Bolsonaro e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Foto Antonio Cruz/ABr

 Jeferson Choma

A fumaça escura que pairou sobre o Centro-Sul do Brasil no último dia 19 é um alerta das chamas que consomem o Cerrado e a Amazônia. Segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), são 71.497 focos de incêndio de janeiro até agosto, 82% a mais do que no ano passado. No mesmo período, mais de 53 mil focos foram registrados nos estados que compõem a Amazônia brasileira. Obviamente que o aumento das queimadas tem a ver com a política de Bolsonaro, que praticamente desmontou todo o sistema de fiscalização ambiental e combate ao desmatamento, além de estimular explicitamente a invasão e a grilagem de terras públicas, Unidades de Conservação e Terras Indígenas. Como se não bastasse, quer calar o Inpe e agora culpa as ONGs pelas queimadas na Amazônia.

Deste modo, a explosão dos índices de desmatamento e queimadas registradas em 2019 é consequência do passe livre dado pelo governo de Bolsonaro para extração ilegal de madeira, e para a ampliação da agricultura e da mineração.

Não, Bolsonaro não é um Nero, o imperador enlouquecido que ateou fogo em Roma. É apenas a face cruel e bárbara desse sistema. Mas por que então a Amazônia está em chamas? Por que a maior floresta tropical do mundo chega próximo ao limite a partir do qual pode passar por mudanças irreversíveis tornando-se uma savana, como alertam os cientistas?

A criação da propriedade privada na Amazônia

Aparentemente, o ministro do Meio Ambiente, um criminoso condenado pela Justiça por fraudar mapas do Plano de Manejo da Várzea do Rio Tietê para beneficiar empresas de mineração, chegou mais perto da resposta quando disse que “a solução para a Amazônia era o capitalismo”. Na verdade, o ministro deve ser corrigido. Há muito tempo o capitalismo vem se expandindo pela Amazônia, e a real culpada pelos incêndios da maior floresta tropical do mundo é justamente a expansão da propriedade privada capitalista.

Sabe-se hoje que a Amazônia começou a ser habitada pelos seres humanos há mais de 10 mil anos. A região chegou a ser densamente povoada antes da conquista colonial europeia por complexas civilizações como a marajoara, tapajônicas, os omáguas (onde hoje se encontra Manaus) e outras anônimas, como aquela que habitou o Acre e produziu enormes geoglifos, semelhantes às linhas de Nazca. Há indícios arqueológicos de grandes cidades e estradas que interligavam cada uma delas. Também se sabe que elas se relacionavam culturalmente ou comercialmente com a civilização Inca, entre outras sociedades andinas. Todas foram liquidadas pelo conquistador europeu, que trazia no seu peito o brasão real da Corte, e no seu espírito, o fervor em acumular capital.

Mas restaram outras populações originárias. Algumas delas são produtos da fuga do apocalipse provocado pelo capitalismo colonial mercantil. Para sobreviver, milhares se refugiaram mata adentro e subiram a cabeceira dos rios.

Tempos da borracha

Anos mais tarde foram encontrados por gananciosos latifundiários, chamados seringalistas, que enriqueciam com o chamado ciclo da borracha. A produção em larga escala de borracha ocorreu por demanda do capitalismo industrial que necessitava do produto, sobretudo, para indústria de elastômeros e de pneus nos Estados Unidos e na Europa. A exploração da borracha era fruto da subordinação do Brasil, como fonte de matérias-primas, ao mercado capitalista global.

Para ocupar esses territórios, os seringalistas realizavam as chamadas “correrias”, matanças organizadas de índios. Mulheres e crianças que escapavam às matanças eram levadas como prêmios. A propriedade privada era assim erigida.

Ditadura militar: uma nova visão sobre a Amazônia

Anos mais tarde, o capitalismo não precisava mais da borracha da Amazônia. A região foi apresentada como um imenso “vazio demográfico e econômico”, “comparável às regiões polares”, conforme propaganda institucional da ditadura militar na década de 1960.  Era necessário “integrar para não entregar”, e a solução foi incentivar a expansão da propriedade privada capitalista com muito dinheiro público através de isenções fiscais para grandes empresas nacionais e multinacionais. Deu certo e logo muitos empreendimentos capitalistas começaram a investir pesadamente na agropecuária e mineração. Agora, o desenvolvimento era contra a floresta, considerada mato a ser derrubado, obstáculo ao progresso. Aí começou o grande incêndio da Amazônia.

Abertura da Transamazônica pela ditadura em 1970, parte do processo de ‘colonização’ da região

Foi esse processo que trouxe uma noção até então estranha às populações locais: a concepção de propriedade privada capitalista da terra. Muitos foram expropriados e liquidados. Calcula-se que no período da ditadura mais de 8.300 indígenas e cerca de 1.200 camponeses foram assassinados.  Muitos deles também resistiram e conquistaram seus territórios nos anos subsequentes.

Desenvolvimento desigual e contraditório 

O ato da queima da mata pode ser simultâneo ou se constituir no momento seguinte à expropriação e liquidação dessas populações. É parte de um processo que significa a criação da fazenda como meio de produção capitalista. Por vezes, elementos da própria população expropriada, cuja sociedade foi destroçada, são recrutados para fazer a derrubada da mata e abrir a fazenda. Em outros casos, camponeses desterrados de outras regiões do país são atraídos pela falsa promessa de terras em abundância. Promessas vazias que serviam ao propósito de ser apenas uma válvula de escape para os conflitos agrários de regiões como o Nordeste, Sul e Sudeste. Como lembra o sociólogo Otávio Ianni, os projetos de colonização na Amazônia realizados pelo Incra foram, na verdade, uma contrarreforma agrária para preservar a enorme concentração fundiária no país. Sem recursos e abandonada no meio da mata, essa população logo perdeu suas terras e foi facilmente recrutada pelos “gatos” do latifúndio.

Daí vem o moderno trabalho escravo na Amazônia. Um processo totalmente capitalista (para constituir a fazenda como meio de produção de mercadorias), mas que se funda em uma relação de produção não capitalista, quer dizer, não no trabalho assalariado, mas na recriação da escravidão, também conhecida como peonagem.

O sociólogo José de Souza Martins foi um dos poucos pesquisadores a se embrenhar na Amazônia na década de 1970 e registrou esse processo. Como também é fotógrafo, registrou um grupo desses trabalhadores em farrapos em uma imagem emblemática dos escravos que derrubavam a mata e abriam a fazenda da Volkswagen, de 140 mil hectares, localizada no sul do Pará.

Ele explica o que consistia “abrir uma fazenda” naquela época: “A fundação de fazendas ou indústrias) na Amazônia era o meio de obter recursos dos incentivos fiscais. Mas isso dependia de mecanismos atrasados e arcaicos de exploração do trabalho e acumulação de capital, como a peonagem e a expropriação violenta dos ocupantes originais da terra, os índios e posseiros” (Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano, p. 84).

Povos da floresta

A grande maioria das florestas amazônicas é terra devoluta, terra do Estado. São milhões de hectares ocupados por indígenas e camponeses. Lembremos, a Amazônia nunca foi um vazio demográfico, como dizia a ditadura. O processo de queimada sempre foi um processo do avanço do capitalismo na região, associado ao genocídio e à grilagem para a instituição da grande propriedade privada. É por isso que Chico Mendes dizia que a manutenção da floresta em pé dependia da permanência dos povos que nela habitam. É por isso que ele e seus companheiros seringueiros recusaram-se  a receber títulos de propriedade de pequenos lotes oferecidos pelo Estado. Defendiam o usufruto, a apropriação comum do território, a autogestão comunitária, características da então proposta original de criação das Reservas Extrativistas.  Inspiraram-se na criação das Terras Indígenas, como me explicou o indigenista acreano Antônio “Txai” Macedo:

Em 1984 nós reunimos 84 lideranças e convidamos também o Chico Mendes que veio com junto com o Osmarino para que a gente pudesse também dar um recado ao Chico, que era interessante pra eles naquele momento. Foi tipo o seguinte: o que se conhecia antes era que os patrões jogavam os seringueiros contra os índios, e os índios contra os seringueiros. Eles não podiam é se integrar, formar uma aliança ou coisa do gênero. Tinha que tá separado para o patrão poder tirar proveito na exploração. Então, nós falamos o seguinte: ‘Chico, os seringueiros e os índios não são inimigos. Eles são separados por um inimigo dos dois que é o patrão, o marreteiro. Eles [indígenas e seringueiros] bebem da mesma água, eles comem da mesma comida. Eles vivem praticamente junto. É muito bom essa questão do empate, mas, ao mesmo tempo, [tem] a luta pela terra. Tem que lutar por uma terra de uso social semelhante o que é as terras indígenas para os seringueiros, que são sociedades similar às populações indígenas’”.

Daí também surgiu a Aliança dos Povos da Floresta, unindo camponeses e populações indígenas.

É a produção da grande propriedade privada, de fazendas, que sempre orientou e ainda norteia o atual desenvolvimento desigual, contraditório e subordinado do capitalismo brasileiro.

Bolsonaro quer entregar Amazônia aos EUA

O que vemos com Bolsonaro é a radicalização deste processo. O aumento do desmatamento é consequência direta do avanço da agricultura capitalista sobre a Amazônia, o que é efeito direto da semirreprimarização da economia brasileira. A divisão internacional do trabalho recriou a velha plantation de exportação, agora fundida com a grande empresa capitalista. Enquanto o Brasil enfrentou um processo parcial de desindustrialização nas últimas décadas, ao mesmo tempo tornou-se um grande produtor de matérias – primas para o mercado externo. Com o governo Bolsonaro, esse projeto de recolonização se aprofunda. Como prova de seu servilismo, ele já disse que seu objetivo é explorar a Amazônia com os Estados Unidos de Trump.

Por isso Bolsonaro estimula a invasão das terras indígenas e Unidades de Conservação. Como lembrou em entrevista ao Opinião, a ativista Neidinha Suruí, que atua na defesa de mais de vinte povos indígenas, todas as terras indígenas da Amazônia foram invadidas.

A história da devastação e genocídio da Amazônia é a história da instituição da propriedade privada capitalista na região. Esse é o processo social que está por trás das imagens de satélites que registram as queimadas. Mas a história de sua preservação é a história de 500 anos de lutas e resistências dos chamados povos da floresta. Não há outra saída além da resistência. Os povos da floresta precisam resistir, em aliança com os trabalhadores urbanos e todos os oprimidos, para defender as suas vidas e as de todos nós. Mas a Amazônia só vai parar de arder quando superarmos o sistema capitalista e a grande propriedade privada.