Gabriel Huland, de Madri

No dia 1º de outubro, o governo da Catalunha realizou um referendo de independência, no qual fazia a seguinte pergunta à população: “Quer que a Catalunha seja um Estado independente na forma de República?” O governo espanhol ficou tão preocupado com a possibilidade de uma ruptura no seu Estado que mandou mais de 10 mil agentes da Guarda Nacional para impedir a realização da votação. O resultado foi mais de 800 pessoas feridas e dezenas de presos. Mesmo assim, em condições precárias, mais de 2 milhões votaram, e mais de 90% se posicionaram a favor da independência.

A Catalunha é uma das regiões mais ricas e industrializadas do Estado espanhol. Tem aproximadamente 8 milhões de habitantes e é responsável por 20% do PIB do país. Aproximadamente 10% da sua população trabalha na indústria, o que não é um número insignificante, tendo em vista o forte processo de desindustrialização sofrido pelo Estado espanhol nas últimas décadas, principalmente depois que o país entrou na União Europeia (UE) e passou a cumprir um papel de economia secundária, subordinada à Alemanha, França e Reino Unido, as três principais potencias econômicas da UE.

O referendo causou uma das maiores crises institucionais e sociais desde a época da Transição, período no qual o Estado espanhol passou do regime ditatorial franquista para uma democracia parlamentar monárquica.

A economia continuou capitalista, mas os setores burgueses que passaram a controlar o aparato do Estado estavam totalmente integrados ao projeto imperialista da União Europeia. O regime surgido da Transição é conhecido como “Régimen del 78”, que na realidade é herdeiro do regime franquista com concessões democráticas. Preservam-se intocadas as estruturas do franquismo no interior do Estado (Justiça e aparato de repressão) e continua instituída a monarquia com real poder moderador e de veto às decisões do Parlamento.

O Poder Judiciário continua impregnado de juízes que vêm do período anterior. O Partido Popular, que governa atualmente, é o partido dos setores reformistas do franquismo. Além disso, parte importante das leis foram aprovadas no final da ditadura e tinham como objetivo preservar o essencial do regime quando o general Franco morresse. Juan Carlos, pai do rei atual, foi nomeado diretamente pelo ditador. A monarquia é, sem dúvida, o principal símbolo da continuidade do franquismo.

A burguesia catalã e o separatismo

Governador da Catalunha, Carlos Puigdemont

A burguesia da Catalunha não quer levar às últimas consequências o processo separatista. Historicamente, sempre utilizou o sentimento nacional do povo catalão, que se baseava numa opressão real do nacionalismo espanhol para negociar com a burguesia espanhola melhores condições na repartição da riqueza nacional. Agora, é exatamente isso que está fazendo, com a diferença de que tem atrás de si enormes setores populares mobilizados pela independência.

Esse deslocamento de uma parte da classe média catalã e de amplos setores populares para posições independentistas se explica pelo início da crise econômica, os cortes orçamentários e imposições de uma série de reformas que retiraram direitos e aumentaram a exploração da classe trabalhadora.

A crise capitalista, iniciada em 2011, levou a um enfrentamento entre dois setores burgueses, por um lado, e um processo de mobilização social, por outro, que está provocando uma crise sem precedentes no regime.

Defender de fato o direito à autodeterminação das nacionalidades oprimidas é posição de princípio. Elas têm o direito a decidir. Por outro lado, aprofundar esse processo de crise do regime, mantendo uma posição independente da burguesia e dos partidos reformistas, chamando a classe trabalhadora a participar com suas reivindicações nas mobilizações, é uma das tarefas dos revolucionários nesse tipo de situação.

 

Todo apoio à greve geral na Catalunha

Depois do referendo, o sindicalismo alternativo – que se organiza por fora das centrais burocráticas CC.OO e UGT – convocou uma greve geral contra a repressão do governo central, em favor de direitos sociais e para que se aplique o resultado do referendo. Importantes setores dos trabalhadores e da juventude estão se mobilizando.

Uma parte da direção do bloco independentista, como a Assembleia Nacional Catalã (ANC), está contra a greve apelando a posições pacifistas. O povo catalão demostrou no dia do referendo que a única maneira de garantir a continuidade do processo independentista é pela mobilização social. A ocupação de escolas, centros de votação e as manifestações são essenciais nesse momento.

A Corrent Roig (Corrente Vermelha) está participando ativamente desse processo e construindo com todas suas forças essa luta pela autodeterminação da Catalunha e contra o regime reacionário que governa o Estado espanhol.

 

O que foi a Transición espanhola

A Constituição espanhola de 1978 afirma que o Estado espanhol é um Estado Plurinacional. Isso significa que, na Constituição, se reconhecem as distintas nações que compõem o Estado. Esse reconhecimento é produto de uma luta muito importante travada pelos setores populares que se mobilizaram na época da Transição (ou Transición em castelhano).

A ditadura franquista não reconhecia as nacionalidades e sempre reprimiu duramente qualquer expressão nacional, como a catalã, a vasca e a galega, impondo uma visão de que a Espanha era um país totalmente homogêneo, onde todos eram espanhóis e deviam respeitar os símbolos, a língua, a religião católica, as tradições e os chamados heróis nacionais.

O reconhecimento das nacionalidades existentes no Estado espanhol foi uma vitória, mas ficou muito limitada pelos acordos que foram feitos durante a Transição entre os partidos burgueses, o Partido Comunista, o PSOE (partido da social-democracia) e os sindicatos majoritários para aceitar a monarquia, a UE e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Na época, eles realizaram um pacto social – conhecido como Pactos de Moncloa – e paralisaram as mobilizações em curso que caminhavam para varrer todo o antigo regime.

As nacionalidades teriam mais direitos, mas não o direito à autodeterminação, e teriam de respeitar os marcos jurídicos do Estado espanhol. Atualmente, a possibilidade de uma separação pode levar esse pacto e o próprio regime de 1978 a uma crise terminal.

 

Como se formou o Estado espanhol

A Europa viveu um período de mais de 200 anos de revoluções burguesas e de transição do feudalismo ao capitalismo. Quando a burguesia comercial europeia, que se formou a partir do comércio mediterrâneo e também da exploração colonial das Américas, alcançou um grau de desenvolvimento superior, precisou controlar o poder político e formar estados nacionais. As criações do Estado-nação, entre outras características, representariam um mercado único no qual seria possível explorar a força de trabalho do proletariado para produzir e vender seus produtos.

A formação dos estados nacionais foi um processo longo, complicado e violento, porque significou a subordinação de povos inteiros. Povos que tinham língua e cultura próprias e foram dominados por outras nacionalidades que tinham poder econômico e militar para impor a dominação.

Em alguns casos, como na França, a formação do Estado nacional se deu por revoluções sociais muito profundas, que eliminaram a nobreza como classe dominante. Em outros casos, como no Estado espanhol, o processo se deu a partir de acordos entre a burguesia, a monarquia e a nobreza, e se realizou por meio de guerras de conquista e ocupação de territórios.

Por esse motivo, algumas nacionalidades, como a catalã, a vasca e a galega, seguem vivas e existem até os dias de hoje. No caso da Catalunha, o movimento nacional independentista (que tem setores de direita e esquerda, partidos burgueses, reformistas e pequeno-burgueses) é muito forte e enraizado na sociedade, principalmente nos setores mais pequeno-burgueses e do campo, apesar de ter força também na juventude urbana.

A defesa do direito a decidir e do direito a separar-se unilateralmente é legítima e deve ser defendida com unhas e dentes. Não podemos defender, como faz uma parte da esquerda, a união forçada entre os povos. É preciso lembrar das lições de Lenin durante a Revolução Russa. Há 100 anos, os bolcheviques respeitavam o direito de uma determinada nacionalidade de se separar do Estado russo caso desejasse. Essa política permitiu que as nacionalidades oprimidas adquirissem a confiança necessária nos operários russos que estavam à frente da revolução.

Queremos a unidade da classe trabalhadora para lutar contra a burguesia. Essa unidade, porém, só pode existir se defendermos o direito à autodeterminação de todas as nações oprimidas. Como dizia Marx, “não pode ser livre um povo que oprime outros povos”.

Publicado no Opinião Socialista nº 544