Para tentar sair da defensiva imposta pelo movimento de massas, o governo federal começa a anunciar medidas no sentido de melhorar a imagem de Dilma, que foi duramente danificada pelas manifestações com dois milhões de pessoas nas ruas em mais de 450 cidades.

Em menos de uma semana, Dilma foi à TV por duas vezes para fazer pronunciamentos à nação, aonde apresentou sua proposta de cinco pactos com governadores, prefeitos e movimentos sociais: responsabilidade fiscal, reforma política, mobilidade urbana, saúde e educação.

A presidenta chegou a defender a convocação de um plebiscito popular para a instalação de uma Assembleia Constituinte exclusiva para fazer a reforma política. Esta proposta foi detonada em menos de 24 horas tanto pela oposição quanto pela própria base de apoio do governo, com declarações públicas do vice-presidente Michel Temer (PDB) dizendo que a constituinte exclusiva era errada.

 Os cinco pactos propostos têm o objetivo de responder ao clamor das ruas sem fazer nenhuma mudança de fundo para o atendimento das necessidades sociais que estão fazendo o país explodir. Isto fica muito claro porque o primeiro pacto proposto é o “pacto pela responsabilidade fiscal e controle da inflação”. Ao encabeçar a lista, deixa explícita a verdadeira intenção do governo, de não mexer nos fundamentos da política econômica. Os quatro pactos seguintes, portanto, ficam condicionados e limitados pela responsabilidade fiscal.

Tentaremos analisar o pacto proposto pelo governo do PT para a saúde pública, a partir das medidas detalhadas pelo ministério da saúde. Os principais itens anunciados pelo governo federal são: responder ao déficit de médicos na rede básica, aumento das vagas para residência médica e nos cursos de graduação de medicina, ampliação do apoio à rede de hospitais filantrópicos e investimentos para melhorar a infraestrutura física dos serviços de saúde.

Falta de médicos

O ministério da saúde e a mídia começaram a detalhar mais as medidas em relação à saúde pública. Como parece ser praxe neste governo, as informações são publicadas a conta gotas, o que dificulta a se ter uma visão de conjunto das medidas. O ministro anunciou um edital com 35 mil vagas para médicos em unidades básicas a nível nacional até o final do ano. Também serão abertas apenas mil vagas para dentistas e enfermeiros.

 Antes de tudo, o diagnóstico de “falta de médicos” é superficial: a carência não é só de profissionais médicos, mas também de não médicos, como psicólogos, enfermeiros, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, nutricionistas, assistentes sociais e dentistas. O déficit de profissionais é causado pela falta de investimento financeiro no Sistema Único de Saúde (SUS) e pela privatização acelerada do sistema. Pouquíssimos concursos são feitos para contratar especialistas não médicos. Os salários não são atrativos e este tema é fundamental, pois o trabalho com saúde individual e coletiva exige que o profissional esteja confortável com seu trabalho e não obcecado com as contas a pagar no final do mês.

O SUS não tem um Plano de Cargos, Carreiras e Salários (PCCS), que traga esta segurança aos trabalhadores do setor. Infelizmente, muitos trabalhadores acabam sendo drenados para a iniciativa privada por conta disso. O concurso e a importação de médicos não resolverá o problema da falta de profissionais se não houver este PCCS, reivindicação antiga do movimento sindical da saúde que não foi atendida em 10 anos de governo petista.

Especificamente em relação à importação de médicos, é fundamental ressaltar alguns aspectos da questão. É uma medida que tem como objetivo de fundo satisfazer prefeitos preocupados com as próximas eleições (não se pode esquecer que o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, é pré-candidato ao governo de São Paulo). Tem também o objetivo inconfesso de tentar abaixar o salário de profissionais médicos. Dilma falou em importar milhares de médicos, pelo simples fato que os médicos recém-formados em geral pouco entram no SUS. Um terceiro aspecto é qual a capacitação destes médicos, pois não terão de fazer a prova de validação do diploma. O quarto aspecto prático é como se relacionarão com a população a ser atendida, tanto pelo problema da língua como por desconhecer os (pouquíssimos) recursos do sistema. Profissionais que vão para trabalhar em cidades pequenas também reclamam do coronelismo, aonde são submetidos aos caprichos políticos de prefeitos e muitas vezes não recebem o salário prometido.

Vale lembrar que o movimento sindical e de associações médicas já fala em fazer um dia nacional de luta e paralisações em 3 de julho contra a importação de médicos.

Ampliação de vagas para residência e graduação médica

Foi publicizado, um reforço de investimentos para ampliar o número de vagas de residência médica (mais 12.376 vagas até 2017) e criação de 11.447 vagas de graduação em medicina até 2017. Há referência a gastos anuais adicionais de R$ 100 milhões para estas vagas.

Mesmo sendo propostas acanhadas, colocamos em dúvida se esta ampliação vai acontecer nos parâmetros anunciados. Esta dúvida é pertinente. Enquanto o ministro fala em ampliar as vagas para graduação em medicina, o portal Terra divulgou nota dos responsáveis pelos cursos federais de medicina que falaram claramente em fechar vagas, por exemplo, na UFSCAR (São Carlos), que nem hospital universitário tem para seus alunos. Vários cursos de medicina simplesmente não têm preceptores (orientadores) para os estudantes, o que é grave, pois precisam aprender a atender os pacientes por conta própria.

O governo e o ministério só falaram, mais uma vez, em vagas para medicina. Fica aqui outra pergunta: Como fica o trabalho multiprofissional no SUS? É evidente que a carência de especialistas não médicos é gritante, mas ao que tudo indica o ministro convenientemente “se esquece” disto, inviabilizando a possibilidade de um trabalho em saúde com uma concepção mais ampla. Para dar um exemplo, na saúde mental o atendimento em psicoterapia é fundamental, inclusive para tentar reduzir o consumo excessivo de tranquilizantes. Se não há psicólogos disponíveis, este trabalho simplesmente não acontece.

Fortalecimento da rede “filantrópica”: Mais privatização!

O Ministério da Saúde fez o lançamento do PROSUS, que é o programa de fortalecimento das entidades privadas filantrópicas e sem fins lucrativos que atuam na área da saúde e que participam de forma complementar ao SUS. Este programa procura responder às alegações das entidades filantrópicas de que estão muito endividadas. Segundo o site do ministério da saúde, está dívida será paulatinamente absorvida pelo Fundo Nacional de Saúde em troca de um aumento do número de atendimentos na ordem de 5%, por parte destas entidades.

Estas empresas filantrópicas e privadas sem fins lucrativos são financiadas com dinheiro público. As medidas para este setor aprofundam a privatização do sistema público de saúde. Nunca é demais lembrar que várias delas nem de longe podem ser chamadas de filantrópicas. Mesmo aquelas entidades mais ortodoxas, geralmente vinculadas a grupos religiosos, quase sempre respondem mais às agendas e necessidades de suas igrejas e não da saúde pública. Isto acontece com frequência nos temas que envolvem questões morais, como o aborto, a prevenção da natalidade e as doenças sexualmente transmissíveis, aonde elas se recusam a divulgar e a praticar as políticas públicas mais progressistas.

Enquanto falta dinheiro para as entidades diretamente estatais, aumenta a verba destinada aos serviços privados. Novamente segundo o site do ministério da saúde: “Em um ano, os incentivos pagos aos principais hospitais filantrópicos para o atendimento de usuários do SUS saltaram 185%, chegando a R$ 968,6 milhões em 2012, contra R$ 340 milhões em 2011. Nos últimos cinco anos foram feitos quatro reajustes, sendo dois só em 2012”.

A privatização da saúde pública, apontada por todos os governos (cada um ao seu estilo) como solução para os problemas de gestão no SUS, na realidade aprofunda a crise do mesmo. A privatização é, em sua essência, incompatível com os princípios do SUS como a universalidade, integralidade, equidade e participação popular. O objetivo da empresa privada, por definição, é o lucro. Se o objetivo é prevenir, educar e encarar o ser humano como um todo (e não como um coração, fígado ou estômago), compreender o ambiente social e procurar intervir nele para atenuar determinados fatores causadores de doenças, é preciso dizer com clareza que o objetivo do lucro se choca com tudo isso. Que empresa privada vai admitir que a população e seus funcionários de fato a controlem.

A privatização é diretamente oposta ao que pode de fato melhorar o sistema de saúde brasileiro: defender o SUS 100% estatal, público e de qualidade, sob o controle da população. Essa é a proposta do PSTU e de várias entidades do movimento, como a frente nacional contra a privatização da saúde.

 Melhora da rede física e equipamentos de saúde: sem dinheiro, não é possível!

A falta de investimento adequado é a principal responsável pelas péssimas instalações em hospitais, ambulatórios e unidades básicas de saúde. É a causadora dos meses de espera para consultas com especialistas e procedimentos cirúrgicos e das filas nos serviços de urgência e emergência. É a causadora do fraco desempenho dos serviços de ambulâncias e demais carências práticas do sistema.

O subfinanciamento e desvio de verbas da saúde provoca a deterioração da rede física e dos equipamentos de saúde. Enquanto o ministério da saúde fala pomposamente de seus planos, o que o povo vê no dia a dia são hospitais com lixo hospitalar exposto sem cuidado e com goteiras, andares inteiros desativados, leitos hospitalares quebrados, exames de laboratório que não são feitos.

Quem é o culpado por este baixo financiamento? Evidentemente é a política econômica dos sucessivos governos, seja da direita ou da frente popular. O PT está no governo federal há 10 anos. Não mexeu uma palha para revogar a lei de responsabilidade fiscal, que limita os gastos públicos com pagamento de servidores públicos. Manteve a DRU (Desvinculação das Receitas da União) que rouba dinheiro do orçamento da seguridade social para o pagamento da dívida pública. O PT e a famosa base de sustentação do governo aprovaram a PEC 29 sem uma definição de mínimo de gastos federais para a saúde, frustrando uma luta de anos por melhoria no financiamento da saúde.

A recente votação na Câmara dos Deputados da destinação de 25% dos royalties do pré-sal não vai resolver o problema. Mesmo que ela seja aprovada pelo Senado e sancionada pela presidenta Dilma, a estimativa feita pela Auditoria Cidadã da Dívida é de que ela acrescentará apenas 0,4% do PIB ao orçamento de saúde em 2022, na melhor das hipóteses. Provavelmente será menos, pois foi retirada do projeto a principal fonte de royalties que é a parcela da Petrobras do pré-sal que não será leiloada.

Um pacto pela saúde apenas cosmético

Tomando tudo isso em conta, voltemos aos pactos propostos por Dilma. Não por acaso, o pacto que encabeça a lista é o de responsabilidade fiscal e controle da inflação. Mesmo pressionada pela impressionante entrada em cenas do movimento de massas exigindo melhorias substanciais dos serviços públicos, a presidenta fez questão de deixar claro que mantém seu verdadeiro e único pacto, que é aquele feito com a burguesia, de manter os sacrossantos fundamentos da economia liberal, principalmente aquele que garante o pagamento da dívida pública à custa de quase metade do orçamento federal. Neste sentido, fica a pergunta: de onde sairão os R$ 50 bilhões extras para o plano nacional de mobilidade urbana? De onde virá o dinheiro para garantir estas medidas para a saúde e educação?

Se Dilma quiser, de fato, melhorar os serviços públicos de saúde para satisfazer às reivindicações populares, não será com estas medidas cosméticas como importação de médicos. Ela tem que fazer uma guinada de 180 graus na sua política econômica, romper com a lógica de privilegiar o pagamento da dívida pública, que drena 45% do orçamento federal. Precisamos reverter imediatamente as privatizações na saúde, a começar pela famigerada EBSHER (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares), que significa a privatização dos Hospitais Universitários.  Nada indica que fará isso, pois implica em romper com seu pacto sagrado com a burguesia.