Chico Science, o ``homem coletivo``
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Há dez anos, morria, num acidente de carro entre Olinda e Recife, Francisco França, o Chico Science. Muitas vezes, em suas músicas, Chico e a Nação Zumbi denunciaram a situação de pobreza dos trabalhadores e da juventude do Recife e apontaram para a necessidade de lutar pela transformação dessa realidade que ainda persiste lá e em todo o país.

Poderíamos falar de Chico Science de diversas maneiras. Da sua participação no movimento Mangue Bit, que ele, Fred Zero Quatro e outros tantos “Caranguejos com cérebro” fundaram para enterrar a antena parabólica, símbolo das novas tecnologias surgidas no início dos anos 1990, na lama dos manguezais recifenses, que representam a realidade cotidiana dos “homens caranguejos” da capital pernambucana. Da fusão do maracatu, embolada, guitarra elétrica e sintetizadores eletrônicos, que criou um novo ritmo, desafiando as repetições do rock e da música pop nacional, que muitas vezes fizeram as bandas brasileiras parecerem cópias mal acabadas dos seus originais americanos e ingleses. Poderíamos falar, também, do resgate da obra de Josué de Castro, autor de Geografia da Fome e Geopolítica da Fome, em suas canções.

Um aspecto que não pode ser esquecido, entretanto, na obra de Chico é a mensagem ideológica comprometida com a denúncia da miséria e da desigualdade social, com o combate à alienação e com a necessidade de mudar.

Eu me organizando posso desorganizar
Em várias canções, Chico Science e a Nação Zumbi, em seu curto trajeto, vão fundo na questão da pobreza e da desigualdade causada pelo capitalismo, que, no Nordeste brasileiro, assume uma face ainda mais perversa. Uma denúncia que foge dos clichês e dos lugares comuns e apontam causas e conseqüências.

Em A cidade, além da radiografia do Recife, fica claro quem constrói a riqueza da metrópole. Chico valoriza o trabalho dos “pedreiros suicidas” nas construções das “pedras evoluídas” da Recife moderna e, de certa forma, nos mostra quem ganha com o tal crescimento capitalista, tão em moda ultimamente: “a cidade só cresce, o de cima sobe e o debaixo desce”.

Em Banditismo por questão de classe, além de relembrar importantes revolucionários e lutadores – como os Panteras Negras, Zapata e Zumbi – ele fala da figura de um “homem coletivo” que “sente a necessidade de lutar”. Além disso, faz uma analogia interessante do “banditismo por necessidade”, do Cangaço de Virgulino Ferreira, e dos modernos “Lampiões”, levados ao crime pela sociedade dividida em classes. Tudo isso em pleno auge do neoliberalismo e da nova ordem mundial globalizada, que condena o conceito de classe social a ser uma “peça de museu”.

Mas é em Da lama ao caos que os trabalhadores e a juventude lutadora podem se identificar definitivamente. O refrão “eu desorganizando posso me organizar, que eu me organizando posso desorganizar” soa como combustível para lutar. E não é à toa que em diversos boletins, jornais sindicais e estudantis esse refrão foi impresso como uma espécie de chamado à necessária organização dos trabalhadores e estudantes de todo o país.

É de tiro certeiro, meu irmão, como bala que já cheira sangue, quando o gatilho é tão frio quanto quem tá na mira
Hoje, uma década depois, Chico Science teria motivos de sobra pra continuar cantando sua cidade. Não faltariam lutas pra incentivar, como, por exemplo, a revolta contra o aumento das tarifas de ônibus e pelo passe livre, que está completando um ano. Também não faltariam denúncias pra fazer, pois, como disse Fred Zero Quatro, “a cidade ainda está no hospital, respira por aparelhos” e permite que jovens de classe média violentem e matem meninas da periferia, levadas à prostituição, como aconteceu com Amanda de Oliveira no dia 20 de janeiro.

Nação Zumbi
É necessário lembrar que a Nação Zumbi, mesmo depois da morte de Chico Science, continuou criando coisas interessantíssimas e segue sendo umas das vozes dissonantes em meio a tanto lixo pré-fabricado pela indústria fonográfica. Canções como Quando a maré encher e Propaganda são exemplos da continuidade das preocupações levantadas nas letras da época de Chico, como pobreza e alienação.

Se houveram inevitáveis mudanças – afinal a presença de palco e a voz de Chico eram inconfundíveis – Jorge Du Peixe, Gilmar Bola Oito e toda a Nação tiveram o mérito de manter a sonoridade e muitas das características originais que nos trazem, em cada disco ou show, a genialidade de Chico Science de volta.