A sabedoria popular costuma afirmar que, quando uma pessoa poderosa morre, transforma-se em santo. Isso volta a acontecer nessa semana, com o falecimento de Otávio Frias de Oliveira, dono do jornal Folha de S. Paulo e do Grupo Folha. Nas horas seguintes ao anúncio de sua morte, até o enterro, não faltaram declarações que associavam Frias e seu jornal à luta por democracia e liberdade no Brasil durante a ditadura militar. O Presidente Lula decretou três dias de luto oficial e divulgou em nota que “lutávamos para superar o autoritarismo e reconquistar a democracia. Desde aquela época, ficamos amigos”. O ministro da justiça, Tarso Genro, também foi pela mesma linha ao afirmar que Otavio Frias “acolheu nas páginas da Folha toda a diversidade política e ideológica brasileira”. Mas nem tudo são flores na vida de Otávio Frias.

Frias começa a vida de empresário como investidor de imóveis nos anos 1940. No final da década de 50, já possuía o próprio banco. Em 1962, em parceria com o agiota Carlos Caldeira Filho, adquire o pequeno jornal Folha da Manhã, fundado em 1921 como periódico defensor da oligarquia cafeeira. O jornal, que não contava com a mesma influência dos tradicionais Estado de S. Paulo e Diário Popular, estava endividado desde a greve dos jornalistas do ano anterior. Já com o nome mudado para Folha de S.Paulo, o jornal de Frias se torna um dos apoiadores em primeira mão do golpe militar de 1964. Nos anos 60, o Grupo Folha começa a crescer, com grande apoio do governo militar, do qual recebe grande quantidade de verba publicitária. Logo após a decretação do AI-5, o Estadão deixa de apoiar o regime militar, e a Folha recebe financiamento e isenção de impostos para a importação de material gráfico.

O apoio é tão forte que o Departamento de Censura da Policia Federal não designou censor para cortar as reportagens da Folha, já que o próprio jornal fazia isso. Em 1967, Otávio Frias emprega como chefe de redação da Folha da Tarde o jornalista Pimenta Neves, que é logo apelidado de “Diário Oficial da Oban”. A direção da Folha passa para o conservador Boris Casoy. A Folha, que tinha como apelido entre os jornalistas o jornal de maior tiragem as cidade, não por causa do número de exemplares impressos, mas pelo número de tiras – policiais – que trabalhavam na redação. Os policias da repressão chegavam a usar as viaturas de entrega de jornal como transporte de suspeitos de “terrorismo”.

A relação entre a Folha e a repressão era tão forte que o jornal era o primeiro em São Paulo a publicar notícias de mortes acidentais e atropelamentos de militantes de esquerda. Os “terroristas” sempre morriam ao reagirem a supostas emboscadas da polícia. As mortes do jornalista Wladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho eram apenas citadas em notas. Em compensação, os ataques contra os carros de entrega de jornal praticados por supostos terroristas tinham grande destaque.

Somente em 1977, a Folha teve que passar pelo crivo da censura, apenas por causa de uma crônica contendo comentários depreciativos sobre a estátua de Duque de Caxias, patrono do Exército. Um general ligou para Otávio Frias e imediatamente ele demitiu o escritor Lourenço Diaféria e o jornalista Cláudio Abramo.

O marketing democrático da Folha
Com o aumento das mobilizações populares e as greves contra a ditadura, o regime começa a enfraquecer no final da década de 70, o que se expressa pela Lei de Anistia e o fim da censura prévia entre 77 e 78. Em 1983, Otávio Frias começa a mudar a linha editorial da Folha de S.Paulo. Vários repórteres antigos são demitidos, incluindo Boris Casoy, dando lugar a jovens jornalistas, vários deles com passagens pelo movimento estudantil, e outros envolvidos na fundação do PT.

Cartunistas ligados aos movimentos sociais, como Laerte, passam a publicar em local nobre dentro do jornal. A Folha passa a estampar a luta por democracia e encampa a campanha de Diretas Já. O slogan passa a ser “o jornal da democracia“. Líderes sindicais, antigos exilados políticos e intelectuais de esquerda passam a ter espaço para entrevistas e para publicar artigos contra a ditadura. O apoio à campanha pelas Diretas veio por meio de editoriais em primeira página e chamados para que a população fosse aos comícios e atos de rua.

Mas essa virada na linha editorial não é para menos. Um grande estudo de marketing naquela época apontou que boa parte dos jovens não tinha um jornal de preferência e era favorável à democracia. Os jovens também queriam ter um jornal com mais noticias sobre cultura, que não fosse sisudo, nem provinciano, mas nacional, plural, imparcial e independente. Não é por menos que a Folha se tornou um jornal de destaque nessa época, pois competia contra os conservadores Estadão, O Globo e Jornal do Brasil. O Grupo Folha investe pesado em propaganda de independência e imparcialidade. Se autoproclama o único jornal a apoiar as Diretas. A partir dessa virada, a Folha passa a ter a maior circulação do país e Frias se torna um dos empresários mais influentes nos meios políticos, pois comandava praticamente uma arma.

O público que a Folha tem como alvo ou era criança ou nem era nascido no tempo que o jornal era ainda o Diário Oficial da Oban. Mas a mudança editorial da Folha é apenas uma vestimenta bonita sobre um jornal totalmente parcial e nada independente. Até hoje a Folha colhe frutos dessa devastadora campanha de marketing. E Otávio Frias nunca deixou que o pluralismo existisse além do papel, tanto que sempre perseguiu a organização sindical de seus jornalistas. Atualmente, a rotatividade na redação é grande e todos os seus jornalistas são contratados como pessoas jurídicas, desonerando a empresa a pagar direitos trabalhistas. Não é por menos que a Folha é defensora ferrenha da Emenda 3 e das reformas sindicais e trabalhistas.

Mas com a sua morte, Otávio Frias é lembrado como um líder pela luta por democracia no Brasil. Democracia de mercado. Nas propagandas, a Folha tenta se diferenciar dos concorrentes exatamente naquilo que ela não é, independente. Lula chama de amigo e decreta luto oficial para o dono do jornal que defendeu a sua prisão em 1980. O mesmo Otávio Frias, durante um jantar na campanha presidencial de 1989, perguntou a Lula porque ele não estudou, já que ficou muitos anos sem trabalhar. Imediatamente o petista abandonou o jantar e foi embora. Tarso Genro, ex-militante do PC do B, Ala Vermelha e PRC, elogia o jornal que acobertou a morte de vários de seus companheiros de militância. Lula também fez o mesmo com Roberto Marinho, chamado o fundador da Globo, que editou o seu debate para favorecer Collor em 89, de “homem que veio ao mundo a serviço da comunicação, da educação e do futuro do Brasil”.

Otávio Frias não terá o privilégio de ser o único a se transformar em santo depois de morto. De Roberto Marinho até o “rouba, mas faz” Adhemar de Barros, da TV Bandeirantes, todos os políticos e burgueses viraram heróis depois de mortos. É uma deturpação da história típica do capitalismo, que necessita de grandes homens para fazer a história. Sendo que, na verdade, a história está sendo construída por um povo.

*Estudante de jornalismo e militante do PSTU