A nova ministra da Cultura, Ana de Holanda, acaba de tomar posse e aprovar o Procultura, um plano geral do governo Dilma para todo o país e todas as áreas da Cultura. Aqui analisamos mais detidamente o Plano Setorial de Teatro, cujos eixos norteiam igualmente os demais setores.

Pode-se dizer que é uma “política cultural frente-populista”, que joga migalhas para os artistas, mas está assentada na parceria público-privada, de caráter neoliberal, que defende os interesses do grande capital. É uma política no geral bem ampla e pouco concreta, mas que na essência transforma o Estado em um mediador entre o capital e a arte, entre os empresários e os artistas.

O Plano Setorial de Teatro é um exemplo dessa política. Elaborado pela Secretaria de Políticas Culturais do Ministério da Cultura, foi aprovado em dezembro de 2010. Trata-se de uma lista de boas intenções que só sairá do papel se a parceria público-privada ocorrer. O Estado entra com o dinheiro público, por meio das benesses da renúncia fiscal. Os empresários – bancos, empresas nacionais e estrangeiras, grandes Fundações privadas – ficam com a “mais-valia”.

Na definição marxista, “mais-valia” é a parte do trabalho realizado pelo operário e não pago pelo patrão. O operário recebe um salário X que cobre apenas uma parte do trabalho que realiza; tudo o mais que produz além desse horário não é pago. A mais-valia não ocorre apenas no trabalho fabril. Na arte e na cultura, ela também ocorre, e se manifesta quando o empresário “compra” um espetáculo (teatral, musical etc.) para o qual não investiu um tostão. É um preço simbólico, porque de tudo o que foi gasto na produção do espetáculo, apenas uma pequena parte é paga. Todo o restante, incluindo o tempo dos artistas e sua capacidade criativa (que não tem preço), além de tudo o que aquele espetáculo rende para o empresário em matéria de retorno financeiro e institucional, é a mais-valia que vai para o bolso do empresário.

Essa é, portanto, uma relação de exploração. O que o Estado burguês faz é intermediar essa relação e a parceria público-privada como forma velada de privatização do papel do Estado tem como centro o mecanismo de renúncia fiscal. A renúncia fiscal significa “não pagar impostos”. Qualquer empresa que queira instalar-se aqui tem isenção de impostos caso faça algum tipo de “investimento social” (a chamada contrapartida social). O melhor exemplo são as zonas francas. A empresa se instala e coloca iluminação pública nas ruas próximas à planta, urbaniza o bairro, coloca algum tipo de transporte e tudo isso é abatido dos impostos devidos. Claro que todos esses “benefícios” servem em última instância à própria empresa, mas passam a imagem de que estão auxiliando a população local.

No caso da cultura, a renúncia fiscal significa a captação de recursos por parte das empresas privadas diretamente dos cofres públicos. Por meio do Procultura, o governo de frente popular segue o modelo das Câmaras Setoriais implantadas em 2005 em todo o país. No caso das artes, segundo o Minc, “essas Câmaras devem ser espaços permanentes de diálogo entre o Estado, a Sociedade e o Setor privado na elaboração de políticas e diretrizes para o Plano Nacional de Cultura”. Nesses “espaços permanentes de diálogo” só não conseguimos encontrar o lugar do setor privado, porque o Estado entra com a verba e a Sociedade entra com os artistas, quê papel cumpre o empresário? A rigor, nenhum, mas de fato, é ele quem dá as cartas nesse jogo.

Segundo o projeto, “instaura-se um novo modelo de relação entre Estado e Sociedade Civil, que passam a dialogar e pactuar sobre o fazer teatral no país”. Diz o Plano: “Temos a nosso favor a constante consulta às nossas bases nos estados e diversas entidades às quais estamos todos ligados: movimentos de base locais, organizações das companhias, grupos, artistas e produtores independentes, diversas redes organizadas de teatro e, principalmente, representações na Pré-conferência Setorial e na Conferência Nacional, formando uma extensa rede de consulta”.

De fato, um diálogo entre o Estado (que deveria subvencionar a arte) e a Sociedade Civil (artistas e público) não resolve nada, porque os empresários estão metidos nesse “diálogo” e são os que direcionam as verbas, portanto, os que verdadeiramente decidem. E essa “extensa rede de consulta” criada pelo Estado junto com a Sociedade Civil funciona, na verdade, como assessora dos empresários para assuntos artísticos, sem ganhar nada por isso. São profissionais na sua maioria formados em escolas públicas, sem qualquer dispêndio por parte dos empresários, ou então artistas de notório saber, que ingenuamente servem de “assessores” dos empresários para assuntos culturais na ilusão de estarem contribuindo para a democratização da arte. Conclusão: os empresários não investem nada na criação dessa “rede de consulta” e se beneficiam dela amplamente.

Parceria Público-Privada (PPP) e renúncia fiscal, dois mecanismos de interesse do capital privado
Numa leitura atenta percebe-se que o plano não é adequado à realidade brasileira, privilegia a quantidade e não a qualidade e não diz de onde vai sair o dinheiro para a concretização de todas as medidas propostas. Já na Introdução, diz a que veio: fomentar a política de parceria público-privada, o que já sabemos o que significa. A Introdução já desmente do primeiro capítulo, dedicado ao papel do Estado. A este caberia apenas frases genéricas, constatações destinadas a agradar a gregos e troianos, do tipo “fortalecer a função do Estado na institucionalização das políticas culturais para o teatro”, “intensificar o planejamento de programas e ações voltadas ao campo teatral” e “consolidar a execução de políticas públicas para o teatro”. Tudo o que não está sendo feito hoje ou não foi feito desde que Lula tomou posse, passará a ser feito agora, de acordo com o Plano. Incentivar o teatro, apoiar os grupos, promover estudos, enfim, tudo o que a classe teatral vem exigindo há anos. Mas o curioso é que não se informa o essencial: de onde vai sair o dinheiro para tudo isso, e quem vai realizar? E por que não informa? Porque não pode dizer que o dinheiro vai sair do bolso do próprio trabalhador, em forma de impostos que ele paga para ter serviços públicos de qualidade e gratuitos, inclusive o acesso à cultura. No item 1.2.1 diz que pretende criar políticas de fomento para manutenção de espaços públicos e privados para as atividades cênicas, o que significa que o Estado vai financiar (com dinheiro público) os espaços privados, que depois cobram ingressos da população. Ou seja, os empresários ganham duas vezes: não pagam impostos e ainda por cima têm seus espaços (teatros, casas de show, cinemas etc) mantidos com dinheiro público.

O Plano é tão distante da realidade que desmente o que vem sendo feito até agora. Diz, por exemplo, que pretende incentivar o uso gratuito de praças e ruas para o teatro, como se o MinC não soubesse que hoje os grupos estão sendo brutalmente reprimidos pela polícia, espancados e expulsos das ruas e praças. Se o Plano pretende mesmo incentivar o uso desses espaços, o governo deveria sair imediata e intransigentemente em defesa do teatro de rua, impedindo que a polícia toque um dedo sequer nos grupos. Do contrário, é puro discurso.

Cultura como negócio, arte como concorrência
Depois de uma lista enorme de promessas – estimular a oferta de cursos técnicos e criar parcerias entre a Funarte e as entidades privadas para fazer treinamento de atores – o Plano deixa claro seu caráter privatista e seu objetivo de transformar a arte em negócio, em empreendimento capitalista, e não um serviço público que deva obrigatoriamente ser garantido pelo Estado. A parceria com as entidades privadas deverá treinar os artistas em gestão cultural, bem como estimular o empreendedorismo. Isso significa que os artistas devem passar a ser “homens de negócio”, que saibam “se virar” para continuar fazendo arte, que se transformem em empresas lucrativas, que corram atrás de patrocínio, que disputem o mercado com outras empresas, que entrem na concorrência encarniçada do mundo capitalista.

Essa é exatamente a situação que vivemos hoje, e o resultado é que nessa briga pelo mercado apenas uns poucos grupos conseguem sair adiante, às custas de se transformarem em empresas e seguirem os padrões mercadológicos. A grande maioria dos artistas vive à míngua, com péssimos rendimentos, sem apoio dos serviços públicos e total insegurança no trabalho.

Quando criticamos o fato de que o plano privilegia a quantidade e não a qualidade, dizemos que passa a idéia de que o governo quer ampliar ao máximo, para todo o país, para milhões e milhões de pessoas, o acesso à arte. Em sã consciência, sabemos que dizer isso é o mesmo que dizer que ninguém terá acesso à arte. Se o foco do governo Dilma – como ela não cansa de afirmar – é erradicar a pobreza, como o MinC solta um Plano de Cultura que promete acesso à arte para todos? Isso significaria injeção massiva de investimentos em Cultura e não na erradicação da fome! Por outro lado, Cultura para todos exige algo que a antecede, ou seja, Educação para todos. O que também significaria redução do orçamento para a Cultura.

Por outro lado, Cultura para todos significa que a qualidade dos projetos artísticos irá para as calendas gregas, sem esquecer que o governo promete a todos a possibilidade de acesso à arte, enquanto deixa os grupos que já existem à míngua. Sem falar que a cultura e a arte são importantes veículos ideológicos, sobre os quais as empresas privadas nacionais e multinacionais têm o maior interesse em lançar mão, colocando em perigo a própria soberania nacional e cultural de nosso povo.

Frente para defender a Cultura?
Para não deixar dúvida sobre o caráter frente-populista de sua política, o governo acaba de dar seu aval a uma auto-intitulada Frente Mista de Cultura, cujo objetivo será o de defender a aplicação das políticas culturais. É uma grande frente popular reunindo 250 parlamentares de todos os partidos burgueses (PV, PPS, PT, PMDB, PP, PSDB, DEM, PSB), com a presença do Psol, que deverá “acompanhar a aplicação dos projetos e programas culturais do governo”. A presidente da Frente é Jandira Feghali (PCdoB) e o vice, Cristovan Buarque (PDT). Roberto Requião do PMDB do Paraná integra a Comissão como Presidente da Comissão de Educação e Cultura do Senado, e nessa Frente a cidade de São Paulo será representada pelo deputado Tiririca. Na maioria são parlamentares que nunca tiveram qualquer preocupação com a questão da Cultura, são representantes de partidos burgueses, que estão há anos no parlamento e são, portanto, co-responsáveis pela situação lamentável em que se encontram os artistas no país.

Sem contar que substituem os próprios trabalhadores, que são os que realmente devem controlar os atos do governo e dos parlamentares, de forma direta, através de seus organismos de classe. Agora, por orientação do governo Dilma, esses parlamentares se propõem a “defender” a cultura” quando o que realmente precisamos é de uma frente que defenda a cultura contra esses mesmos parlamentares.

Fomento em perigo
Ao mesmo tempo em que lança esse Plano, com grande alarde, o governo deixa correr em São Paulo um ataque violento contra a Lei Municipal de Fomento ao Teatro, que foi uma conquista da classe artística paulistana porque garante um mínimo de verba para os grupos. Por meio do Secretario de Cultura de São Paulo, Carlos Augusto Calil, a prefeitura criou o Decreto Municipal 51.300 para bombardear o Fomento. Aumenta a carga tributária dos projetos fomentados e converte os trabalhos prestados em convênios, além de enquadrar os grupos de dança e teatro em um mar de exigências burocráticas e fiscais, distorcendo totalmente o caráter da Lei.

Os artistas que defendem o PT, numa tentativa de livrar o governo Dilma de qualquer acusação, dizem que quem comete esse crime é a Prefeitura de São Paulo e não o governo federal. Em termos técnicos, é verdade, porque o Fomento é uma lei municipal e não federal. No entanto, politicamente isso é cabanagem, porque se o governo do PT lança um Plano Setorial de Teatro que fala em defender o fomento para todos, o primeiro que deveria fazer é sair em defesa da lei municipal de São Paulo, usar seu poder para impedir que Kassab e Calil destruam o fomento paulista e ao mesmo tempo destine mais verbas para os grupos. Se o governo Dilma e o MinC viram as costas para os ataques e deixam o fomento de São Paulo correndo perigo, não merecem nenhuma confiança por parte da classe artística de que os milhões de promessas que fazem no Plano Setorial de Teatro serão cumpridas.

Uma política cultural para chamar de nossa
Hoje existem cerca de 800 grupos de teatro no Estado de São Paulo. Outros tantos pelo Brasil afora. O que esses grupos precisam é de verba para desenvolver um trabalho continuo em teatro, sem o risco de interrupção e sem qualquer tipo de pressão do mercado para que façam este ou aquele tipo de teatro. Precisam de espaço para ensaiar e para apresentar seus trabalhos. Precisam de escolas públicas que ofereçam cursos de teatro de boa qualidade. E a população precisa ser incentivada a ir ao teatro, por meio de ingressos populares, salas de fácil acesso, divulgação ampla e massiva dos espetáculos.

Para isso, o governo precisa acabar com a renúncia fiscal e a parceria público-privada, mantendo uma relação direta com os artistas, sem qualquer interferência da empresa privada. Precisa incluir no orçamento da União, Estados e Municípios verba própria para as artes e a Cultura, discutida e definida em comum acordo com os artistas e a população, que possa contemplar todos os grupos teatrais, de forma equânime e democrática. Precisa abrir um plano de obras públicas para construir teatros, centros culturais em todos os bairros, salas de cinema, dança e circo, com espaços livres para os artistas ensaiarem e apresentarem suas obras. As ruas e praças públicas devem ser amplamente utilizadas pelo teatro de rua, sem qualquer tipo de repressão ou violência. O ensino do teatro e de todas as artes deve constar do curriculum de todas as escolas públicas, do primário à universidade.

Só assim a arte poderá aspirar a ser livre, verdadeira, a serviço da emancipação humana. A política cultural do governo Dilma não é democrática. É privatizante e defende uma arte a serviço do capital e do interesse privado. Por isso, deve ser repudiada pela classe artística e por todos os trabalhadores.