Embora traga novidades em relação ao aborto, a proposta representa enormes retrocessos em questões como violência sexual, violência doméstica e exploração sexualRecentemente foi encaminhada ao Senado Federal uma proposta, elaborada por uma comissão de juristas nomeada pelo próprio Senado, de reforma do Código Penal, que, como se sabe, data de 1940. A proposta de reforma traz novidades importantes, como por exemplo, a autorização para interrupção da gravidez até a 12ª semana de gestação, desde que um médico ou psicólogo ateste que a mulher não terá condições de arcar com a maternidade. Embora extremamente limitada do ponto de vista das revindicações das mulheres, não há como negar que representa um avanço em relação à legislação atual.

Evidentemente que, tal como acontece sempre quando o assunto envolve questões relativas aos direitos reprodutivos, as bancadas religiosas e grupos conservadores já estão se mobilizando e discutindo estratégias de incidência para barrar artigos dessa natureza. Entretanto, muito mais grave do que a intervenção das bancadas conservadoras nesse sentido é o que representa a própria proposta de reforma em diversos outros aspectos relacionados aos direitos das mulheres. De forma geral, a proposta da comissão traz retrocessos significativos em questões como violência sexual, doméstica, exploração sexual, entre outras. Além disso, a principal diretriz da reforma é tornar o Código Penal central no que refere a legislações punitivas e diminuir ao máximo as legislações consideradas extravagantes, dentre elas a Lei Maria da Penha.

Dessa forma, entre outras coisas, a reforma prevê para o crime de lesão corporal, a substituição da pena de prisão por medidas alternativas. Como não é mencionada a proibição da substituição de pena em casos de violência doméstica, a reforma poderá significar que também para esses casos a prisão possa ser substituída por penas mais leves como a prestação de serviços à comunidade ou distribuição de cestas de alimentos, o que representará um importante retrocesso em relação à Lei Maria da Penha. Essa medida faz parte de um processo que pretende colocar a violência doméstica no rol de crimes de menor potencial ofensivo, atribuindo competência aos juizados especiais civis e criminais para julgar ações dessa natureza, conforme proposta de reforma do Código de Processo Penal. Importante salientar que os juizados especiais têm como uma de suas principais características a mediação para a solução dos processos, o que seria um absurdo nos casos que envolvem a violência contra a mulher. Além disso, se a alteração for aprovada, outras medidas cautelares como a prisão preventiva também correm sérios riscos.

Outra alteração prevista na reforma é a extinção do parágrafo 9º do artigo 129 do atual Código Penal, cujo texto foi incluído pela Lei Maria da Penha e que prevê uma qualificadora e, consequentemente o aumento da pena, em caso de violência doméstica. Quanto ao crime de ameaça, voltaria a necessitar de representação, ou seja, a mulher teria de entrar com uma queixa-crime podendo retirá-la a qualquer momento. Por outro lado, como o novo código não menciona o crime de feminicídio, apenas incluindo como qualificadora ao crime de homicídio aquele realizado “em contexto de violência doméstica ou familiar”, isso poderá gerar dúvidas sobre sua aplicabilidade em casos onde não há vivência em contexto familiar, como em casos onde o namorado mata a namorada, por exemplo. Além disso, o crime de sequestro realizado por cônjuge é desconsiderado na proposta de reforma.

O texto prevê ainda a redução de 14 para 12 anos, da idade para os casos de estupro presumido e a exclusão do estupro mediante fraude, isto é, o estupro realizado por meio de drogas ou outras formas que impossibilitem o consentimento da mulher. A proposta de reforma desdobra as condutas de ataque sexual em duas, o estupro, que seria apenas o ato sexual vaginal, anal ou oral praticado mediante violência ou grave ameaça, punido com 6 a 10 anos de prisão, e as outras condutas de caráter sexual menos agressivas que passariam a ser chamadas de molestação sexual, um crime novo, que significa constranger alguém mediante violência ou grave ameaça à prática de ato libidinoso mas diverso do estupro. Assim, segundo o texto, ataques em ônibus ou trens lotados não mais seriam chamados de estupro, mas de molestação sexual, e teriam uma pena de 2 a 6 anos de prisão, isto é, menor que a do estupro. Por outro lado, também não é mencionado o estupro coletivo, seja aquele realizado com a participação de várias pessoas ou por um agente em várias mulheres e nem o estupro corretivo, realizado com o objetivo de “curar” a homossexualidade feminina.

O código cria também um novo tipo penal chamado “intimidação vexatória” que coloca sob a mesma tutela crimes como o assédio sexual e discriminação racial, deixando-os para serem analisados criminalmente em função da subjetividade da pessoa envolvida. Além disso, esse tipo penal entraria no rol dos crimes que só procederia mediante queixa, podendo ser retirada a qualquer tempo. A reforma equipara ainda a exploração sexual à prostituição, legaliza as casas de prostituição e extingue a pena de até 5 anos de prisão para o proprietário do local.

Por fim, quanto ao infanticídio, cometido por mulheres durante o estado puerperal durante ou pós-parto ou sob o efeito “perturbador” deste, continuará prevista a punição, com pena de 1 a 4 anos de prisão. Isso porque, segundo a lógica da comissão de juristas, mesmo fora do seu estado psicológico normal, a perturbação mental da mulher não pode ser considerada um “excludente de ilicitude”.

Como é possível observar, independentemente da necessidade de uma reforma do Código Penal e se de fato a atual proposta representa qualquer avanço em outros aspectos da legislação penal atual (seria necessário uma avaliação mais minuciosa de preferência por parte de nossos juristas de esquerda e ligados aos movimentos sociais para uma conclusão mais precisa) não se pode negar que o que se desenha com essa proposta é um verdadeiro ataque aos direitos das mulheres. Diante disso, é urgente nos posicionarmos de forma contundente contra ela e iniciarmos já um debate em torno da reforma que queremos, construída a partir da organização dos trabalhadores em conjunto com os outros movimentos sociais, incluindo os movimentos de mulheres.