A justíssima prisão de um jogador de futebol argentino, que fez um ataque racista contra um brasileiro, em São Paulo, jogou luzes sobre o crescente problema da discriminação racial nos campos de futebol. Mas também é mais um exemplo da hipocrisia e demagogia que cercam as atitudes da elite brasileira em relação ao tema.

Na quarta-feira, 13 de abril, o jogo, válido para as Libertadores da América, entre São Paulo e o Quilmes, da Argentina, terminou com uma cena um tanto inusitada. O jogador argentino Leandro Desábato saiu do estádio do Morumbi em um camburão, acusado de prática de racismo.

A prisão foi feita pelo delegado Oswaldo Gonçalves, conhecido como Nico, a pedido do advogado do São Paulo, José Carlos Ferreira, do Delegado Geral da Polícia Civil, Marco Antônio Desgualdo, e pelo Secretário de Segurança Pública, Saulo Abreu. Detalhe: todos eles são-paulinos, e acompanhavam o jogo no estádio ou pela TV.

O lance que motivou a prisão ocorreu no primeiro tempo, quando o atacante são-paulino Edinal Libâno, o `Grafite`, negro, envolveu-se uma confusão com dois jogadores do Quilmes, o meia Arano e o zagueiro Desábato. O atacante foi xingado pelos dois jogadores argentinos e respondeu com um empurrão no rosto de Desábato. Arano e Grafite foram expulsos do campo, mas Desábato continuou na partida até o final.

Segundo uma declaração dada ao site da UOL, por Marcos Antonio Vito Alvarenga, presidente da Comissão de Negros e Assuntos Anti-Discriminatórios da OAB-SP, que esteve na prisão na quinta-feira, Desábato assumiu que “chamou Grafite de `macaco`, `negrinho` e mandou enfiar a banana em um lugar do corpo que eu não posso repetir para vocês agora”.

Desábato — que passou a noite de quarta numa sala especial de uma delegacia, e continuava preso nesta quinta —, foi enquadrado por injúria qualificada com agravante de preconceito racial, já que pela legislação brasileira somente o Ministério Público poderia detê-lo por racismo (o que tornaria a prisão inafiançável). Assim, ele poderá receber um habeas-corpus a qualquer momento e responder ao processo em liberdade.

É evidente que somos a favor da punição de qualquer ataque racista. Contudo, o que ocorreu não tem nada a ver com a infinidade de declarações da elite brasileira citando o caso como exemplo de que, no Brasil, o racismo não é admitido.

Racismo corre solto nos campos
Os ataques racistas dos jogadores do Quilmes contra `Grafite` não são novidade. Na partida anterior, em 16 de março, na Argentina, o são-paulino foi “chamado de macaco e negro de merda” como ele próprio declarou ao jornal Lance, no dia 12 de abril. Os lances foram tão pesados, que a direção do Quilmes chegou a enviar uma carta ao time brasileiro, pedindo desculpas.

Mundo afora, os casos têm sido ainda mais constantes, principalmente na Espanha, na Itália e na Inglaterra. Roberto Carlos, que joga no Real Madrid, da Espanha, é vítima permanente de xingamentos vindos das arquibancadas das torcidas adversárias, que o chamam de “macaco“ ou imitam os sons produzidos pelo animal sempre que ele pega na bola. Um dos ataques mais furiosos se deu em fevereiro passado, num jogo contra o La Coruña.

Também na Espanha, Samuel Eto’o, da República de Camarões, que joga no Barcelona, foi alvo de tantos ataques em um jogo recente do campeonato espanhol que o árbitro teve que interromper a partida para que a direção do clube anfitrião interferisse, pedindo para os torcedores parassem.

Em novembro de 2004, torcedores espanhóis ofenderam jogadores negros das seleções sub-21 e profissional da Inglaterra, em dois amistosos contra a Espanha. Pouco depois, as vítimas foram os zagueiros brasileiros Juan e Roque Júnior, em partida do Bayer Leverkussen, da Alemanha, contra o Real Madrid, pela Liga dos Campeões. Neste caso, a agressão sequer foi relatada pelo juiz e, também, nenhuma atitude foi tomada pelo presidente da União Européia de Futebol (Uefa), Lennart Johansson, que estava no estádio.

Aliás, via de regra, na maioria dos casos, a reação das autoridades e federações de futebol locais, da Uefa e da Federação Internacional de Futebol (Fifa) têm sido, no mínimo, brandas, limitando-se geralmente a pífias sanções financeiras contra os milionários times de futebol.

No caso dos ataques dos torcedores do La Coruña contra Roberto Carlos, a Federação Espanhola estipulou uma multa de apenas 600 euros (cerca de R$ 2.100). Um triste exemplo, inclusive, de que, apesar do vertiginoso aumento dos ataques racistas, as sanções ainda vêm caindo. Em 2004, por exemplo, a Federação Espanhola de Futebol havia sido multada, pela Uefa, em 85 mil dólares (cerca de R$ 220 mil) e o próprio Real já foi penalizado em 13 mil dólares (aproximadamente de R$ 35 mil).

No Brasil, onde as lamentáveis cenas também se repetem, a única punição anterior a de Desábato foi dada em março ao jogador Wellington Paulo, do América-MG, suspenso por um mês por ter chamado André Luiz, do Atlético-MG, de macaco.

Os casos têm sido tão freqüentes e as punições tão raras que, no final de abril, uma ONG brasileira, o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), lançou uma campanha nacional intitulada “Mande um cartão vermelho para o racismo no futebol“ (www.racismonofutebol.org.br) para direcionar mensagens para a Fifa, a Uefa e Federação Espanhola, exigindo atitudes mais eficazes no combate ao racismo.

Neste sentido, é inevitável constatar que a prisão do jogador argentino é muito mais do que uma exceção no que se refere ao combate ao racismo. E, pelo que indica uma faixa exposta num jogo do Quilmes, no domingo, dia 17 — representando Grafite como um macaco — sequer serviu para coibir os ataques em campo.

Enquanto isso, no Brasil real….
Não seria um exagero afirmar que se Desábato não estivesse numa disputa de futebol e, inclusive, se não fosse argentino, e tivesse dito exatamente a mesma coisa em qualquer outro canto do Brasil, o caso não teria tido qualquer repercussão. E pior: mesmo se a denúncia fosse feita pela possível vítima ou pelo movimento negro, as chances do racista ser preso seriam mínimas. Infelizmente, esta tem sido a história que se repete desde de 1988, quando a Constituição tornou o crime de racismo inafiançável.

De lá pra cá, apesar de milhares de denúncias feitas em todos os cantos do país, a “justiça” simplesmente têm se recusado a aplicar a lei. Para impedir que os racistas sejam presos sem direito à fiança, os ataques racistas são transformados em “calúnias”, “difamação” ou qualquer outra coisa que amenize a prisão. Nos casos em que processos são instaurados, juízes e advogados e todos os demais envolvidos se desdobram em esforços para fazer com que as pessoas atacadas façam acordos financeiros e retirem a acusação. Isso quando a denúncia chega a ser acatada nas delegacias.

O exemplo da excepcionalidade do caso pode ser encontrado até mesmo no que se refere à própria atitude do São Paulo em relação ao racismo. Depois das ofensas do primeiro jogo, o técnico do time, Emerson Leão, referindo-se aos xingamentos, declarou ao jornal Lance, no dia 12 de abril, que “brincadeiras são normais” e deu como exemplo destas “brincadeiras” o fato de que, em alguns treinos, os jogadores são divididos em times de brancos e pretos.

É esse mesmo “espírito” que, lamentavelmente, impera fora dos campos. Apesar de ser prática cotidiana, o racismo quase nunca é admitido ou punido. As piadas, a vigilância cerrada sobre negros e negras em bancos e shopping centers, a discriminação na mídia, na escola ou no local de trabalho, enfim em todos os aspectos da vida social, são tidos como práticas “normais” e “inofensivas” ou mero “equívocos”, quando não frutos da “mania de perseguição” de alguns negros e negras.

Pior: utilizado para superexplorar os trabalhadores, o racismo vitima cotidianamente, aqui e no resto do mundo, milhões de negros e negras condenados a salários reduzidos, ao desemprego, ao subemprego e à uma violência que vai muito além do xingamento em uma disputa de futebol.

Por essas e muitas outras, é fundamental que pra além de saudar a prisão de Desábato, exijamos que esse caso não seja exceção, mas sim a regra. Algo, que certamente não pode ser esperado por parte deste Estado e da elite que o governa. Repetindo algo que está virando regra nestes tempos de governo Lula, o que estamos assistindo é uma ação “espetacular” e pontual diante de um fato consumado. Ou seja, um espetáculo montado, em base a uma ação correta, que vai se limitar nele próprio, sem sequer arranhar a estrutura do sistema que produz o racismo cotidiano que afeta a tantos milhões.

Fazer com que a prisão de Desábato se torne regra, não exceção, e que toda e qualquer atitude racista seja exemplarmente punida, inclusive aquela cotidianamente praticada pela mídia, pelas grandes empresas e pelo conjunto da elite brasileira, são tarefas que estão colocadas para aqueles que realmente estão comprometidos com a construção de uma sociedade sem racismo ou qualquer tipo de preconceito e discriminação: os trabalhadores, a juventude e a enorme massa de oprimidos e explorados que existe neste país.