Erika Andreassy, da Secretaria de Mulheres do PSTU

Desde a última quarta-feira (21), quando o Tribunal Constitucional (TC) emitiu uma decisão restringindo o direito ao aborto, a Polônia vive uma onda de protestos que a cada dia ganha mais adesões. Entoando gritos de “liberdade, igualdade, direitos das mulheres” e empunhando cartazes com dizeres como “vergonha”, “meu corpo, minha escolha” ou “eu gostaria de poder abortar meu governo” manifestantes ignoram a proibição de aglomerações públicas e desafiam o governo ultraconservador de Andrzej Duda, do Partido Lei e Justiça (PiS) ─ e sua agenda cristã e nacionalista ─, bloqueando rodovias e paralisando o tráfego de cidades em todo o país. No domingo igrejas chegaram a ser invadidas e missas interrompidas. No subúrbio de Varsóvia, um monumento ao Papa João Paulo II foi pichado com tinta vermelha. Mais de 150 manifestações estão marcadas para os próximos dias, em mobilização que engloba diferentes setores da população.

A Polônia já tinha uma das leis mais restritivas da Europa em relação ao aborto, permitido apenas em caso de malformação do feto, risco de vida para a mulher ou situações de estupro ou incesto. Com a atual decisão do TC invalidando o aborto em casos de malformações fetais – situação que contabiliza 98% das interrupções voluntárias legais –, o país praticamente bane o direito ao aborto. Vale lembrar que na Polônia o aborto foi livre durante o regime socialista até 1993, mas foi restringido durante a presidência do ex-líder do Sindicato Solidariedade, Lech Walesa, como resultado de um acordo com a Igreja Católica.

Este novo retrocesso legal deverá aumentar ainda mais os já elevados números de abortos ilegais no país. Na Polônia, ocorrem menos de 2 mil abortos legais por ano, mas grupos feministas e ONGs ligadas aos direitos das mulheres estimam que mais de 200 mil intervenções ilegais ou realizadas no exterior são feitas a cada ano. Além disso, muitas gestantes são desencorajadas a exercerem seus direitos legais quando procuram ajuda para interromper a gravidez, e médicos podem se recusar a realizar o procedimento caso considerem que vai contra crenças e valores pessoais, a chamada “obstrução de consciência”.

Ofensiva contra às mulheres

Mesmo não sendo diretamente responsável pela atual decisão, desde que ascendeu ao poder em 2015[1], o governo populista de direita da Polônia, vem investindo no sentido de acabar com o direito das polonesas ao aborto. Em 2016, um o projeto que propunha o veto total ao aborto foi derrotado no parlamento após um chamado de greve geral levar mais de 150.000 mulheres às ruas em 104 cidades do país, no que ficou conhecido como “segunda-feira negra” (as mulheres protestaram vestidas de preto).[2] Em 2018, novamente as mulheres saíram às ruas contra a tentativa do governo de endurecer as leis do aborto.

Mas o governo não desistiu, junto com a intensificação da campanha contra o movimento de mulheres: a repressão nas manifestações; os ataques públicos contra as ativistas e também as represálias a quem participa dos grupos; impondo multas e inclusive demitindo trabalhadores vinculado à administração pública por participarem dos protestos; e aproveitando-se da vantagem conquistada no TC após as reformas no judiciário, um grupo de deputados do PiS ingressou com uma demanda cuja atual sentença atende.

Mas a ofensiva dos conservadores contra as mulheres não se limita à questão do aborto. Desde que retornou à chefia do governo, o PiS reduziu projetos de promoção do trabalho feminino; enxugou programas de atendimento e educação especial para crianças com necessidades especiais, obrigando muitas mães a deixar de trabalhar para ficar em casa para cuidar dos filhos; limitou as campanhas públicas contra a violência às mulheres e instituições disponíveis para acolhimento; introduziu uma taxa para os casos de divórcio, o que é um grande obstáculo para as mulheres vítimas da violência se separarem de seus agressores; eliminou do currículo escolar qualquer menção à educação sexual; retirou o financiamento para tratamentos de reprodução assistida para casais não casados, assim como para mulheres que os buscam sozinhas; e limitou o acesso à pílula do dia seguinte, que agora só pode ser conseguida com receita médica.

O governo também cortou as subvenções para entidades que prestam assistência às mulheres, a maioria sobreviventes de violência, como o Centro para os Direitos das Mulheres da Polônia, depois de revisar o financiamento público das ONGs, sob a alegação de que seus programas são discriminatórios aos homens, porque só atendem mulheres.

Todas essas medidas, somada à uma retórica ultraconservadora tem aguçado a violência machista na Polônia, onde são registradas cerca de 67.000 denúncias desse tipo por ano. Cerca de quatro milhões de mulheres polonesas com mais de 15 anos sofreram violência física ou sexual alguma vez na vida, segundo o Instituto Europeu de Igualdade de Gênero (EIGE).

Zonas livres de LGBTs

No início de agosto, a condenação a dois meses de prisão de uma ativista transexual foi o estopim para uma série de manifestações em defesa dos direitos dos LGBTs em Varsóvia e na Cracóvia.[3] Os protestos, apelidados de “Stonewall da Polônia” – em referência à Revolta de Stonewall, de 1969 –, foram também uma resposta às várias ações que o governo tem tomado para criminalizar os LGBTs.

Na Polônia, o casamento entre pessoas do mesmo sexo não é válido, inclusive o conceito de união estável, como é vigente, por exemplo, no Brasil, não é reconhecido. Isso significa que casais gay não podem acessar o sistema de saúde (público ou privado) como dependente um do outro, não podem declarar a/o companheira/o como dependente no imposto de renda, não têm direito sobre imóveis comprados em conjunto, heranças ou qualquer outra garantia após a morte da/o cônjuge. Os conservadores não só não estão dispostos a não reconhecer esses direitos básicos, como vão além.

Em 2018, o PiS impôs uma reforma da educação que, ademais de priorizar a história nacional nos currículos escolares, defende os valores cristãos e da tradição familiar. Apesar dos inúmeros escândalos de abuso sexual contra crianças envolvendo padres na Polônia, o governo não deixa de apoiar a Igreja Católica, como resposta aos escândalos, ao invés de pressionar por investigações, passou ao contra-ataque, escolhendo como alvo o movimento LGBT, que foi declarado pela liderança governista como inimigo da família, da pátria polonesa e da tradicional cultura cristã.

Durante sua campanha para reeleição, em julho desse ano, o presidente Andrzej Duda, prometeu proibir o ensino de “questões de gênero” nas escolas e afirmou em discursos que os homossexuais são “inimigos piores do que os comunistas” e que “estão tentando nos convencer de que eles são gente”. O governo também tem feito uma campanha para que as autoridades locais se abstenham de ações que possam ser interpretadas como “tolerantes” à comunidade LGBT. Ao mesmo tempo que se esforça para impedir ajuda financeira às organizações não-governamentais que ajudem a promover direitos igualitários para essa população nas regiões que já se declararam como “zonas livres de LGBTs”.

No início do ano, cerca de um terço das cidades polonesas, a maioria delas da região sudeste da Polônia, uma área rural e conservadora, reduto eleitoral do PiS e onde a Igreja Católica tem muita influência, se declararam “zonas livres da ideologia LGBTs”. São lugares onde homossexuais, transexuais e bissexuais não são bem-vindos e a tolerância sexual é rejeitada. Nessas regiões marchas do orgulho gay ou qualquer manifestação ou ato de rua que envolva a luta por direitos dos LGBTs são proibidos e demonstrações públicas de afeto entre LGBTs e expressões de identidades de gênero que não seja a cisgênera perseguidos.

Embora essa declaração, que conta com o apoio explícito do PiS, não tenha validade jurídica, e tenha inclusive desencadeado sanções econômicas por parte da União Europeia (UE) está carregada de uma retórica que tem por finalidade estimular a intolerância e criminalizar os LGBTs. Na prática, LGBTs estão sendo hostilizados e expulsos de suas regiões, impondo-se a eles o exílio ou a clandestinidade.

Lei de imprensa e reforma no judiciário

Todas essas medidas se inserem num contexto mais amplo de ataque às liberdades democráticas, com o aumento do controle sobre os meios de comunicação e o sistema judiciário, incluindo o Supremo Tribunal e o Tribunal Constitucional. Antes mesmo de retornar o governo em 2015, o PiS sabotou a indicação de juízes para o TC que haviam sido feitas pelo governo anterior. Dessa forma, assegurou que cinco vagas estivessem abertas quando voltou ao poder. No total, o partido indicou oito dos quinze juízes da Corte, o que inclusive foi determinante para a atual decisão restringindo o aborto.

Em 2016 o governo fundiu as funções de ministro da justiça e procurador-geral, concedendo ao ministro poder direto sobre todos os procuradores. Outra medida foi a aprovação de uma lei alterando decisões do TC, que passaram a necessitar de uma maioria de dois terços para passar a valer, contrariando a regra anterior de maioria simples, dificultando assim barrar leis polêmicas. Em 2017 outra mudança na legislação deu ao ministro da justiça poder de apontar e demitir presidentes de tribunais de primeira instância, a lei concedia ainda ao ministro poder para demitir os juízes do Supremo Tribunal e escolher os seus substitutos e impunha que 22 dos 25 membros do Conselho Nacional de Justiça, anteriormente eleito pela comunidade judiciária polaca passassem a ser escolhidos pelo parlamento. Em 2018, nova legislação reduzindo a idade para aposentadoria compulsória dos juízes da Suprema Corte foi aprovada, obrigando cerca de um terço dos magistrados a se aposentar. Em dezembro do ano passado, o parlamento polonês aprovou a chamada “lei da focinheira”, que reprime magistrados que discordem das reformas políticas realizadas pelo atual governo. Parte dessas medidas acabaram sendo revertidas pela pressão das ruas e da ameaça de sanções por parte da UE.

Uma lei de imprensa, sancionada em janeiro de 2016, reforçou o controle sobre a televisão e a rádio estatais, permitindo ao governo nomear e demitir os diretores das cadeias de TV e rádio públicas (papel que antes pertencia a um comitê de supervisão da mídia) e obrigando a imprensa pública a seguir a linha oficial do governo e a exaltar a história da Polônia. O governo é também acusado de perseguir jornalistas independentes nos veículos públicos.

Greve geral

Os protestos atuais contra a restrição do aborto não dão sinais de arrefecimento, pelo contrário, na quarta-feira (28) as mulheres convocaram uma greve geral contra a decisão do TC e contra o governo. Por todo o território polonês, meninas, mulheres e homens aliados aderiram ao movimento, não comparecendo ao trabalho em empresas públicas e privadas, pequenos comerciantes fecharam as portas de estabelecimentos em apoio à greve.

Aulas também foram canceladas em diversas instituições. Na Universidade de Gdansk, uma das maiores da Polônia, foi grande a adesão ao ato organizado no campus por estudantes e funcionários.  Em Opole, no centro do país, estudantes de Medicina aderiram à greve e protestaram em frente à universidade. Em Varsóvia, outro grupo de estudantes protestou com aventais em frente à sede do PiS.

À noite, milhares de pessoas voltaram a sair às ruas aos gritos de “hipócritas” e “fanáticos” dirigidos ao governo. Os manifestantes levavam cartazes com dizeres como “a revolução é uma mulher” e “eu preferia ficar em casa, mas tenho um governo para derrubar”. Muitos exibiam um raio vermelho pintado na testa, que se tornou símbolo da contestação.

O governo do PiS prometeu reprimir os protestos, mas a luta das mulheres, que tem um forte tom antigoverno, parece ter conquistado a simpatia até de alguns setores da polícia. A mídia local tem mostrado alguns policiais, homens e mulheres, batendo palmas enquanto os manifestantes passam. De acordo com uma pesquisa de opinião realizada pela Fundação Ibris, cerca de 66% dos entrevistados se opõem à decisão do TC, enquanto 69% desejam um referendo sobre se as mudanças devem entrar em vigor.

[1] O partido já havia estado à frente do executivo entre 2005 e 2010, tendo perdido a maioria do parlamento e consequentemente a chefia do governo em 2007.

[2] Ver artigo: https://litci.org/pt/polonia-massiva-mobilizacao-em-varsovia-contra-o-veto-a-lei-do-aborto/

[3] Ver artigo: https://www.pstu.org.br/polonia-liberdade-imediata-para-margot-fim-da-segregacao-as-lgbts-e-das-zonas-livres/