Presidente Carlos Mesa “lava as mãos” e a multinacional Petrobrás ameaça reduzir presença no paísNo dia 17 de maio, foi promulgada a nova lei sobre a exploração petrolífera e de gás natural na Bolívia. O texto mantém a alíquota de royalties em 18%, taxa em 32% as multinacionais e institui o controle da estatal semi-privatizada Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB) para a distribuição e comercialização dos hidrocarbonetos extraídos no país.

O presidente Carlos Mesa omitiu-se, sem sancionar ou vetar a nova lei. A imagem bíblica “Lavou as mãos” foi usada à exaustão pela imprensa burguesa para designar a aquiescência do presidente boliviano – qual Pilatos face ao famigerado julgamento romano. Valendo-se do artigo 78 da Constituição boliviana, o presidente delegou ao Congresso – sob a chancela de Hormando Vaca Diez (MNR) – a aprovação de uma questão que vem gerando polêmica, expectativas e crise em todo o país. A insurreição popular que exigiu a nacionalização do setor há dois anos volta à cena política, nesta semana, sob a mesma bandeira de luta.

Onda de protestos varrem o país
Desde o início da semana diversos sindicatos e movimentos sociais mantêm bloqueadas ao menos seis estradas provinciais, do oeste ao sul da Bolívia; da mesma forma estradas que ligam a capital La Paz ao Chile, ao Peru e ao restante do país foram parcialmente obstaculizadas e, ainda, mais de 300 camponeses cocaleiros marcham em direção à sede do governo como forma de pressionar por mudanças na lei ora sancionada. Os manifestantes consideram que a nova lei não recuperou a propriedade dos hidrocarbonetos.

Simultaneamente à evidente “crise nas alturas” do bloco no poder de Estado boliviano e entre as distintas frações das classes dominantes, explicitada pelos atritos entre Executivo e Legislativo além da mais absoluta ausência de consenso em torno às políticas do governo, irrompe o descontentamento e a indignação das classes oprimidas de um país no qual mais de dois terços da população vive abaixo do limiar da miséria absoluta – operários, indígenas, mineiros e camponeses – que se manifestam através de diferentes métodos de combate, tais como marchas populares e bloqueios de estradas, reivindicando a nacionalização do gás e do petróleo, o fechamento do Congresso e a derrubada de Mesa.

Organizações sindicais e associações de moradores da cidade de El Alto, próxima a capital, indicaram a radicalização dos protestos, com o anúncio de uma greve geral, bloqueio do aeroporto internacional da região e a ocupação das instalações da YPFB. Trabalhadores da educação e da saúde aderiram à paralisação, em nível nacional, enquanto mineiros entraram em guerra de fome. Os trabalhadores de El Alto – reunidos junto à Central Obrera Regional (COR) e à Federación de Juntas Vecinales (Fejuve) – rechaçaram novamente a lei do gás que segue fazendo concessões à exploração de empresas multinacionais. Consideram ainda que a promulgação legaliza contratos de risco compartilhado a que se subscreveram ilegalmente as petrolíferas. A reivindicação pela nacionalização do setor – expropriação das multinacionais, sem indenização – encontra-se arraigada na consciência social da maioria da população boliviana, que assistiu a uma profunda deterioração de suas já precárias condições de vida enquanto cresciam os investimentos das multinacionais ligadas à extração de hidrocarbonetos na década de 1990.

Manifestações cercam a Praça Murillo – onde se encontram as sedes dos poderes Executivo e Legislativo do país –, e centenas de trabalhadores exigem a nacionalização. Os vizinhos de El Alto, os camponeses em marcha à La Paz e os sucessivos cortes de estrada obrigaram o governo a ordenar o total isolamento de todo e qualquer acesso aos centros nervosos do poder político na Bolívia. Os bloqueios se mantêm em Parotani, a 40 km de Cochabamba, em Caihuasi, a 100 km da mesma cidade, e também na estrada que une La Paz a Oruro. Na sede de governo, mineiros e vizinhos de El Alto realizaram uma marcha acompanhada de explosões de dinamite, seguida de dura repressão com gás lacrimogêneo e jatos d’água, por parte da polícia.

Ao passo em que consentia “passivamente” a promulgação da nova lei, Mesa apresentou-se em cadeia nacional de rádio e televisão, com todo o seu gabinete, na noite desta terça-feira, 17 de maio, para anunciar um plano de governo de 2005 a 2007 – com cerca de 50 decretos, resoluções e projetos de lei que versam desde política industrial ao combate à febre aftosa –, intitulado “Bolívia Produtiva e Solidária”.

“As bases nos superam”
O secretário-geral da Central Obrera Boliviana (COB), Jaime Solares, foi “fustigado e criticado” – segundo a imprensa boliviana – com adjetivos próximos a “burocrata” e “traidor”, assim como os parlamentares que aprovaram a nova lei. Enquanto isso, o partido de oposição Movimiento al Socialismo (MAS), do dirigente cocalero Evo Morales – que há dois anos aderiu ativamente à proposta de consertação social do governo Mesa, em detrimento do processo revolucionário até então em marcha – pronunciou-se favorável a algumas mudanças na lei. As propostas limitam-se à cobrança de 50% de royalties às multinacionais petrolíferas, a possibilidade de o Estado fixar preços do setor nos mercados interno e externo e o pleito de industrialização do gás e do petróleo na Bolívia. “As bases nos superam. Nós queríamos marchar pelo aumento de royalties, mas a população quer a nacionalização…”, declarou o dirigente do MAS Román Loayza, num exemplo nunca antes tão autoconsciente da crise de direção revolucionária que assola a América Latina e o mundo no alvorecer do século XXI. A nacionalização da produção e distribuição do setor no país, com a expropriação de empresas como a Petrobrás e a Repsol, que exploram as riquezas produzidas pelos trabalhadores bolivianos.

Petrobrás ameaça reduzir presença na Bolívia
O jornal O Estado de S. Paulo, no dia 18 de maio, anunciou a nova Lei do gás com as frases “Bolívia aprova lei que prejudica a Petrobrás” e “A Petrobrás, maior exploradora de gás no país, terá prejuízo com perda de controle de poços”. A política editorial do jornal traduzia para o enquadramento jornalístico as declarações das empresas da Câmara Boliviana de Hidrocarbonetos (CBH), que agrega as multinacionais petrolíferas: “Esta lei têm um caráter confiscatório que afeta direitos reconhecidos pelos contratos, leis e convênios internacionais”. A lei promulgada nesta terça-feira, em verdade, mantém fortes traços de continuidade com aquela sancionada por Sánchez de Lozada, em 1996, que entrega o controle dos hidrocarbonetos a 20 multinacionais do setor – como a Petrobrás e a Repsol – da Europa, Ásia, EUA, Argentina e Brasil, em troca da cobrança de 18% de royalties.

O Brasil tem a maior exploradora de gás na Bolívia, a Petrobrás, que teria perdas relativas ao aumento de impostos e à transferência da concessão dos campos de gás – atualmente 40% pertencem à empresa brasileira – para a estatal YPFB. “Seguramente a promulgação da nova lei vai produzir alterações (…) no sentido de que ela vai diminuir a expansão dos investimentos”, afirmou a Ministra de Minas e Energia Dilma Roussef referindo-se à presença da Petrobrás na Bolívia.

Grande imprensa brasileira evidencia o papel subimperialista do Brasil na Bolívia
Já os jornais Folha de S. Paulo e Valor Econômico traziam informações detalhadas: “…a Petrobrás explora os campos de San Alberto e San Antonio, os maiores do país … produção de 16,4 milhões de metros cúbicos/dia”, segundo o primeiro e “…produz 100% da gasolina e 60% do diesel consumidos no país”, diz o segundo. O fato de o Brasil, que “investiu” o equivalente a US$ 1,5 bilhão desde 1995 nos hidrocarbonetos bolivianos, ter sua carga tributária aumentada a partir da nova lei foi – de acordo com a lógica utilizada pela grande imprensa – a questão priorizada, enquanto a cobertura da população boliviana e suas manifestações multitudinárias pela nacionalização do gás e do petróleo passaram amplamente desapercebidas. E
ntre aquilo que se revela e o que se oculta, na naturalização do que é social e histórico e na apresentação da parte pelo todo, se assenta o poder ideológico da imprensa burguesa que, como vimos, tem bases materiais bastante concretas.