Cena do filme
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Redação

“Nunca panfletário nem óbvio, João Jardim encontra um viés próprio para nos colocar frente a frente com o nosso futuro (…). Como uma lâmina precisa, o filme corta a alma”. (Fernando Meirelles)

Pro dia nascer feliz apresenta-se, aparentemente, como um documentário sobre o sistema educacional no Brasil. O diretor João Jardim, autor do lindíssimo documentário sobre cegueira e visão, Janela da alma, escolheu seis escolas, nos estados de Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco, para esboçar um retrato das desigualdades do acesso à Educação, trazendo depoimentos dos alunos dessas escolas. Ele evidencia os contrastes gritantes que existem dentro do sistema público, por exemplo, entre a escola da cidade de Manari, no Estado de Pernambuco, cidade com menor IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do país, e as escolas de São Paulo. Mas, sobretudo, João Jardim registrou o abismo que existe entre uma escola da elite paulista – o colégio Santa Cruz – e qualquer escola do sistema público.

O filme abre com imagens de arquivo da campanha educacional de 1962, lembrando que, na época, 14 milhões de jovens não tinham acesso à educação. Uma manchete alardeava que “na cidade sem escola, jovens escolhem o crime”. Hoje, as estatísticas nos dizem que 97% dos jovens vão para escola, mas João Jardim lembra justamente que o acesso à escola em si não quer dizer nada: para que serve a escola, se não oferece perspectivas para os jovens? Para que serve se, pelo sucateamento que sofre o sistema público, a escola não ensina nada? Para que serve se as escolas, em vez de diminuírem as desigualdades, as reforçam?

Ele coloca poucos dados, mas suficientes para se ter uma idéia do abandono no qual se encontra a escola pública brasileira: 13.700 escolas brasileiras não têm banheiro; 41% dos alunos que ingressam no ensino fundamental não concluem a 8ª série. A metade dos alunos que concluem o ensino médio não sabe ler ou escrever. Mesmo o acesso físico à escola não é sempre garantido. Assim, há crianças que têm de percorrer mais de trinta quilômetros para chegar à escola de Inajá, em Pernambuco. Durante a semana da filmagem, essas crianças e jovens só conseguiram ter três dias de aula, porque o ônibus estava quebrado.

O olhar atento e discreto do diretor se dirige primeiro aos jovens. Para João Jardim, não se trata de realizar um estudo sociológico sobre o ensino no Brasil, nem de analisar as responsabilidades do Estado e do governo: ele quer simplesmente conhecer melhor a psiquê dos jovens brasileiros, mergulhados num mundo violento e sem perspectiva. Ele cita, no título, a letra de Cazuza, “Pro dia nascer feliz, essa é a vida que eu quis”, com a intenção de alertar-nos sobre o destino daqueles jovens que não terão a vida que queriam ter. “O filme tenta jogar um pouco de luz nessa questão de como o jovem se comporta dentro da escola, não apenas em relação aos professores, mas também em relação aos colegas e a esse momento intenso em que vive, num mundo extremamente violento e com poucas oportunidades” , afirma o diretor.

Essa opção de João Jardim poderia ser criticada. De fato, é uma pena que o diretor não tenha tentado “jogar luz” também sobre a questão do professor. O documentário deixa no ar várias acusações em relação às faltas dos professores e à ausência de compromisso com os alunos. O depoimento da diretora da escola de Itaquaquecetuba, nesse aspecto, só contribui para reforçar os preconceitos contra o professor: após explicar a substituição dos professores efetivos faltosos por eventuais (sem nem comentar o quanto esses professores eventuais são explorados), ela queixa-se do excesso de faltas e sustenta que é por causa da “legislação permissiva”. Os alunos também não vão muito além do conflito com o professor, que é apontado como um dos principais responsáveis da baixa qualidade do ensino.

Nesse aspecto, existe certo desequilíbrio no documentário. Só o depoimento da professora Celsa (Itaquaquecetuba) – reconhecida como uma boa professora pelos alunos, já que ela incentiva a criatividade dos mesmos, através do fanzine da escola – expressa o dilema quotidiano dos professores, o esgotamento físico e moral que eles sofrem dentro de uma instituição que os abandona ao seu próprio destino, com condições de trabalho absurdas, salários miseráveis e ausência completa de perspectiva: “Eu falto por cansaço (…) a carga física e moral é maior do que o ser humano pode suportar (…), você se envolve, mas nem sempre tem retorno. O professor perdeu a dignidade (…) e o Estado deixa tudo jogado. Todo mundo está cansado de ouvir os problemas da Educação, mas ninguém faz nada”. Este é o único depoimento que aponta a responsabilidade do Estado em relação à péssima qualidade do ensino.

Essa falha talvez se explique pela forma exaustiva que o João Jardim escolheu. Não tem uma unidade narrativa suficiente, já que o diretor quer dar uma representação da escola e da juventude, em geral, no Brasil. O filme acaba sendo um pouco fragmentado. De fato, seria preciso filmar outro documentário, para poder colocar mais nitidamente a realidade da exploração e alienação crescentes no trabalho de professor.

Apesar dessa lacuna, o documentário vale pela intensidade dos depoimentos, que são simples, mas às vezes arrepiantes. Valéria, moradora de Manari gosta de ler Vinicius de Moraes e Carlos Drummond de Andrade, escreve poemas lindos sobre “a paixão da arte de viver”, mas nunca é valorizada pelos professores: “Não dão notas boas”, porque não acreditam que ela foi capaz de escrever textos assim. Sabe perfeitamente que “seria uma adolescente normal”, se não tivesse uma família de onze pessoas e que “poderia ter lazer, se não tivesse que trabalhar”.

Keila, de Itaquaquecetuba, queria se suicidar, mas achou no fanzine da escola e na poesia uma maneira de extravasar o seu sofrimento. Um ano depois, ela já entra na fábrica para dobrar calças e sente na pele a exploração do jovem trabalhador e a alienação resultante de um trabalho repetitivo, perdendo até a vontade de escrever. Rita, ameaçada por duas colegas, prefere mudar de escola, engravida, e tem de parar de estudar durante dois anos.

O depoimento mais forte é ouvido em off, por cima da bela e triste imagem dos pingos de chuva caindo no chão: uma aluna comenta friamente que resolveu esfaquear a colega na escola “pra tudo mundo ver”. “Ela quis me barrar na festa. Eu pensei: ela tem que morrer, essa safada. Fui procurar ela na hora do intervalo e achei no corredor. Aí, foi daquele jeito. Mandei ver. E ela estava no chão esticada. Ela ia morrer de qualquer jeito um dia. Só antecipei”. E conclui: “Não dá nada matar sendo ‘de menor’, três anos passam rápido”. Este depoimento dramático demonstra a magnitude da banalização da violência e a perda do sentido da vida, dos outros e da sua própria, para quem não vê futuro algum.

Outros jovens fogem da escola para roubar e se divertem “com a cara da vítima quando está perdendo”. Mas lembram quem são os verdadeiros ladrões da sociedade: os políticos corruptos que se enriquecem à nossas custas.

Segundo Jardim, “se existe algum caminho para esses jovens, é o do protagonismo. Eles estão sendo tolhidos. A escola tem que achar alguma forma criativa deles extravasarem, porque, caso contrário, eles vão escolher outros caminhos para isso”.

Duvidamos que a escola, por si só, seja capaz de proporcionar perspectivas para a juventude dentro do sistema capitalista. Aliás, o plano aéreo onde Jardim filma na seqüência um bairro rico, com seus prédios imponentes, com suas piscinas, e, ao lado, encostada na riqueza, uma favela de barracos miseráveis, não deixa dúvidas de que essa falta de perspectiva não se resolverá na escola.

O trecho sobre o colégio Santa Cruz nos apresenta os poucos que “tem o privilégio de saltar do drama (da sobrevivência) para a tragédia (da existência)”, como diz Fernando Meirelles. Thais, Ciça e os outros estudam numa escola luxuosa da elite, no bairro Alto de Pinheiros. Esses adolescentes poderiam nos emocionar, já que têm dúvidas, questionamentos, e problemas existenciais. Aliás, diferentemente dos outros adolescentes, choram muito – pelas notas e pelos namorados. Mas quando se trata de evocar a desigualdade social, eles mostram claramente o que significa ser parte da burguesia paulistana. É desesperador ouvir as moças refletirem sobre as “bolhas” que dividem o mundo, e se o fato de enxergar o menino que vende balas na rua como um ser humano deixa a “bolha” mais transparente ou não. Arrepia ouvir uma dizer tranqüilamente que “não dá para fazer trabalho voluntário, porque vou ter que deixar de ir numa aula da natação”, ou outros concluírem com uma inocência cínica que o mundo dos pobres e o mundo deles são dois mundos diferentes, mas o problema é justamente que é o mesmo mundo…

As últimas imagens demonstram, mais do que outras, a sensibilidade do olhar de João Jardim: ele registra uma série de retratos de jovens, com planos fixos longos, que expressam toda a urgência para esses adolescentes do dia “nascer feliz”. E filma de novo Valéria dizendo, à maneira dos repentistas, uma poesia sobre Manari, “sua terra por ventura”. “Esse depoimento não está lá só para levantar o astral do filme, mas porque para mim, Pro dia nascer feliz é muito mais uma discussão sobre desperdício, falta de oportunidades que tem o jovem brasileiro”, comenta João Jardim. Ele conseguiu com certeza transmitir-nos sua preocupação, com muita simplicidade, e sem ser nunca piedoso.

Por fim, guardaremos na memória as imagens finais das crianças com prato de comida, que, durante os créditos, olham para a câmera com olhos arregalados.

FICHA TÉCNICA:
Gênero: Documentário
Duração: 88 minutos
Ano de Lançamento: 2006, Brasil
Direção: João Jardim
Roteiro: João Jardim
Edição: João Jardim
Produção: Flávio R. Tambellini e João Jardim
Música: Dado Villa-Lobos
Fotografia: Gustavo Hadba