Até quando o verde e amarelo vai ser manchado com o vermelho do nosso povo/ até quando o sol vai nascer para poucos e não para todos/ latifundiário pra mim é porco, é corvo/ jagunço… é gente como a gente que atira no seu próprio povo/ desses vermes eu sinto nojo/
(Barraco de Pau, Gíria Vermelha, CD 20 Anos de MST )

Em um de seus programas eleitorais a governadora Roseana Sarney disse que no Maranhão não existiam mais conflitos agrários. No dia 20 de julho, como resultado de um acordo entre o PT e o DEM, é aprovado o Estatuto da Igualdade Racial, completamente esvaziado de conteúdo, especialmente no artigo 31, que trata da garantia de titulação das terras de remanescentes de quilombos. Durante o segundo turno das eleições de 2010 o Movimento Negro Unificado (MNU), uma das mais antigas e importantes entidades do movimento negro brasileiro, lança um manifesto de apoio a Dilma e de exaltação do famigerado Estatuto da Igualdade Racial. Dia 30 de outubro: o quilombola Flaviano Pinto Neto é executado na comunidade de Charco, no município de São Vicente de Ferrer, Maranhão. Diante desses fatos, segue a velha pergunta de Lênin, o que fazer?

Poderíamos começar respondendo a essa pergunta com o apelo feito por Manoel Santana Costa, 35 anos, Delegado Sindical, amigo de Flaviano, e que também está jurado por pistoleiros: “Não adianta só falar, mais importante é fazer algo contra tudo isso” (fala proferida no dia 04 de novembro na Praça Lagoa Amarela, no centro histórico de São Luís).

Flaviano Pinto Neto, 45 anos, pai de 5 filhos, presidente da Associação dos Pequenos Produtores Rurais do Povoado Charco, município de São Vicente Ferrer – MA, foi executado com 7 tiros de pistola calibre 380, disparados contra sua cabeça por um pistoleiro que se evadiu do local em uma moto. A execução ocorreu no momento em que os conflitos na localidade se asseveraram, opondo de um lado 70 famílias que vivem há mais de 60 anos na localidade e de outro, o fazendeiro Gentil Gomes e seus filhos, proprietários de extensas áreas na região da Baixada, responsáveis também por diversos despejos forçados nessa região do Maranhão.

A execução de Flaviano Pinto Neto foi uma morte anunciada. O conflito foi denunciado diversas vezes pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) ao Incra, Iterma, órgãos de segurança pública e de justiça do Estado do Maranhão. Contudo, nada foi feito para impedir a execução brutal de um pai de família que deixa órfãos os filhos e a Terra. Mais de quarenta quilombolas estão marcados para morrer.

Flaviano e todas as demais lideranças quilombolas e camponesas juradas de morte ou as que já desfaleceram em razão desses conflitos são vítimas de uma política racista e pró-latifúndio que na atualidade envolve uma teia quadrilheira tecida na aliança do governo Lula com as oligarquias, o agronegócio e o capital nacional e trans-nacional.

Na questão agrária o governo Lula conseguiu ser mais trágico do que o famigerado governo FHC. Logo em seu primeiro ano de governo, em 2003, Lula prometeu assentar 60 mil famílias, 20 mil a mais do que a média anual do governo FHC. O MST exigiu que 120 mil famílias fossem assentadas, o dobro do que o governo propunha. Lula, com o bonezinho do MST na cabeça, assentou apenas 10 mil. Nesse mesmo período 9.330 famílias camponesas perderam suas terras por força de ordens judiciais. O saldo pífio dessa política foi em torno de apenas 700 famílias assentadas, menos de 1% do que o MST exigiu. Um número simplesmente vergonhoso.

Mais grave ainda foi a aprovação da Medida Provisória 422, transformada em 2008 na Lei nº 11.763, que coloca a última pá de cal do latifúndio sobre a lei constitucional que tratava da questão da reforma agrária. É isso mesmo, no Brasil de Lula não existe mais reforma agrária, e sim regularização fundiária. O tamanho das terras beneficiadas foi ampliado de 1000 para 1500 hectares. Tudo isso para transformar grileiros em posseiros ou em sem terra, e essas regularizações estão acontecendo especialmente em regiões onde prevalece o latifúndio. Em suma, quando Lula chamou os usineiros de heróis nacionais, não foi por lapso, mas por uma clara opção de classe.

É no mínimo cômico considerar o governo Lula como se fosse de nossa classe ou de nossa raça. Trata-se de um governo de frente popular, pois atua em favor dos ricos contando com o apoio popular, especialmente por que tem o aval das direções sindicais e populares cooptadas e completamente atreladas ao regime. Na dúvida, as crises econômicas são o melhor termômetro para identificar o caráter de classe desses governos.

Durante a crise de 2008 Lula transferiu bilhões de reais para o latifúndio enquanto cortou quase pela metade o orçamento voltado para a reforma agrária. A conseqüência trágica dessa política foi o desemprego de aproximadamente 360 mil trabalhadores rurais. Nesse governo, assim como nos dois de FHC, a penetração do grande capital no campo se deu sem restrições. Enquanto isso, nos grandes centros urbanos, local para onde migram muitos desses trabalhadores expulsos do campo, o PT adota ou apóia a política da “ditadura das armas” sobre a população pobre e negra. Os morros do Rio de Janeiro seguem ocupados e criminalizados. O maior cabo eleitoral de Dilma naquele estado, o governador Sergio Cabral, disse que útero de mulher do morro, leia-se negra, é “fabrica de bandidos”. Na Bahia, o governador Jacques Wagner do PT caracterizou o MNU como “organização criminosa”, por que estes denunciaram a situação caótica do sistema carcerário daquele estado. Para a realização da Copa de 2014 e as olimpíadas de 2016, as pessoas pobres que moram em bairros próximos aos estádios onde os jogos serão realizados estão sendo violentamente removidas, a maiorias são afro-descendentes. O braço policial e etnocida do governo Lula se estende para além de nossas fronteiras, suas armas estão também apontadas para as cabeças dos nossos irmãos negros do Haiti, a mando dos Estados Unidos. Lá as empresas do filho do vice-presidente José de Alencar exploram força de trabalho semi-escrava nas conhecidíssimas “maquiladoras”. Definitivamente esse governo não é nosso, seja enquanto classe, seja enquanto raça.

Esgotamento e desmoralização da politica dos gabinetes

Para o líder sul-africano, Steve Biko, assassinado pelo regime do apartheid, a cor da pele tinha deixado de ser o parâmetro para determinar a consciência negra; a ação política era mais confiável, segundo ele. Em razão disso, se dizia favorável a redefinição do conceito de negritude. Temos acordo com Biko, bem como tudo aquilo que disse o camarada Rosenverck Santos dias atrás em seu belíssimo e contundente artigo intitulado “Dilma, o governo Lula e a luta da população negra: entre o gabinete e a rua, o que fazer?”

De fato o conceito de negritude precisa ser redefinido, algo que aponte para além da identidade epidérmica, algo que não desconsidere a questão de classe. As secretarias raciais dos governos neoliberais, como os de Lula e Roseana Sarney, já demonstraram sua completa ineficácia em atender minimamente as nossas reivindicações históricas. Esses não passaram de gabinetes simbólicos de legitimidade dos ataques desses governos à classe trabalhadora. De conquistas de nossas lutas passaram a ser entraves contra as nossas lutas.

Em seu segundo mandato, o presidente Bill Clinton adotou a mesma tática nos Estados Unidos para calar os movimentos sociais, criando secretárias de negros, latinos e mulheres, ao mesmo tempo em que destruía conquistas históricas desses grupos sociais. No Haiti o duvalierismo (ditaduras sangrentas de “Papa Doc” e “Baby Doc” de 1957 a 1986) se utilizou do essencialismo racial ou “etnicismo caolho” para escamotear problemas de classe ou da dominação imperialista norte-americana, da qual seu governo estava a serviço. Na África do Sul, Steve Biko exigia aos brancos que se diziam solidários à causa dos negros que abandonassem os cargos governamentais e se unissem de fato ao povo em suas lutas.

Sabemos que no Brasil a questão de raça não perdeu de modo algum sua centralidade, e não perderá enquanto o racismo e capitalismo existirem. No entanto, dissociar a questão de raça da de classe não passa de um erro gravíssimo. A raça sem a classe é um conceito completamente oco. E foi com base no esvaziamento desses conceitos que Dilma teve a ousadia de igualar Princesa Izabel a Luiza Maín, em um dos seus programas eleitorais que foi ao ar no dia internacional das mulheres.

Qualquer organização negra que encare uma comparação dessas com naturalidade não terá muita dificuldade em aceitar Lula dizer que os Sarney são políticos honestos, compromissados e preocupados com o bem estar do povo pobre do Maranhão, muito menos para se calar diante dos crimes cometidos pelo governo de Roseana Sarney contra trabalhadores negros no campo e na cidade. O Maranhão já ultrapassou o Estado do Pará em números de conflitos fundiários. Hoje são 196 envolvendo milhares de famílias camponesas e quilombolas. Na região metropolitana de São Luís, a governadora Roseana Sarney e o prefeito João Castelo dão carta branca para que políticos e empresários quadrilheiros do setor imobiliário organizem milícias para expulsar antigos moradores de suas terras visando à construção de empreendimentos luxuosos.

Para nós, a morte de Flaviano é apenas a ponta do iceberg de tudo aquilo que esses governos reservam para nosso povo. Qualquer movimento social tem todo o direito de tomar posições ou adotar as táticas que julgam ser as mais adequadas, no entanto ninguém tem o direito de mentir ou omitir o que esses governos praticam contra a classe trabalhadora. Dezenas de lideranças estão marcadas para morrer no Maranhão, e outras centenas pelo Brasil afora, tudo isso com a conivência de Lula, Dilma, Roseana Sarney e João Castelo. Para nós, em meio a essa guerra de classe e de raça, só dá para escolher uma das trincheiras: a dos gabinetes ou a das ruas. Nós da Central Sindical Popular CONLUTAS escolhemos as ruas.

*Do GT de Negros e Negras da CSP-Conlutas

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