a privatização da previdência?

Marilinda – As linhas mestras da proposta do PT de Reforma da Previdência só podem ser interpretadas como um caminho de privatização parcial da mesma. Ficando de fato a Previdência básica reduzida a um teto, hoje de pouco mais de 7 salários mínimos. E não vemos, nessa proposta, a possibilidade desse teto aumentar , uma vez que então não faria sentido o futuro Governo entrar num confronto como o que pretende com os servidores públicos e dar tanta ênfase aos fundos de pensão. Quanto à maquiagem do público não estatal, até prova em contrário só se tem comprovado como uma figura de adoçamento da opinião pública, na via de privatização e do estabelecimento do Estado mínimo.

OS – Segundo Palocci – futuro ministro da Fazenda de Lula – esta reforma é essencial para ajustar as contas públicas. Os sindicatos e fiscais da receita e da previdência, entretanto, denunciam que o alegado déficit da Previdência não existe. O que existe, segundo estas entidades, é um desvio da ordem de R$ 30 bilhões por ano da arrecadação da seguridade social para o pagamento de juros e parcelas da divida pública. Qual é a verdade sobre os números da previdência?

Marilinda – Como todos os números, os da Previdência, podem ser manipulados segundo estratégias, vontade política e compromissos assumidos e é neste aspecto particular que a nossa preocupação se concentra. Pois a leitura e/ou a manipulação dos números como estamos vendo na proposta do PT, vai numa linha em tudo idêntica à do governo FHC. É sabido que em matéria de fluxo de entradas e saídas da Previdência Social têm sido lançadas como despesas todos os gastos com benefícios, inclusive gastos com benefícios assistenciais que deveriam ser concedidos com recursos do orçamento fiscal. Por outro lado, são consideradas receitas somente as contribuições sobre a folha de salários, expurgando-se as demais contribuições sociais (CPMF, COFINS, CSLL, etc.), que, constitucionalmente, são fontes de custeio também da Previdência Social.
Segundo estudo levado a cabo pelo SINDFISCO, se confrontarmos todas as receitas da Seguridade Social com as despesas gerais com o atendimento à população, o que acontece ao invés do déficit, é um superávit na ordem dos R$ 31,46 bilhões. Ocorre que o governo tem desvinculado tais recursos da seguridade social e os tem utilizado para o pagamento da dívida interna, o que representou aproximadamente 2/3 do superávit primário conseguido em todas as esferas de governo em 2001.
Na análise das contas da Previdência não têm sido considerados também os saldos positivos obtidos entre 1945 e 1980 que foram desviados para a implantação de obras de infra-estrutura como a construção de Brasilia, ponte Rio Niterói, entre outras. Caso o fossem, o fundo da previdência teria hoje algo em torno de R$ 600 bilhões.
Ademais não se contabilizam as isenções dadas a instituições de “caráter filantrópico” – um rombo de R$ 2 bilhões – e não se traz à tona o total devido em razão da sonegação de inúmeras empresas, que afetam o custeio da Previdência. Como se vê, falar em déficit, mas não esmiuçar o mesmo, é fraudar a discussão em torno do fortalecimento de uma Previdência Publica e conduzir a sociedade à inevitabilidade da privatização. A Previdência é superavitária.

OS – A mídia voltou à carga contra os “privilegiados” do serviço público e contra a aposentadoria integral, responsabilizando-os pelo “déficit” da Previdência. Dados dos servidores contradizem tal déficit: afirmam que suas contribuições asseguram a aposentadoria integral. Qual é a verdade sobre tais números e o que significará essa Reforma para os servidores públicos?

Marilinda – Antes de mais cabe salientar que a necessidade de constituição de um regime único , básico e mínimo de previdência não é uma necessidade construída no quadro da justiça igualitária e social para todos, é antes uma exigência do capital financeiro internacional no sentido de operar globalmente com regimes transnacionais e unidimensionais de previdência que assegurem a implantação e expansão de novas frentes de investimento e exploração.
Logo a discussão em torno de privilegiados está viciada de partida. Os direitos que hoje auferem os servidores públicos – estabilidade e proventos integrais na aposentadoria – só são “privilégios” por força da repetição até à exaustão na mídia, pois na essência são direitos construídos.
O Presidente eleito – Lula – sempre defendeu que o regime do servidor público deveria ser o regime de todos os demais trabalhadores e não o contrário. Agora, mudou.
Necessário se faz destacar que todo o servidor contribui para o benefício sobre o total de sua remuneração e não como o do regime geral que só contribui com 11% sobre o teto da Previdência.
Entendemos que o servidor público brasileiro deverá seguir o exemplo dos servidores franceses que não tem ao longo dos últimos anos hesitado em ir para as ruas na defesa de seus direitos.
Para os servidores , se ocorrer tal reforma significará a perda de direitos que são legítimos a qualquer trabalhador: manter o mesmo padrão que teve durante a sua vida ativa e para o qual contribuiu na medida e no valor que lhe foram impostos.

OS – O PT parece querer repetir a estratégia de FHC de dividir os trabalhadores, de jogar os trabalhadores informais contra os formais e os do setor privado contra os do setor público. A proposta de Gushiken vai trazer benefícios reais aos trabalhadores de baixa renda?

Marilinda – Em tempos da soberania do econômico em detrimento do social, vemos com frequência, em matéria de manipulação da opinião pública, a prática da divisão para reinar. Em nosso entender o projeto de Gushiken não é um projeto preocupado com uma Previdência básica forte, que assegure o padrão de vida do trabalhador de renda média e eleve o padrão do de baixa renda.
É um projeto que trabalha com a implementação da Previdência Complementar, ou seja com o deslocamento de parte dos recursos dos segurados de renda mais elevada – ou acima de R$ 1.500,00 – para o setor privado. Não vemos nele preocupação de fundo com os trabalhadores de baixa renda, os quais terão que necessariamente ficar a cargo da Previdência Social básica, sem os recursos dos que têm renda mais elevada.

OS – Os sindicatos dos fiscais da receita federal denunciam que o aviltamento das aposentadorias empurra os contribuintes para a previdência privada. Segundo eles, o teto das aposentadorias era de 20 minimos e hoje está em 7 ou 8; em 1994, por sua vez, 32% dos aposentados recebiam só um salário minimo e hoje quase 66% recebem apenas esse valor. Por outro lado, a flexibilização de direitos trabalhistas e dos salários e o aumento da informalidade também vão diminuindo as receitas da seguridade. Os governos e empresários, entretanto, usam como argumento os mais de 50% da PEA (População Economicamente Ativa) que estão na informalidade – para defender rebaixar direitos do restante. Como trazer para a formalidade e assegruar direitos para todos, nivelando – os por cima e não por baixo?

Marilinda – Na verdade nos defrontamos em matéria previdenciária com uma cultura empresarial que não tem o menor respeito para com a dignidade humana, querendo impor a volta de condições próximas às vividas pelos trabalhadores no século dezenove: na qual o trabalhador ficava doente, mutilado ou velho e logo em seu lugar tinha um exército de deseperados querendo a sua vaga.
Por outro lado, ao transformar o direito a uma previdência digna em mercadoria, se remeteu o mesmo para o quadro do individual e não mais para uma questão coletiva. Só será possível trazer o trabalhador informal para a formalidade – com direitos – se for reforçada uma Previdência Pública, com um teto de contribuição e benefício dignos e com formas de reajuste que respeitem o custeio feito durante a vida ativa do segurado. Em suma só teremos uma Previdência social se ela for um instrumento de política Social e não uma via de ampliação de investimento do capital financeiro privado.

OS – Como unir todos os trabalhadores – com e sem direitos, privados e públicos e também aposentados – na defesa de uma Seguridade Social e de uma Previdência Pública, estatal e digna para todos?

Marilinda – Entendemos que tal só pode ser levado a cabo se colocarmos de novo a Seguridade Social no patamar dos Direitos, das questões de ordem pública e coletiva.
Por outro lado, levando a cabo uma discussão sobre a Previdência não nos marcos dos números apresentados de forma manipulada, mas desmascarando o falso déficit e fazendo com que a sociedade compreenda a Previdência Social como uma questão de fundo social, sob pena da sociedade brasileira se defrontar com campanhas contra a fome, contra a velhice, contra a indigência, etc.

OS – Que postura devem assumir os sindicatos e movimentos sociais diante da proposta de Reforma do PT?

Marilinda – Sabemos que se vive um momento de esperança com a vitória de Lula, mas isso não pode significar uma paralisia diante de propostas que ontem eram combatidas por serem vias de perda de direitos, de empobrecimento e fragilização da sociedade. Há que colocar com ousadia as verdadeiras propostas de consolidação e conquista de direitos e de instrumentos de defesa de um projeto onde o homem não se sinta de novo entregue a si mesmo , vitima da ruptura do contrato social.
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