Raoni de Lucena Souza

O objetivo deste texto é o de polemizar com as análises, expressas pela Corrente Socialista dos Trabalhadores (CST), por meio de duas matérias publicadas no jornal Combate Socialista[1] de número 119 e 120, respectivamente. O primeiro material foi publicado em novembro, ainda durante a campanha do segundo turno. O outro, em dezembro, já após o resultado eleitoral. Ambos os materiais trazem uma análise absolutamente positiva da campanha de Guilherme Boulos à prefeitura de São Paulo, tendo como critério quase absoluto o número de votos alcançado.

Por se tratar de uma das únicas correntes internas do PSOL que ainda se preocupam em construir análises sob os critérios marxistas, portanto, é importante travar esse pequeno texto de polêmica. Deste modo, abrindo um debate franco com os companheiros da CST e demais companheiros que tenham contato com esse texto sobre quais critérios devem ser usados pelos marxistas para avaliar se uma campanha foi positiva ou não.

De cara, o jornal no 119 nos chama a atenção pela capa, que traz uma imagem triunfante de Guilherme Boulos e Edmilson Rodrigues, os dois candidatos do PSOL que disputariam o segundo turno (nos municípios de São Paulo e Belém, respectivamente) acompanhada do título “VAMOS COM BOULOS E EDMILSON”. Em se tratando do material de uma corrente interna do PSOL, esse tipo de conteúdo não deveria ser motivo de surpresas, porém, a corrente já publicou inúmeros materiais críticos ao programa e à figura de Boulos, especialmente durante as eleições presidenciais, onde criticavam duramente o programa do então candidato por não se diferenciar categoricamente do PT. Bem, mas não vamos julgar o material pela sua capa, vamos ao seu conteúdo.

O texto sobre a campanha de Guilherme Boulos, assinado por Diego Vitello e Adriano Dias, começa assim:

“O PSOL fez uma ótima eleição na maior cidade do país. O fato de Guilherme Boulos ter superado os 20% no 1° turno e ido para o 2° é um fato fundamental desta eleição. Isso se combina com a importante crise do PT e do PCdoB na capital paulista. O PT faz a pior eleição de sua história na cidade, alcançando pouco mais de 8%. O PCdoB fez o pequeno percentual de 0,23%. O espaço à esquerda na cidade foi ocupado fundamentalmente pelo PSOL.”

A matéria do jornal nº 120, assinada por Danilo Bianchi e Diego Vitello, publicado já após o resultado eleitoral vai no mesmo sentido, ao afirmar que: “O PSOL, sob a liderança de Boulos, fez sua melhor eleição em São Paulo desde a fundação do partido”. Para corroborar tal afirmação, o texto apresenta a expressiva votação, que ultrapassou os 20% no primeiro turno e os 40% no segundo. Os dois textos citados ressaltam como positivo o fato de o partido não ter formado alianças com PT e PCdoB, que caracterizam como partícipes de um projeto de conciliação de classes, e sim com PCB e UP, partidos menores que fazem parte do que consideram um campo classista. O segundo texto faz, ainda, uma crítica ao fato de figuras ligadas a esse projeto de conciliação terem tido espaço no programa eleitoral de Boulos no segundo turno, citando nota anteriormente publicada pela corrente:

“Muitos companheiros e organizações políticas de dentro e de fora do PSOL viram como positivo a ida desses partidos ao programa de TV de Boulos. Que essa seria a fórmula que nos permitiria ganhar a eleição de fato e ‘unir a esquerda’. De nossa parte, não vemos assim. (…) A ida de Lula, Ciro, Marina e Dino ao nosso programa eleitoral tem, centralmente, o objetivo de ‘moderar’ a candidatura de Boulos e tentar impor que o ‘máximo’ que se pode fazer em um governo é o que eles fazem hoje em nível estadual e municipal onde governam. Esse modelo não pode ser o do PSOL.”

Não há nenhum desacordo com a análise dos dados eleitorais. O PSOL subiu de patamar eleitoralmente e a expressiva votação de Boulos em São Paulo cacifa o partido como um partido eleitoralmente viável, o que parece ser o principal objetivo da organização. Nesse ponto, podemos dizer que está correta a afirmação de que “o PSOL fez uma ótima eleição na maior cidade do país”. Porém, há um critério acima do número de votos a ser levado em consideração para se analisar do ponto de vista marxista, se uma campanha foi boa ou não: o programa.

Vamos aqui, recorrer a outros materiais publicados pela CST sobre o programa de Boulos em outros momentos. O primeiro, é uma crítica à sua entrevista ao programa Roda Viva em maio de 2018[2], que está disponível no site da corrente. Vejamos o que a corrente analisa sobre o programa apresentado por Boulos:

“(…) Boulos se limitou a defender, para acabar com as desigualdades sociais, com medidas como a Reforma Tributária Progressiva, a tributação de lucros e dividendos e a taxação das grandes fortunas. Ao não ir à raiz dos problemas, o dirigente do MTST se limita a políticas melhoristas, que não resolverão os graves problemas econômicos e sociais que vem sofrendo o povo trabalhador. Não poderia ser diferente, já que Boulos defende o programa Vamos. Como escreveu o companheiro Plinio: ‘Como modificar a orientação da política econômica sem colocar em questão o papel estratégico da Dívida Pública como centro nervoso da política econômica? A lista das omissões seria interminável. A Vamos fica na superfície da realidade. Ao ocultar as determinantes estruturais da miséria brasileira’ […] a Vamos responde com uma versão recauchutada do “melhorismo” lulista.”

Esse texto, pré-eleitoral, a corrente não economiza na tinta para criticar o programa do então pré-candidato e afirma com todas as letras que não toca em questões estruturais e não vai além do programa petista.

Já em setembro de 2018, na reta final da campanha eleitoral daquele ano, em texto assinado por Rosi Messias, também disponível no site da corrente, a CST convoca a direção do partido a reorganizar a campanha no sentido de demarcar mais claramente suas diferenças com o PT, avaliando como um erro grave a pouca diferenciação da chapa Guilherme Boulos e Sônia Guajajara com o programa petista[3]. Vejamos o que a própria autora escreve a respeito:

“Não nos submeteremos à pressão do regime democrático burguês, às pressões eleitorais como as do voto útil. Nosso jovem partido já tem uma história, fomos expulsos do PT por nos recusar a votar a reforma da previdência, o que nos levou a ser oposição de esquerda aos governos petistas, além disso somos o único partido com base parlamentar que não está envolvido em corrupção. Temos um acumulo da campanha de 2006, 2010 e 2014 que nos arma de artilharia contra o PT.”

Este texto termina com um chamado urgente de uma reunião da Executiva Nacional do PSOL para rearmar a campanha eleitoral.

O que mudou?

Nesse momento, é importante que perguntemos aos camaradas da CST o que mudou. Acaso Boulos rompeu com a plataforma política do Vamos? Acaso a campanha para a prefeitura de São Paulo avançou no sentido de atacar os problemas estruturais cujas omissões foram bem apontadas por Plínio?

Ao contrário, achamos que para a prefeitura, Boulos apresentou um programa tão ou mais recuado que em sua campanha presidencial. Continuou não diferenciando em nada com o PT, inclusive revindicou, acriticamente, o mandato de sua vice, Erundina[4].

Apresentou como saída estratégica, não a luta organizada da classe, mas a solidariedade filantrópica. Não buscou avançar na ruptura com o capitalismo, mas, ao contrário, apresentou como perspectiva administrá-lo de maneira mais racional e justa (como se fosse possível). Os apoios no segundo turno, apontados criticamente pela corrente, não são problemas isolados, mas produto do programa apresentado por Boulos, que contemplou muito bem figuras como Lula, Marina e Flávio Dino.

Sendo bastante rigoroso, o único elemento que avançou e que pode justificar a mudança de tom da CST para com o Guilherme Boulos e seu programa é o número de votos. Se na campanha presidencial, ele teve um número relativamente pequeno de votos, neste pleito, seu desempenho foi muito melhor, tendo inclusive, mais votos para prefeito do que há dois anos para presidente. São vários os fatores que podem ajudar a explicar esse avanço: desde a construção de Boulos como uma figura pública mais consolidada junto às massas, passando pela inexpressividade do candidato petista, não sendo o objetivo aqui desenvolver esse aspecto da análise.

A questão aqui é: se o programa de Boulos não avançou nos aspectos sublinhados pela própria CST, por que as críticas da corrente a esse programa desapareceram? Aqui, fica parecendo que a corrente acaba adotando como critério universal o número de votos. Se o programa recuado de 2018 fazia com que Boulos tivesse poucos votos, era necessário reorientar a campanha. Como em 2020, este mesmo programa lhe rendeu muitos votos, então guarda-se as críticas no bolso.

A campanha gigantesca que foi capaz de realizar a chapa Boulos e Erundina não pode ser subestimada. É sim um marco para o PSOL e quem nega isso é tolo. Não só pelos votos que conseguiu, mas também por mobilizar amplos setores da vanguarda dos movimentos sociais que acreditaram nesse projeto. A questão é: se uma campanha é capaz de mobilizar parte tão significativa dos elementos mais avançados da classe trabalhadora para um projeto de administração justa do capitalismo, antirradicalismo e solidariedade filantrópica, esta campanha (podemos também dizer, este candidato e este partido) é uma tijolo na construção da revolução brasileira ou um obstáculo a ela?

E para não ficar em cima do muro e terminar o texto apenas com a interrogação, a posição expressa aqui é a de que esta eleição alçou o PSOL e Guilherme Boulos a um patamar superior como grandes obstáculos para um processo revolucionário vitorioso no Brasil. O problema das alianças construídas para o segundo turno não são, em si, o problema central, mas apenas a consequência do problema de fundo que é o programa de conciliação do próprio candidato. A CST peca em combater as alianças com os partidos que, segundo eles, representam o projeto de conciliação de classes, mas não enxergar que a própria campanha de Boulos fortaleceu e renovou esse projeto.

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[1] Combate Socialista: jornal quinzenal publicado pela Corrente Socialista dos Trabalhadores (CST), considerada parte da ala esquerda do PSOL.

[2] http://cstpsol.com/home/index.php/2018/05/09/os-limites-da-entrevista-de-boulos-no-programa-roda-viva/

[3] http://cstpsol.com/home/index.php/2018/09/11/psol-deve-rearmar-a-campanha-do-boulos-sonia-para-combater-bolsonaro-e-o-voto-util/

[4] Erundina, quando foi prefeita de São Paulo (de 1989 a 1992), investiu na desorganização da classe trabalhadora, atacou as greves e governou a serviço dos capitalistas. Eleita com a proposta de estatizar o transporte, por exemplo,  ela investiu na privatização do sistema, fortalecendo a máfia do setor, com subsídios milionários, esvaziando a Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC) e atacando seu maior obstáculo: a greve dos condutores organizados em comissões de garagem.