Os 25 anos da morte do escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues será marcado pela remontagem de vários de seus textos. Uma obra e um autor que precisam, e merecem, ser discutidosNo mundo da cultura e da arte, contradições sempre se fazem presentes, senão necessárias. Às vezes, períodos reacionários servem como campo fértil para uma produção cultural de altíssima qualidade, como foi o caso brasileiro, durante a ditadura. Outras, gente completamente reacionária, como Salvador Dali, produz uma obra genial.

O dramaturgo, escritor e jornalista Nelson Rodrigues, certamente, é um exemplo fiel desse último caso. Dono de uma personalidade explosiva e de postura política mais do que condenáveis, ele é, contudo, também autor de uma obra memorável.

Reacionário e machista
Se nos detivéssemos unicamente na biografia pessoal de Nelson Rodrigues, não faltariam motivos para um bombardeio de críticas. Pertencente a uma família de jornalistas, ele tornou-se desafortunadamente famoso ao utilizar de seus artigos para apoiar algumas das iniciativas mais reacionárias de nossa história, como o seu apoio à ditadura.

Proclamando-se o “único reacionário do país assumido”, Nelson utilizou-se de seu estilo mordaz para apoiar o golpe, atacar ferozmente o marxismo e espinafrar toda e qualquer iniciativa da esquerda; ao mesmo tempo em que rendia homenagens aos ditadores. Essa postura que lhe valeu a execração pública por parte da esquerda.

Ironia trágica da história, Nelson provou de seu próprio veneno quando seu filho, Nelsinho, foi preso e brutalmente torturado devido seu envolvimento com a luta armada. Uma situação que fez com que Nelson não só tentasse utilizar-se de suas espúrias ligações com a direita para tentar tirar da prisão gente como Hélio Pellegrino e Zuenir Ventura, como também acabou empurrando-o para a campanha pela anistia.
A bronca das feministas em relação a Nelson também não é despropositada. Afinal, é público e notório que o autor afirmou, dentro e fora de suas peças, que “as mulheres gostam de apanhar”. Como também é um fato que o autor tinha uma postura para lá de opressora em relação às suas mulheres.

Sabendo-se de tudo isso, muitos devem se questionar sobre o porquê de se dedicar a escrever sobre Nelson Rodrigues, particularmente nas páginas do Opinião Socialista.

O motivo é simples. Independente do que se possa afirmar sobre as suas posturas políticas, poucos são aqueles que ousariam negar um fato: seu papel fundamental na história do teatro brasileiro.

E mais: é sempre bom lembrar que, no campo da arte ou da cultura, o fato de execrarmos, denunciarmos e condenarmos as posturas políticas de um artista não pode significar tomar a mesma atitude em relação à sua produção artística.

Um cronista do pessimismo
Há muita gente que vincula a obra de Nelson Rodrigues às tragédias que cercaram sua vida, particularmente ao fato de ter assistido, aos 17 anos, o assassinato de seu irmão e ídolo pessoal, o jornalista esportivo Mário Rodrigues Filho, na redação do jornal, baleado por uma mulher que havia sido denunciada em uma escandalosa matéria sobre adultério, escrita, diga-se de passagem, por seu pai, que morreu dois meses depois.
Seja como for, o fato é que, em suas peças, o escritor construiu um dos universos mais sombrios de que se tem notícia. Como ele próprio fazia questão de afirmar, seu teatro é “desagradável”. E, certamente, o universo de suas peças não é dos mais simpáticos. Estupros, “perversões”, traições, incestos, prostituição, automutilações, assassinatos passionais e comportamentos totalmente amorais povoam histórias nas quais finais felizes são literalmente impossíveis, já que a tragédia assombra a tudo.

Contudo, entender esse universo apenas como fruto da mente “pervertida” de um machista inveterado é reduzir muito a força e a poesia que também se encontram em seus textos. Uma força que brota de uma lógica oposta ao reacionarismo do autor. Afinal, a crueza das peças de Nelson pode, e deve, ser vista como uma crônica das muitas mazelas que caracterizam a sociedade moderna e sua perversa divisão de classes.

Nelas, invariavelmente, a burguesia e a classe média suburbana carioca chafurdam em sua própria lama. São burgueses que se utilizam de seu poder para corromper e humilhar a tudo e a todos; pais de classe média que prostituem suas filhas para manter seu medíocre status; donas de casas que preenchem seu vazio existencial com neuroses e devassidão.

Um mundo que também vem à tona na série de crônicas A vida como ela é …, adaptadas há alguns anos pela TV Globo. Nos vários episódios há um desfile de personagens marcados pela tragédia, pela incapacidade de compreender o mundo em que vivem e pelos aspectos mais grotescos da vida. Uma situação que, geralmente, os leva à busca de saídas desesperadas, utilizadas pelo autor como comentário sobre o seu próprio pessimismo em relação à humanidade.

Um marco na história do teatro
Esse universo já se fazia presente na primeira peça de Nelson, A mulher sem Pecado (1941). Contudo, foi com Vestido de Noiva (1943), cuja adaptação cinematográfica, dirigida pelo filho de Nelson, Joffre Rodrigues, estreará no fim do mês. A peça provocou uma revolução no teatro brasileiro ao apresentar um texto dividido em três blocos que representam a realidade, a memória e a alucinação da protagonista.

Em ambos espetáculos, Nelson deu sinais de que estava realizando uma profunda reestruturação do teatro. Adotando uma linguagem direta, com diálogos curtos, secos e cortantes, e mesclando o mais cru e absurdo realismo a um mergulho profundo na dimensão psicológica dos personagens (o que implicava, muitas vezes, na quebra da lógica temporal), o autor apontava para novos caminhos que, do ponto de vista da técnica teatral, influenciariam nos anos seguintes até mesmo aqueles que o desprezam como figura pública.

Essas inovações foram, ainda, acompanhadas de algumas ousadias temáticas. Anjo Negro (1946) causou furor (e foi censurada) ao colocar no palco a tragédia de um homem negro inconformado com sua cor, casado com uma branca e que começa a sofrer com o racismo quando seus filhos mestiços nascem.

Já Beijo no Asfalto foi uma das primeiras peças a centrar a discussão sobre a homossexualidade, sendo, conseqüentemente, recebida a pedradas por amplos setores da crítica e do público e igualmente censurada, como também foram Álbum de Família, por nada menos do que 22 anos e Senhoras dos Afogados.

Exemplos das contradições que cercavam a perturbada figura de Nelson Rodrigues, essas obras, como todas as demais do autor, merecem, no mínimo, serem revisitadas sem um olhar preconceituoso (muitas vezes marcado pelas fracas e deturpadas adaptações que foram feitas para o cinema). Uma oportunidade que, durante o decorrer do semestre irá acontecer nas muitas remontagens que estão prometidas, em homenagem a Nelson.

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