… as duas “opções em luta” [Lula e Alckmin] são, a bem da verdade, a expressão nanica do que há muito se reproduz em termos políticos nos EUA: “um sistema unipartidário com duas alas de direita”.“… alguma força aparentemente incontrolável de inércia parece ser capaz de transformar – com freqüência deprimente – mesmo as ‘boas intenções’ de manifestos políticos prometedores, em ‘pedras para pavimentar a estrada para o inferno’, nas palavras imortais de Dante.”
István Mészáros (em A Crise Estrutural da Política, Maceió, 2006).

Desde a Crítica da Economia Política de Marx conhecemos o fato de que o capital se expande e se acumula por meio de contradições e que a mais dura realidade dela é o simultâneo e absolutamente necessário desenvolvimento da miséria.

No auge do Imperialismo, o Estado – enquanto gerente político da totalizante estrutura de comando do capital – desperta para os perigos que os alarmantes índices de crescimento da pobreza e “derivados”, encontrados, sobretudo, nas nações periféricas, começam a representar para o (sempre relativo) equilíbrio do sistema. Então, sob o pretexto de ser controlada, a miséria vence as barreiras da mundanidade real e se institucionaliza sob o codinome de “políticas sociais”. Desde aqueles longínquos anos que sediam os acontecimentos do pós-guerra, da guerra fria, a fome deixa de ser um problema estrutural e, por decreto, se converte numa contingência política corrigível de forma mais ou menos fácil, dependendo das oportunidades eleitorais oferecidas pela “sociedade civil”. Eis os ingredientes que compõem a mais elevada crença sobre “participação política”, “democracia” e cidadania.

É assim que os dois candidatos à presidência da república tratam a “questão” da fome no país, como uma mercadoria, a mais podre delas; é com esse “tema” que nos oferecem, diariamente, pela rádio e pela TV, espetáculos dantescos com seres compungidos a situações escorchantes, com muito sofrimento e humilhação nos olhos, agradecendo as políticas de um na esfera federal, de outro na esfera estadual, que “contribuíram” para o silêncio tão sonhado (e tão fortuito) do estômago de seus filhos.

Se a fome é o sintoma mais cruel da crise estrutural do capital, o oportunismo cínico, tal como o problema é tratado pela instituição mais democrática do sistema – o sufrágio universal –, vem a ser o sintoma correlato da crise estrutural da política, sua correspondente indissolúvel.

Muito a propósito, o texto A Crise Estrutural da Política traz a marca da radicalidade e da lucidez característica do filósofo marxista István Mészáros ( ), e seu conteúdo compõe todos os elementos mais do que necessários a uma reflexão realista e responsável sobre o “grande evento nacional de 29 de outubro”, ajudando-nos a colocá-lo no devido lugar que ocupa entre as contradições do sistema. Mesmo porque o exemplo se encaixa como luva no que ele considera como disputa entre políticos prometedores em pedras que pavimentam o inferno. E, fiquemos atentos, pois hoje a abrangência do inferno é global e seu significado é muito mais ardiloso do que se poderia supor a algumas décadas atrás.

Tendo em vista as proporções que a efeméride merece e do que haverá de decidir, as duas “opções em luta” são, a bem da verdade, a expressão nanica do que há muito se reproduz em termos políticos nos EUA: “um sistema unipartidário com duas alas de direita” (Gore Vidal citado por Mészáros). Ora, com luvas de pelica ou com soco inglês, literalmente, democratas e republicanos: (1) tratam com desprezo olímpico a polida diplomacia quando se trata de defender a qualquer custo, inclusive pela cada vez mais necessária supressão das garantias democráticas, a hegemonia do império que representam; (2) se enfrentam na tribuna para impor os interesses dos setores que compõem os capitais privados e que terão mais “competência histórica” para administrar a inexorável fase belicista do império estadunidense.

Tanto lá como cá, portanto, a queda-de-braço se define entre capitais e não entre os pobres de corpo e de alma que se iludem com a sua cada vez mais inútil condição de “cidadãos”. Assim, parafraseando Marx em relação ao atraso alemão, diríamos que se nada foi feito para mudar a nossa condição de “quintal dos yankees”, podemos supor que não somos, nem seremos contemporâneos da sua opulência, mas somos cada vez mais contemporâneos da sua decadência.

É essa crise estrutural da política de que nos fala Mészáros, da política como instrumento de controle do capital, da política “parlamentar e democrática”, da política que assume crescente e irreversivelmente a sua face autoritária, fascista, horrenda. E esse fenômeno não é nacional, local, reformável. É planetário e essencialmente destrutivo.

Nessa medida, o neoliberalismo bem como a “singeleza” do seu jeito de laissez faire, laissez passer (“deixe-se fazer, deixe-se passar”) não é uma opção criada pelo sistema, mas a sua última fronteira. E a crise política, a mesma que provoca o desinteresse e a apatia resignada dos “cidadãos” mais crédulos, corresponde a sua mais absoluta incapacidade de controlar o mundo das contradições e da concentração das riquezas, mundo, sobretudo, da fome, da desnutrição, das doenças, da guerra, da exploração fenomenal do trabalho – assalariado, informal, escravo, seja lá como for a sua forma atual, desde que incida favoravelmente na produção, na acumulação e na concentração de riquezas como capital. Esse, segundo Mészáros, é fundamentalmente o mundo das desigualdades estruturais.

Por isso e por muito mais ainda, seu texto é de importância vital principalmente aos que insistem em universalizar o sentido histórico e contingente da crise política desse mundo. Isso quer dizer que, longe de ser algo em desaparição, a política é uma necessidade histórica e precisa, o mais urgentemente possível, voltar a ser compreendida e praticada como instrumento de confronto contra esse mundo, como instrumento insubstituível da luta de classes. Ou seja, a política para além do capital e sua ordem, efetivamente socialista ou – em duas palavras – a política entendida como práxis revolucionária.

Portanto – sejamos realistas –, qualquer que seja o resultado das eleições de domingo, a diferença mais significativa entre os candidatos e suas “propostas” é apenas uma questão de quantidade: quantidade de pedras que cada um dispõe para pavimentar o caminho que nos levará mais cedo ou mais tarde para o inferno. Em um cenário como esse – no qual nenhuma “proposta” da ordem nos representa – o novo desafio à convicção dos que compreendem a política como instrumento insubstituível da luta de classes só deixa uma saída, qualquer que seja o eleito para administrar a crise estrutural do capital (e da política do capital): rearticular a ofensiva socialista.

  • Para ler a tradução portuguesa do texto de Mészáros, acesse:
    http://resistir.info/meszaros/crise_estrutural_da_politica.html

  • Para ler a versão original em inglês, acesse:
    http://www.globalresearch.ca/index.php?context=viewArticle&code=MéS20061003&articleId=3371

    (*) Texto de apresentação ao ensaio A Crise Estrutural da Política (“The Structural Crisis of Politics”), originalmente exposto por István Mészáros enquanto discurso de abertura do 13º Congresso Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, em Maceió-AL, Brasil, 4/mai./2006:

    • Versão traduzida ao português – I.M. A Crise Estrutural da Política. Lisboa: Resistir.info, out./2006. Texto disponível em: .

    • Versão original em inglês – I.M. The Structural Crisis of Politics. US: Monthly Review, v. 58, oct./2006. Texto disponível em: .

    (**) Professora do Depto. de Sociologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP, campus Araraquara).

    ( ) Marxista original da Hungria que colaborou diretamente com György Luckács, junto à Universidade de Budapeste, nos anos que antecederam à invasão stalinista na Hungria em 1956. Posteriormente, radicou-se na Inglaterra – junto à Universidade de Sussex –, onde se aposentou em 1995. O filósofo mantém-se em atividade e já visitou diversas vezes o país, por ocasião de publicações recentemente lançadas de suas mais importantes obras, traduzidas ao português do Brasil: “Marx’s Theory of Alienation” (1970) [ed. bras.: “A teoria da alienação em Marx”, 2006]; “The Power of Ideology” (1989) [ed. bras.: “O Poder da Ideologia”, 2004]; “Beyond Capital” (1995) [ed. bras.: “Para Além do Capital”, 2002]; “Socialism or Barbarism: from the ‘American century’ to the crossroads” (2001) [ed. bras.: “O Século XXI: Socialismo ou Barbárie?”, 2003].