Texto originalmente publicado na Revista R nº 4

“Porque eu quis, pode ir lá denunciar”. Foi a resposta do capitão Alexandre Bruno da Rocha, da polícia militar do Distrito Federal, quando questionado so­bre o uso de spray de pimenta contra ma­nifestantes pacíficos, em setembro do ano passado. Agora, a Justiça Militar acaba de pedir o arquivamento do inquérito poli­cial em que se apurava sua conduta. Se­gundo os militares, o vídeo que mostraria o abuso do capitão é uma montagem.

A frase do capitão – realmente dita por ele, como admite a PMDF – não simboliza meramente um cinismo alimentado pela certeza da impunidade. Há por trás uma realidade muito conhecida nas perifeiras brasileiras e que, desde junho do ano pas­sado, passou a ocupar, junto das manifes­tações, áreas mais centrais das grandes cidades brasileiras e, assim, a aparecer na grande mídia. Com isso, passou a chocar setores da população antes alheios aos desmandos policiais.

Neste artigo, vamos desenvolver um pouco mais o debate sobre a desmilitari­zação da polícia, assunto tratado em ja­neiro em outro texto . Essa pauta ganhou grande visibilidade desde o ano passado e é importantíssima para todos os que despertaram em junho (ou bem antes) na luta por outro mundo.

Segurança para os ricos, repressão para os pobres…
O Anuário Brasileiro de Segurança Pú­blica 2013 mostra que, de cada dez mortes violentas evitáveis no mundo em 2012, um ocorreu no nosso país . Há um perfil dos homicídios no Brasil. As vítimas são especialmente os homens negros, jovens e pobres. Segundo estudo do IPEA, entre os chamados “não-negros”, a cada 100 mil habitantes contabilizam-se 15,2 mortes. Entre os negros, conforme o mesmo parâ­metro, esse número salta para 36 mortes . Por outro lado, apenas 8% dos homicídios são investigados no país.

No entanto, a realidade está longe do “reino da impunidade” sempre pronto a saltar da boca das Sheherazades da gran­de imprensa: em 2012, o Brasil atingiu a maior população carcerária de sua histó­ria, 549.786 presos, cujo crescimento ga­nhou impulso nos governos federais do PT. Desse total, mais de 90% encontra-se em presídios. Desse modo, o país possui hoje a 4º maior população carcerária do mundo. Os presos são em sua maioria jo­vens entre 18 e 29 anos. Praticamente 61% são, conforme a classificação do Anuário, negros e pardos e, 93,8%, homens.

A impunidade é um “direito” concedi­do aos ricos e brancos – sejam políticos, empresários, sejam grandes traficantes de drogas. Aos pretos e pobres, resta uma pena de morte informal ou as barbáries do sistema prisional.

O contingente policial brasileiro ultra­passa os 520 mil policiais, ou seja, 01 a cada 363 habitantes. Trata-se de uma for­ça extremamente militarizada: em São Paulo, por exemplo, há 33.591 policiais ci­vis e 88.772 policiais militares. O número de policiais é considerado relativamente adequado, mas isso não representa mais segurança. No Distrito Federal, uma das unidades da Federação em que há melhor relação policiais por habitantes e com as melhores remunerações, as taxas de cri­mes violentos não cedem, estando bas­tante acima da média nacional. Os dados dimensionam estatisticamente a crueza do dia-a-dia nas grandes cidades brasilei­ras, em que a polícia militar está sempre pronta a atirar ou espancar primeiro e perguntar depois.

…e para os movimentos sociais
O governo do PT, seguindo a velha tra­dição da burguesia brasileira, ao menor sinal de questionamento às suas políticas não tem hesitado em reprimir duramente as manifestações contra as injustiças da Copa da FIFA.

Nada demonstra melhor isso que o in­vestimento em kits com armas de bala de borracha, por exemplo, da ordem de R$ 30 bilhões, direcionados especialmente para São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará e Bahia. Mas há muito mais no arsenal “não-letal” das polícias, especialmente a militar, para garantir o silêncio da população. São pis­tolas de choque, gás lacrimogêneo, gra­nadas de efeito moral e de luz. Ao final, o gasto total na segurança do Mundial está em torno de R$ 1,9 bilhão .

A truculência da PM não é novidade para nenhum morador das periferias bra­sileiras. A repercussão do assassinato de Amarildo de Souza em julho do ano pas­sado fez surgirem mais denúncias de ca­sos semelhantes. Agravando esse quadro persistente, hoje algumas das principais políticas de segurança pública se voltam para a repressão às manifestações. Bas­ta ver que a grande inovação da polícia militar paulista, a “Tropa de Braço”, foi utilizada justamente contra uma mani­festação que seguia pacífica até ser inter­rompida pela PM tucana. Esse tipo de ação levou a própria ONU a cobrar garantias democráticas às manifestações ao longo do primeiro semestre.

Um breve histórico da PM no Brasil
O autoritarismo está inscrito na his­tória da PM e é motivo de orgulho para a corporação. A polícia militar paulista, por exemplo, carrega um brasão que con­ta com 18 estrelas representativas, entre outros momentos “memoráveis”, do golpe militar de 1964 (chamado “Revolução de Março”) e a repressão à revoltas popula­res, como à greve de 1917 e o massacre de Canudos .

A história da polícia paulista, aliás, é um belo exemplo da natureza da institui­ção. Nascida oficialmente por um decreto regencial de 1831, passou por uma impor­tante reforma em 1906, ano em que a Mis­são Francesa veio ao Brasil para adestrar o aparato repressivo em moldes claramente militares, o que significa forte hierarquia e disciplina como marcas da organização .

No entanto, a origem direta da atual PM data de 1969, quando a ditadura militar incorpora a Guarda Civil (GC) à chamada Força Pública. À GC cabia o policiamento urbano e sua dissolução fez com que o po­liciamento ostensivo se tornasse prerro­gativa da PM, que passa a ser diretamente força de reserva do Exército. Polícia mili­tar e população ficam, desse modo, ainda mais apartados . Data dessa época, por exemplo, o surgimento do Batalhão de Choque.

Nesse cenário, a divisão do trabalho policial confere à polícia civil o trabalho investigativo, enquanto à PM cabe o poli­ciamento de rua. A redemocratização não mudou substancialmente essa situação, pois, se retirou do controle do Exército (ao menos do ponto de vista formal) a PM, pondo-o nas mãos dos governos estadu­ais, manteve a estrutura militar da corpo­ração.

O debate da desmilitarização

A discussão sobre a desmilitarização da PM não é nova. A mudança da estrutura policial foi uma posição derrotada nos de­bates da Constituição de 1988.

Há dois elementos muito importantes nas propostas de desmilitarização. O pri­meiro é a unificação das forças policiais em marcos civis e o segundo é o fim do có­digo militar.

Nesses termos, desmilitari­zar acarretaria o fim da separação entre o trabalho de investigação, de um lado, e do policiamento de rua, de outro. E os poli­cias seriam julgados na justiça comum.

A desmilitarização, compreendida nos termos expostos acima, seria um impor­tante passo para combater o caráter au­toritário das polícias no país. Todavia, apenas desmilitarizar a polícia – mesmo com todas as implicações positivas que haveria nisso – não acabará com seu cará­ter de classe. Mesmo em países onde não há tão aberta barbárie do aparato policial e ele não é militarizada, a força policial permanece sendo um instrumento fun­damental para que a burguesia domine a juventude e os trabalhadores.

É impossível não lembrar da repressão aos moradores de Tottenham em 2011, que se rebelaram após o assassinato de Mark Duggan, jovem negro morto pela polícia londrina. Também na democrática França a polícia e o governo de Hollande tratam as populações negras da periferia de Paris como “escória” – termo utiliza­do pelo antecessor do atual presidente, o conservador Nicolás Sarkozy para se refe­rir aos imigrantes.

Assim, é utópico defender no caso do Brasil que “o Estado precisa garantir que esses profissionais atuem de forma a for­talecer a democracia e os direitos civis”, como fez Marcelo Freixo em artigo na Fo­lha de São Paulo no final do ano passado . Ou, como defendem outros, que uma “re­forma geral” nas polícias deve recuperar a “dimensão cívica do seu trabalho”. Justa­mente porque a PM não tem como proble­ma principal a “dificuldade em conviver com o regime democrático”. Ao contrário: ela é peça fundamental da manutenção de uma democracia cuja existência nor­mal depende da perseguição aos rolezi­nhos, da criminalização dos movimentos sociais, do forte controle dos trabalhado­res e do povo pobre.

Desmilitarização da PM rumo ao fim da polícia
Em nossa opinião, a clareza do caráter de classe do Estado é a base mais segura para elaborar um programa em relação à desmilitarização da polícia. Engels mos­tra o Estado como uma força que consis­te antes de tudo em “destacamentos es­peciais de homens armados, tendo à sua disposição prisões, etc” . Que jovem negro morador da periferia de uma grande cida­de brasileira duvidará disso?

A polícia e as forças de repressão de modo geral estão separadas da classe tra­balhadora e do povo. Esse elemento é es­sencial para que cumpram seu papel. Nes­se sentido, a desmilitarização da polícia, na medida em que caminha no combate a essa separação, é uma bandeira democrá­tica bastante importante. Isso teria várias implicações.

A primeira é que teríamos uma polícia civil única, acabando a separação entre polícia militar e civil. Assim, as ativida­des de investigação e policiamento cons­tituiriam o trabalho policial concentrado em uma única força não subordinada às Forças Armadas.

A segunda consequência é que os po­liciais passariam a ser funcionários pú­blicos com todos os direitos, como o de formar sindicatos e fazer greve. Isso é par­ticularmente importante, pois as diferen­ças de classes na sociedade também se ex­pressam dentro da corporação policial: os componentes das baixas patentes são em geral filhos da classe trabalhadora, vin­dos de áreas pobres, ao contrário de seus comandantes.

Em terceiro lugar, o direito à livre mani­festação política, fundamental também para que possam se expressar as deman­das dos elementos mais abaixo na hierar­quia militar.

Em quarto lugar, o fim da justiça mili­tar. Toda e qualquer infração seria julga­da por uma justiça civil.

Em quinto lugar, o fim das tropas espe­ciais, como as tropas de choque, cuja fun­ção principal é reprimir manifestações populares.

Além disso, os trabalhadores devem ter mecanismos de controle sobre a seguran­ça pública, como o controle pela popula­ção da polícia por meio da eleição dos de­legados de cada cidade ou zona.

Mas a desmilitarização só representará um passo na transformação radical dessa polícia racista e tão antagônica aos pobres e trabalhadores, nos marcos da luta contra a democracia dos ricos e seu poder econô­mico. Isso significa acabar com a polícia, reformulando profundamente o modelo de segurança pública e, necessariamente, a própria sociedade.