Há 20 anos, em 21 de agosto de 1989, o “maluco beleza” Raul Seixas embarcou em sua última viagem. Nascido em 1945, em Salvador, o cantor e compositor continua a impor sua marcante presença no cenário musical brasileiro. Também segue conquistando fãs entre milhões de jovens que sequer haviam nascido quando ele morreu vítima de uma parada cardíaca provocada pelo mau funcionamento de um pâncreas há muito castigado pelo álcool e uma razoável lista de outras substâncias.

Figura exemplar de uma geração que tentou traduzir em arte os tumultuados anos que vão do final dos 1960 a meados da década de 1980, Raulzito tornou-se o mito que é, até hoje, ao saber combinar, como poucos, letras poéticas, irreverência e criatividade com uma postura literalmente “anarquista” diante da vida. Tudo isso embalado em sonoridades que, mergulhadas no melhor do rock e do blues, sempre dialogaram com a cultura brasileira, seja a enraizada nas tradições nordestinas, seja aquela que brota dos meios urbanos.

É exatamente por isso que, em pleno século 21, é praticamente impossível que uma noitada num boteco com música ao vivo, uma festa ou um show que reúna gente “antenada com o mundo” possa acabar sem que alguém encha os pulmões para gritar: “Toca Raul”. A frase é a tradução espontânea dos mesmos desejos que alimentaram a alegria, a poesia e a beleza da obra de Raulzito.

Desobediência como caminho para a criatividade
Radical no melhor sentido da palavra, Raul Seixas era uma espécie de “menestrel” fora do tempo e do espaço. Comportando-se como uma daquelas figuras da Idade Média que recolhiam histórias das margens da “história oficial” e as transformavam em poesias cheias de ironia, sensualidade e visão crítica, o cantor repetia à exaustão que tudo o que criava era resultado de sua convicta postura de “desobediência” diante da lógica do mundo.

Nascido numa capital nordestina, criado ao som do rádio e dos sucessos de Luiz Gonzaga e mergulhado (através de seu pai ferroviário) no universo dos repentes e do cordel, Raul cresceu para se transformar em roqueiro e “imitador consciente” de Elvis Presley.

Figura “esquisita” na capital baiana – com seu cabelo banhado em “brilhantina”, jeans agarrado à pele e casacos de couro nada adequados ao sol de Salvador –, o “showman” Raul foi, durante a infância (e no decorrer da vida fora dos palcos), um sujeito tímido, dado mais à leitura (ele sonhava em ser escritor) do que às brincadeiras de rua e baladas.

Ainda bastante jovem, juntou-se com amigos numa série de bandas que tiveram vida curta, mas foram marcantes para sua formação, como “Os Relâmpagos do Rock” e “Raulzito e os Panteras”, formadas ainda na década de 1960, e que o aproximaram da turma “bem comportada” da Jovem Guarda, com “roquinhos” um tanto insossos como “Doce, doce, doce amor”. Nessa época, foi para o Rio de Janeiro.

A figura de Raul, no entanto, dificilmente poderia encontrar seu lugar em meio a artistas como Jerry Adriani, Roberto Carlos e os demais representantes da Jovem Guarda. Raulzito também não poderia ficar imune à onda psicodélica e rebelde que varria o mundo nos arredores de 1968.

Com sua típica “desobediência”, o cantor, literalmente, tomou de assalto o estúdio da empresa fonográfica que o estava contratando para gravar seu segundo LP, “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10”, cujos títulos e sonoridades antecipam seus maiores sucessos dos anos 1970.

Apesar de a distribuição do disco ter sido censurada pela empresa, Raul chegou ao grande público com seu estilo em 1972, quando participou do 7° Festival Internacional da Canção, promovido pela Globo, com duas músicas que marcaram época: a deliciosa mistura de rock e baião “Let me sing” e a enlouquecida “Eu sou eu Nicuri é o Diabo”.

Metamorfose ambulante
Sempre atento ao mundo ao seu redor, Raul emplacou, no ano seguinte, um de seus maiores e mais fantásticos sucessos, “Ouro de tolo”, uma letra em que aspectos autobiográficos misturam-se com a mais debochada crítica à ditadura, seu “milagre” econômico e à censura.

Foi nesse mesmo ano que saiu o disco “Krig-Ha, Bandolo”, com uma excepcional concentração de músicas inesquecíveis, como “Metamorfose ambulante”, “Mosca na sopa”, a própria “Ouro de tolo” e “Al Capone”. Todas elas transformadas em verdadeiros hinos de uma juventude que queria gritar por liberdade.

Diversas em ritmos e temas, todas as músicas, no entanto, têm uma coisa em comum, típica da obra de Raulzito: a ideia de “refazer-se”, “reinventar-se” a cada momento, fugir das regras estabelecidas, questionar tudo e todos. À beira muitas vezes de um misticismo meio alucinado (que o aproximou da hoje inglória figura de Paulo Coelho) – praticado por alguém que sempre dizia que “não existe Deus, senão no homem” – e com uma riqueza poética poucas vezes encontrada na música brasileira, as músicas ainda tinham a capacidade de conquistar os públicos mais diversos.

Um sonho sonhado junto é realidade
Vivendo numa sociedade repressiva e “careta”, que o levou muitas vezes a embates com o sistema (como na sua primeira prisão, em 1974, pelo Dops, e o breve exílio nos EUA), podemos dizer que a grande contribuição de Raul para a juventude da época foi exatamente a possibilidade de “sonhar” um outro mundo.

Um sonho um tanto lisérgico, psicodélico e anarquista, mas um sonho que, como o próprio cantor dizia, deveria e merecia ser sonhado, pois, nas suas palavras: “Somente o sonho sonhado sozinho é um sonho; um sonho sonhado junto é realidade”.

Sonho traduzido em canções posteriores como “Sociedade alternativa” e a memorável “Gita” que, quando lançada, praticamente impôs a figura de Raul ao mercado ao vender nada menos do que 600 mil cópias.

Homem de muitos e destrambelhados amores, sujeito que nunca teve medo de “tentar outra vez” e dono de uma cultura digna de quem “nasceu há dez mil anos atrás”, Raul Seixas partiu deixando uma obra que, pela sua multiplicidade, é capaz de embalar os mais diversos momentos da vida de seus fãs.

Fruto de sua época, também não foi “santo”, muito menos inquestionável. Afinal, em meio a preciosidades como “O dia em que a Terra parou” e “Aluga-se” (transformada em hino contra o FMI e o pagamento da dívida externa), Raulzito também deixou umas tantas bobagens, como por exemplo, o “intragável” e homofóbico “Rock das Aranhas”.
Derrapadas à parte, o que ficou de sua obra depois de três décadas de sua ausência é a figura do “mago” irreverente, do “maluco beleza” que, sem dúvida, sempre que toca deixa nossa vida mais legal.

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