Doutor Sócrates

Em 1983, quando nasci derradeiramente, estava traçado que não iria ver, a não ser pela ajuda dos teipes, a seleção que mais empolgou os brasileiros depois da geração que ganhou o tri. A equipe que disputou o mundial de 82 era uma verdadeira constelação. Meu pai sempre dizia que a falha na conquista do título foi um mero detalhe, para uma seleção que encantava ao jogar com craques como Júnior, Falcão, Zico e Sócrates.

Desses gênios do futebol um se destacou dentro e fora do campo. Seu nome, Sócrates Brasileiro. Nas quatro linhas, foi um craque que se utilizou da fraqueza de Aquiles para potencializar uma jogada que desequilibrava os marcadores. A condução da redonda era fácil e suas jogadas eram objetivas.

Mas foi fora do campo, ou melhor, em outra arena, que Sócrates também se destacou. Magrão, como era conhecido, revolucionou o mundo do futebol e do esporte. Num país que ainda vivia uma ditadura, ele ousou junto com seus colegas de trabalho a modificar as regras do jogo dentro do Corínthians. Juntos, os atletas construíram a chamada democracia corintiana, que era uma espécie de regime interno do clube paulista onde os jogadores decidiam entre si os rumos do clube.

Com o desenvolvimento da campanha das diretas, a voz de Sócrates ganhou as praças e ele se tornou um apoiador de peso do movimento. Num comício, Sócrates afirmou que se a emenda Dante de Oliveira fosse aprovada ele não deixaria o país. Sem dúvida, o Doutor, como também era chamado, foi um craque na arena política.

Quando encerrou sua carreira futebolística continuou com o mesmo espírito crítico. Até o dia de hoje, vinha acompanhando suas opiniões nas páginas da Carta Capital semanalmente. Quando saiu do hospital há alguns dias comemorei com um amigo. Na semana passada me alegrou muito o seu artigo. No referido texto, Sócrates mostra a hipocrisia da FIFA ao tratar do tema do racismo no futebol e a falta de discernimento de Pelé ao não ter uma posição firme em relação ao tema. Magrão é enfático ao se referir ao Rei do futebol: “de preto parece ter somente a cor da pele”.

Hoje li seu último artigo no semanário. Com a lucidez de sempre mostrou como a Copa está sendo tratada como “propriedade privada, sem compromisso algum com o povo brasileiro”. Será que algum jogador atual toparia abrir essa discussão? E o que falar de Ronaldo à frente da copa do mundo? Ou dos ídolos atuais que ganham as páginas de jornais como agressores de mulheres? Definitivamente, faltam bons exemplos no futebol atual. Faltam Ídolos, isso mesmo com “i” maiúsculo.

A morte do Doutor Sócrates deixa um vazio em todos aqueles que acreditam nas potencialidades humanas e que por isso sonham com um mundo melhor. Em tempos de um profundo obscurantismo cultural e da inexistência na consciência do povo trabalhador de que os sonhos podem se realizar, perdemos um artista. Os que seguem acreditando, lutando e sonhando saúdam Sócrates com o braço esquerdo estendido e o punho cerrado. Sócrates, Presente!