Daniel Luz, de São Paulo (SP)

“Fight the power” (“Lute contra o poder”), Public Enemy

Estreou no Brasil o novo filme da Marvel, Pantera Negra. O filme vem batendo diversos recordes e despertando muito debate. A expectativa é que no fim de semana supere a marca dos US$ 500 milhões no mundo todo, podendo ser uma das maiores bilheterias da História. Porém, mais significativo é que ele é composto praticamente somente por atrizes e atores negros, incluindo as personagens protagonistas do filme. Com destaque ao protagonismo das mulheres negras no enredo. São personagens centrais: a espiã Nakia (Lupita Nyong’o), Okoye – líder das guerreiras Dora Milaje – (Danai Gurira), Shuri – cientista e irmã mais nova de T’Challa – (Letitia Wright), Ramonda – rainha mãe – (Angela Bassett). Além disso, o continente africano é retratado de maneira positiva como o berço de uma sociedade tecnologicamente avançada e culturalmente diversa. A trilha sonora tem principalmente músicas africanas e contou com consultoria de Kendrick Lamar.

Estes elementos já diferenciam o filme das narrativas holywoodianas tradicionais, encharcadas pelo ideal da supremacia branca, onde negras e negros são minoria e quase nunca aparecem em papéis de protagonismo. A grande imprensa internacional tem louvado o filme como um manifesto definitivo pela diversidade. Sem falar que ele aparece num momento de imenso questionamento do governo de Donald Trump pelos setores mais oprimidos e explorados da sociedade norte-americana: mulheres, imigrantes, comunidade negra e os setores organizados do proletariado daquele país.

História e personagens
O filme conta a saga de um herói: o rei T’Challa (Chadwick Boseman), guardião do reino de Wakanda e detentor dos poderes divinos da Pantera Negra. Após a morte de seu pai, o rei T’Chaka (John Kani), ele enfrenta seu primo e inimigo Erick Killmonger (Michael B. Jordan) disposto a lhe tomar o trono real e transformar o destino daquele país e do mundo. Essa disputa compõe o centro do enredo do filme. Na história, Wakanda é um país africano – habitado por cinco tribos – possuidor de um elemento natural concedido pelos deuses, o Vibranium, que permitiu o desenvolvimento de uma tecnologia extremamente mais avançada à de qualquer outro país do mundo. Como proteção, esse extremo desenvolvimento cultural e tecnológico é escondido do resto do mundo, que vê ali apenas um miserável país de “terceiro mundo”, que não mantém comércio exterior, nem aceita ajuda estrangeira. É sobre o que está em jogo nessa disputa pelo fictício reino africano que nossa interpretação do filme se debruçará.

De partida, são as personagens dos vilões que me parecem ser a chave para compreender não só o sentido do filme, mas também seu caráter político no atual contexto de avanço das lutas contra a perda de direitos dos trabalhadores e, especialmente, contra a discriminação racial nos EUA e no mundo, inclusive no Brasil.

[ATENÇÃO, CONTÉM SPOILERS]
Para contar sua história, somos transportados para a cidade de Oakland (EUA) no início dos anos 90, onde vemos a figura de um espião do reino e irmão do rei, que se transforma em traidor ao vender armas para terroristas, pois estava indignado e se rebelou contra a passividade de seu país diante da exploração e opressão vividas pelos negros em todo o mundo. Entre seus motivos para rebelar-se, a personagem menciona os líderes mortos e o encarceramento massivo do povo negro. Mas acaba morto pelo rei.

Mais tarde, seu filho busca continuar o caminho assumido pelo pai e chega a ser rei de Wakanda por certo período. A cena do ritual de sua transformação em rei é particularmente significativa. Nela, vemos o rei encontrar-se com o espírito de seu pai no antigo apartamento em Oakland, onde nas paredes aparecem um pôster do Public Enemy (grupo de Hip-Hop radical) e outro com a famosa foto de Huey P. Newton, um dos fundadores dos Panteras Negras, sentado numa grande cadeira, segurando uma metralhadora e uma lança. Cenas adiante, já ferido de morte pelo Pantera Negra legítimo, o rei traidor-rebelde diz preferir a morte à viver preso, apenas pede para ser lançado no oceano, como fizeram seus antepassados, numa referencia às mulheres e homens africanos mortos nos navios tumbeiros, durante o período de vigência do tráfico internacional de pessoas escravizadas. Esses vilões são caracterizados como traidores, terroristas e mercenários, empenhados em disseminar a guerra e a barbárie. E note-se: são estas personagens que falam em rebelião armada do povo contra o colonizador.

Três caminhos políticos
O enredo de Pantera Negra parece apresentar três imagens representativas de caminhos políticos para o povo negro, num filme em que a todo momento combina ficção e realidade para compor sua trama. Mas, em minha opinião, não há ambiguidade, só uma perspectiva é sustentada por seus autores.

A primeira é aquela ilustrada por um reino tecnologicamente avançado, em equilíbrio social entre as diversas tribos, mas cujos governantes ignoram completamente a barbárie ao redor do mundo, é um reino fechado em si. Essa é a Wakanda tradicional, herdada pelo rei e Pantera Negra T’Challa, ela será criticada e negada por este ao longo do filme, pois a opção por “virar as costas” ao resto do mundo ignorando seu sofrimento, fora um erro cometido pelas gerações passadas.

Em contraposição, é apresentada a via dos vilões, traidores do reino, terroristas que enxergam a rebelião e a violência como via de transformação da situação de opressão vivida pelo povo negro. Pregam a luta armada, inclusive se aliando a simples criminosos como o personagem Klaus (Andy Serkis) cujo único fim é conseguir grana. De forma deturpada, são personagens explicitamente vinculadas ao Partido dos Panteras Negras para Auto Defesa, como mostra o mencionado pôster de Huey Newton, o fato de viverem na mesma cidade em que aquele partido foi fundado (Oakland, California) e o chamado à rebelião do povo em armas.

Como resolução do conflito, advém a terceira via, aquela que os autores do filme elegem como sendo a lição última e principal deixada pela obra. É a posição da personagem Nakia (Lupita Nyong’o) ao longo da trama. Após romper com o isolamento inicial, derrotar e desmoralizar a ideia de rebelião, o herói protagonista promove o estabelecimento de centros de assistência social para a comunidade negra. Em um discurso que sugere uma crítica a Donald Trump, sua perspectiva ideológica é de que é tolice ver divisões na sociedade, o mais importante seria construir pontes entre as pessoas e os povos, pois são os fatores em comum que se sobressaem na humanidade. Esse é o conteúdo do discurso final da personagem na sede da ONU, apoiado por seu único aliado branco, um agente da CIA (Martin Freeman).

Um outro caminho politico
Acredito que há uma outra via política, mas que é desacreditada pelo filme e mais ou menos defendida pelas personagens dos vilões, daqueles que buscam destruir o Pantera Negra. Ou antes, está escondida nas referências deturpadas ao Partido dos Panteras Negras. Em que pese todas as contradições e limites da experiência dos Panteras Negras, eles são hoje uma das principais referências para toda uma vanguarda de lutadoras negras e negros (mas também de pessoas brancas ganhas para a luta contra o racismo), e uma referência que aponta nos seus melhores momentos à quebra do estado democrático-burguês, à derrubada revolucionária do sistema capitalista como condição da libertação do povo negro de todo o mundo. Não à toa, uma de suas inspirações foi a revolução bolchevique de outubro de 1917, primeira revolução operária e comunista vitoriosa da História.

Como dissemos, efetivamente existe no filme um tremendo protagonismo negro, inclusive de mulheres negras, especialmente as personagens Nakia (Lupita Nyong’o) e Okoye (Danai Gurira). Mas, também é verdade que esse protagonismo está completamente em função de uma peça ficcional que toma o partido da atuação política por dentro das instituições da atual sociedade capitalista. Dessa forma, a ONU, que nada fez para impedir massacres como o de Ruanda (1994), que ocupa países como o Haiti, que jamais ousou enfrentar os interesses das potências imperialistas, é representada ficcionalmente como o espaço democrático onde são resolvidos os problemas da humanidade, sem a mais remota crítica.

Segue a rebelião do povo negro
Penso que uma das mensagens do filme é desacreditar a bandeira da rebelião do povo negro, da ruptura radical das instituições hipócritas do imperialismo, como alternativa de transformação social e libertação dos explorados e oprimidos de todo o mundo. E, ao mesmo tempo, promover a saída reacionária da reforma social e do assistencialismo como via digna de um herói do povo negro: é a alternativa de um impossível novo pacto social democrático e igualitário com toda a velha corja da Casa Grande.

Atualmente (e já há alguns anos), vivemos um processo de crescente reivindicação da ancestralidade negra, de organização e combate à discriminação racial e outras formas de opressão. O movimento Black Lives Matter, fundado por três mulheres negras, no curso de massivas manifestações contra a violência policial racista é prova disso. Foi um período de intensas lutas da classe trabalhadora e da comunidade negra sob e contra o governo do primeiro presidente negro nos EUA. Esta experiência serviu grandemente para a perda de ilusões na democracia dos ricos e sua farsa eleitoral.

Assim, certamente, o filme dos Studios Marvel-Disney responde à pressão vinda das ruas por espaço e protagonismo negro. Entretanto, o faz a partir da perspectiva de classe dos ricos e poderosos, que sempre lucraram com a combinação de exploração e opressão ao povo negro em todo o mundo, isto é, dos mesmos que querem conter o protesto negro em limites seguros à perpetuação de sua dominação de classe. Por fim, esta interpretação não exige que este ou qualquer outro filme sejam veículos de um programa político revolucionário, mas buscamos evidenciar a inversão ideológica presente num uso reacionário de símbolos e ideias revolucionárias, caros à luta por um mundo realmente livre e igualitário.

Hollywood ainda nos deve um herói. Porém, esses virão das fileiras de trabalhadoras e trabalhadores negros em luta e rebelados contra o capitalismo.