Daniel Sugasti

Desde 5 de março, milhares estão saindo às ruas em Assunção e outras cidades paraguaias, cansados da corrupção e da negligência que o governo do Partido Colorado (nome dado à Associação Nacional Republicana), do presidente Mario Abdo Benítez, deixou evidente diante da pandemia da Covid-19.

A decadência insuportável das condições de vida e o colapso sanitário são de responsabilidade do governo e do parlamento. Por isso, o povo trabalhador se manifesta pela saída de “Marito” do poder, pelo completo rechaço ao magnata mafioso Horacio Cartes (ex-presidente, de 2013 a 2018, e um dos banqueiros e empresários mais ricos do país), e tudo o que é ligado ao funesto Partido Colorado. Em suma, contra “todos eles”.

Partindo de um decidido apoio aos protestos, é preciso ir mais fundo e entender que a corrupção e a “má gestão” diante da dupla crise (sanitária e econômico-social) são produtos inevitáveis da natureza do capitalismo que impera no Paraguai e no mundo.

Mario Abdo e os demais governos burgueses, neste sentido, cumprem a tarefa de administrar a economia e a política de acordo com a lei de ferro do capitalismo: a ganância a qualquer custo e o lucro de um punhado de magnatas, construído em cima de uma montanha de mortos, pelo vírus ou pela fome.

Em outras palavras, os gabinetes e os parlamentos não passam de gestores do genocídio que está em curso. E, como se fôssemos gado de suas fazendas, esperam que o vírus se transmita sem maiores obstáculos, até alcançar a “imunidade de rebanho”.

Saúde pública e privatização

Segundo dados de 2018, cerca de 73% da população paraguaia não possui nenhum tipo de cobertura médica. No campo, esta cifra atinge 86%. Em meio a esta realidade espantosa, a saúde privada, que cobre cerca de 7% da população, foi crescendo à custa da saúde pública, e não poucas vezes com recursos do próprio Estado.

Entre 2010 e 2019, o Estado paraguaio destinou US$ 400 milhões para contratar seguros privados, distribuídos entre quatro das principais empresas do ramo, que oferecem serviços a cinquenta instituições estatais.

A negligência e a indolência que os governos demonstram são, na realidade, políticas deliberadas, com a finalidade de manter a saúde pública em condições catastróficas, como forma de justificar a necessidade do setor privado para “prestar um serviço completo e verdadeiramente eficiente”, que o Estado não pode oferecer.

Estas empresas privadas, além de encher seus bolsos com o dinheiro público por meio de licitações fraudulentas, sugam o dinheiro dos pacientes, sobretudo aqueles que precisam de tratamentos mais complexos. Existem centenas de denúncias, não só de negligências médicas em hospitais privados, como também de custos exorbitantes para a assistência médica.

A coisa é muito simples: se o Estado garantisse um sistema de saúde pública, universal, gratuita e de qualidade, a saúde privada perderia sua razão de existir. O problema é que, sob o capitalismo, o direito à saúde é incompatível com a sede de lucro dos empresários.

Esta é a razão profunda do desmonte deliberado do sistema de saúde pública, completamente sobrecarregado, incapaz de fazer frente à demanda descomunal por leitos de terapia intensiva, medicamentos, insumos básicos e profissionais especializados. Isso, sem falar de vacinas.

Primeiro os lucros … a saúde pode esperar

Esta realidade, ao mesmo tempo em que expressa a lógica “morram os que tiverem que morrer, mas a economia não pode parar”, é uma excelente oportunidade para que alguns ricos fiquem ainda mais ricos.

O governo Colorado executou apenas 41% dos US$ 426 milhões destinados (pela Lei de Emergência Sanitária) à saúde pública. Mas, a realidade é que não se sabe no quê gastaram esse dinheiro – tendo em conta o desabastecimento de insumos indispensáveis nos hospitais – nem onde está o resto.

A questão dos medicamentos e insumos é outro caso de negociação entre setores da classe dominante. O mais ultrajante não se resume às formas “descaradas” de corrupção e à grotesca “fuga de medicamentos” que, na verdade, implica no roubo direto, das farmácias dos hospitais, via redes criminosas que envolvem empresas privadas e altos funcionários estatais. Existe, também, o roubo legalizado pelo mecanismo das licitações fraudulentas nas quais empresas faturam milhões e sequer entregam medicamentos e outros produtos para o enfrentamento da pandemia.

Por exemplo, para a construção de hospitais de contingência, a empresa Implenia recebeu US$ 1,6 milhões; a Tecnoedil, US$ 1,2 milhões; e a Jiménez Gaona, US$ 749 mil. Para abastecer-se de atracurio e  midazolam, medicamentos vitais para os pacientes intubados, o Estado contratou empresas como a FUSA S.A., a Vicente Scavone e a Bioethic Pharma, dentre outras. Mas, apesar de já terem recebido seus pagamentos, ainda está pendente a entrega, por parte das empresas, de 50.818 unidades de atracurio e 356.638 de midazolam.

Os casos de Covid-19 aumentaram 66% no último mês e, com razão, as ruas perguntam: “Onde estão os remédios e os hospitais de contingência?” O mais provável é que estejam entre os ativos dessas empresas, porque, nos hospitais, os doentes lotam os corredores.

O dinheiro público é repassado aos mesmos empresários de sempre. A economista Verónica Serafini denunciou, há alguns dias, que 60% dos contratos de compra de medicamentos são monopolizados por seis famílias. A luta pelo controle do Estado é, no capitalismo, a luta para obter mais e melhores negócios.

O lucrativo negócio das vacinas

A partir da rebelião popular, a exigência de um plano de vacinação tornou-se mais forte.  O Paraguai é o país mais atrasado da região neste aspecto. O governo conta com quatro mil doses da Sputnik V e 20 mil da CoronaVac, doadas pelo Chile. Ou seja, nada diante de uma população de mais de 7,3 milhões de pessoas. Neste ritmo, 70% da população receberão as duas doses somente em setembro de 2053.

Em meio à crise e ao “repentino” interesse do governo em adquirir imunizantes, subitamente apareceram três firmas paraguaias que alegam estar em condições de importar até três milhões de doses da CoronaVac da China. Só um detalhe: se, no mercado internacional, uma dose custa entre 10 e 13 dólares, estas empresas as oferecem ao Estado a 33 dólares. As empresas são Index SACI, a Lasca e a Quimfa. A primeira, propriedade da família do ex -presidente e do magnata Juan Carlos Wasmosy, é a melhor posicionada.

Os negócios capitalistas com as vacinas se veem favorecidos pela oposição de um punhado de países imperialistas à quebra das patentes internacionais. Na semana passada, ocorreu uma reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC), na qual Índia e África do Sul lideraram uma proposta de suspensão dos direitos de propriedade intelectual sobre as vacinas, medicamentos e insumos hospitalares, ao menos enquanto durar a pandemia.

A União Europeia, os Estados Unidos e outros países ricos, como se esperava, rechaçaram o pedido veementemente. O Brasil foi contrário a um acordo que rompa o monopólio que os países imperialistas e suas empresas de biotecnologia detêm sobre os imunizantes.

Isto, na prática, implica na impossibilidade de aproveitar a capacidade industrial ociosa – como é o caso no Brasil – para acelerar a produção e distribuição de vacinas em escala necessária para derrotar a pandemia. A permanência das patentes, apoiada de forma escandalosa inclusive por burguesias submissas como a brasileira, só fará aprofundar o genocídio na periferia do capitalismo.

Isto coloca, com mais urgência do que nunca, a tarefa de lutar pelo fim das patentes das vacinas, única forma de deter o assassinato em massa que está em curso em todo o planeta.

A corrupção é inerente ao capitalismo

A corrupção é inerente ao capitalismo, um sistema que surgiu e se mantém por meio do roubo e da violência contra os explorados e oprimidos. Do ponto de vista dos ricos e poderosos, a “má gestão” que desatou a ira popular é, na realidade, uma excelente gestão do assassinato massivo que eles promovem para salvar seus negócios.

As mesmas facções burguesas, os mesmos personagens que rasgam as vestes diante da “ineficiência do setor público” e exigem o “enxugamento do Estado”, são as que realizam boa parte de seus negócios por meio de assaltos ao Estado.

Mas, atenção: por se tratar de um país localizado na extrema periferia do sistema capitalista mundial, o Paraguai possui uma classe dominante sempre disposta a acumular mais, empoleirada no Estado; seja por meios “legais” (privatizações e dívida pública), seja por meios ilegais, isto é, através do assalto direto aos cofres públicos. Por este motivo, quando se trata de direitos e serviços públicos de qualidade, exigem um “Estado mínimo”. Mas, quando se trata de fazer negócios e reprimir as lutas sociais, invocam um “Estado máximo”.

O problema tem a ver com a Associação Nacional Republicana, Marito, Cartes, a corrupção e a má gestão? Sem dúvidas. Todos eles devem ser varridos do poder. Mas, sobretudo, o problema é o sistema que os engendrou. Isto é, o capitalismo periférico, valentão com o povo pobre e submisso aos interesses imperialistas e das burguesias mais poderosas da região. É o capitalismo agroexportador-pecuário-narcotraficante-contrabandista, que administra a provinciana burguesia paraguaia.

Portanto, a queda do governo e o “Fora Todos!” devem ser os primeiros passos para aprofundar e canalizar o presente processo de mobilizações para uma saída revolucionária e socialista, que liquide o núcleo de todos os problemas: o capitalismo.